sábado, 31 de agosto de 2013

O Lado Obscuro das Condutas Coletivas

Ainda outro dia eu estava dando uma olhada nos substantivos coletivos da nossa língua, aqueles que dizem sobre conjuntos de seres da mesma espécie, sabem? Nessa olhadinha, cheguei a uma conclusão aterradora: a língua portuguesa tem uma quantidade assustadora de palavras que designam conjuntos de ladrões, de desordeiros, de assassinos e de malfeitores, ou seja, via de regra, de gente da pior espécie, quer ver? Espia: Bando: conjunto de desordeiros ou malfeitores (excluído aqui o sentido genérico de multidão que bando tem no português atual do Brasil); Cambada: conjunto de desordeiros ou malfeitores, excluído aqui o sentido em que mais usamos este coletivo no português atual do Brasil, que é o de turma (de amigos, de colegas de sala etc.); Caterva: conjunto de desordeiros ou malfeitores; Choldra: conjunto de assassinos ou malfeitores; Corja: conjunto de ladrões ou malfeitores; Horda: conjunto de bandidos, invasores; Malta: conjunto de malfeitores ou desordeiros; Quadrilha: conjunto de ladrões ou malfeitores (essa a gente usa atualmente no Brasil até pra colarinhos brancos, né mesmo? Virou moda); Súcia: conjunto de desordeiros ou malfeitores. Ufa! Viram só o que eu disse?! Não acreditaram?! Confiram lá no dicionário, são nada mais, nada menos do que nove (9) os coletivos que encontrei para designar essa escória! Por que será que precisamos de tudo isso, só pra falar de gente ruim??? Alguém arrisca um palpite? Vou começar, expondo minha teoria sobre isso. Não sei se outras línguas têm a mesma quantidade de coletivos desse gênero; se alguém que entender com mais aprofundamento de outra língua quiser colaborar, agradeço. O espaço fica aberto aqui nos “comentários”. Mas pensem só comigo: se agora temos de tudo no Brasil em termos de banditismo; se temos até mesmo um deputado-presidiário, que foi mantido no congresso pelos próprios pares, mesmo com acusações de corrupção comprovadas, é realmente necessário dispor de tantas maneiras de dizer, não acham? E antes que alguém me alerte para o fato de eu ter escrito congresso assim mesmo, com letra minúscula, digo desde já que foi proposital. Nosso congresso, em termos de atitude e de representatividade, anda cada vez mais minúsculo! A mim, asseguro-lhes, ele não representa já há muito tempo, se é que um dia foi capaz de me representar. E depois, tanta gente, de todos os escalões, esbraveja quando a juventude deste país tão sofrido e enxovalhado bota a cara (limpa) na rua. Com essa política mumificada que temos, contanto com congressistas que fazem parte do nosso cotidiano político há mais de cinquenta (50) anos, demoramos muito para ir para as ruas. E olha que já está passando da hora de voltar! Vândalos, destruidores, há em todos os lugares. Nesses movimentos dignos de reivindicações, infelizmente também há que haver. Mas a maioria somos nós, os brasileiros já fatigados de tanta ladroagem, de cima para baixo e debaixo para cima; fatigados de tanta bagunça; de tanta crueldade. Com quase uma dúzia de coletivos, não há palavras capazes de expressar a indignação generalizada deste país, que paga os impostos mais abusivos do mundo e recebe os piores serviços que se poderia obter dos prestadores. Basta, Brasil!

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Um Dia de Mona Lisa

Desta vez publico um texto inédito sobre minha experiência sensorial com a pintura, apesar da cegueira. Espero que gostem! Sábado pela manhã. Dia ensolarado, preguiçoso, último dia na Terra em que se pensa em estudos,em ler, em raciocinar demais. Mas às vezes, quando se escolhe fazer uma Pós-Graduação, a gente não tem muito por onde fugir: os sábados são normalmente os dias premiados; e, também naquele dia, assim era. Aula de Produção de Texto – especificamente, pretendíamos atacar a complicada distinção entre tipos e gêneros textuais, uma das mais intrincadas e palpitantes discussões da linguística contemporânea. Assunto que vinha e vem consumindo os principais nomes da área que conhecemos na faculdade e que, naquele dia, nos consumiria também. E como professora, que tentaria nos conduzir pelos dionisíacos caminhos que ligam os tipos e os gêneros dos textos, orais e escritos para complicar mais um pouco, tínhamos a professora Elisabeth, que para nós, já há alguns anos, desde a Graduação, era simplesmente a Beth. Mas o apelido curto, carinhoso da forma como até hoje o evoco, teve, desde que a conheci, um bocado de temor para muitos dos alunos. A Beth, durante todo o tempo em que convivi com ela, sempre foi sim uma professora indiscutivelmente enérgica, dada a rompantes repentinos e devastadores, mas que logo passavam, como se tudo tivesse estado inabalavelmente calmo durante o tempo inteiro; assim, era preciso estar preparado para enfrentar a tempestade a qualquer momento, porque era certo que a calmaria viria em seguida. Esta era a presença, que igualmente sabia ser delicada e terna com aqueles que dessa forma aprendessem a conhecê-la, que tínhamos conosco naquele dia. Começaram então as apresentações das famosas transparências da Beth, e, abordando-se a tipologia das descrições, iniciaram-se também as aparições das diversas paródias de Monalisa, acompanhadas da figura original, claro. Os sorrisos e outras expressões faciais da classe apresentavam-se a cada paródia e permeavam as descrições feitas delas. Ah, as descrições... Elas é que me salvavam um pouco. Quando a gente persegue os acontecimentos só ouvindo, prestar atenção às descrições alheias e captar cada detalhe que normalmente passaria despercebido é fundamental. Tudo estaria perfeito para o bom entendimento da sala e para os planos tão cuidadosamente preparados pela Beth, não fosse por um pequeno detalhe: eu nunca havia visto nada, simplesmente porque não vejo, real assim, diferente assim, normal, assim. Então, consequentemente, nunca havia visto a Monalisa e não tinha a mínima ideia de muita coisa do que estava sendo dito, tanto pela Beth, quanto pela classe, mas, persistente, continuei atenta até o fim das descrições de Monalisa; eu só admitiria que não sabia quase nada sobre isso no momento certo de admitir, que ainda demorou um pouco a chegar. O pouco que eu sabia da pintura mais famosa de da Vinci, colhendo um detalhe aqui e outro ali com o passar dos anos, era que se tratava de uma mulher que tinha o que muitas pessoas chamam de um meio-sorriso, cabelos compridos repartidos ao meio e vestes simples, mas isso definitivamente era muito pouco para a quantidade de detalhes que as descrições pormenorizadas da Beth evocavam, acentuando para nós uma das finalidades primordiais desta tipologia textual. Na escola, ainda durante a adolescência, eu tinha uma colega que insistia em me chamar de Monalisa – dizia que era por causa dos meus cabelos – mas nunca liguei muito para isso. Me lembrei desse fato com saudades daqueles tempos e achando engraçado e fui deixando a aula fluir. Até que percebi que não haveria outra saída se não compartilhar socraticamente a minha quase ignorância sobre a Gioconda. Esperei um silêncio da sala e disparei: - Beth, como é a Monalisa? Só então todas as pessoas que estavam na sala se deram conta de que aquele quadro era praticamente desconhecido para mim, do mesmo modo como a grande maioria das pinturas. Esperei por uma descrição pormenorizada em palavras, por detalhes não sabidos: cores, a postura, o rosto... E, de certa forma, tive tudo isso, mas não foram palavras que me trouxeram a Monalisa, e sim gestos que, de início, me deixaram atônita; contentíssima, mas atônita. Beth veio vindo na minha direção, enquanto eu sentia se aproximar o perfume suave que ela sempre usava, pensando: - Ué, como será que ela pretende responder a minha pergunta? O que será que vai fazer? Estávamos todas sentadas em cadeiras de plástico acompanhadas por mesas quadradas, cada uma com a sua. Beth se aproximou da minha diagonal superior direita e me disse, séria, para sentar com as costas retas na cadeira; obedeci. Então, ela pôs no lugar, com suavidade, os fios desalinhados dos meus cabelos de modo que ficassem repartidos ao meio como os da Monalisa, e com ambas as mãos, uma de cada lado, pegou no meu rosto com modos delicados e o fez virar um tantinho para a direita. Nesse momento entendi a forma que ela havia escolhido de responder a pergunta que fiz e descobri qual a minha parte nessa demonstração: congelar a imagem, conservar cada detalhe que os gestos dela meio que desenhavam usando de forma concreta o meu próprio corpo, para obter, no final, um pouco da imagem da Monalisa projetada em mim. Então, acrescentando novos detalhes àquela imagem em formação, continuou a voz da Beth sob o silêncio paciente do restante das meninas, cruzando meus braços sobre o peito, um sobre o outro, de modo a colocar as palmas das minhas mãos apoiando as partes externas e laterais dos cotovelos opostos: - Dá um sorriso. Assim fiz, mas aquela experiência tão inusitada me deixava tão feliz com a descoberta que ia gradualmente se formando em mim, que aquilo que era para ser um sorriso enigmático acabou se revelando um sorriso de orelha a orelha, como se diz. - Não! – disse Beth, séria, mas com nítida vontade de sorrir também. - Você sorriu demais! A Monalisa não é assim. Ela tem um sorriso enigmático. – continuou a explicar, agora com seriedade completa na voz, como a relembrar cuidadosamente cada detalhe, a fim de me proporcionar a melhor concretização possível. - Vamos ver se consigo te descrever com propriedade como é um sorriso enigmático: diminui, vai diminuindo até eu dizer que está bom. Pensei em como seria difícil fazer aquilo, mas eu não desistiria nos retoques finais da projeção da pintura, afinal de contas, não é todo dia que alguém tem diante de si a oportunidade de personificar a Monalisa sem jamais tê-la visto, e, naquela hora, eu era a Gioconda! eu. Tratei de conservar com afinco os outros detalhes conseguidos nos minutos anteriores e me concentrei. Me lembrei que as rosas eram assim: grandes, pujantes a seu modo quando ainda frescas, diminuíam de tamanho conforme a passagem dos dias; era aquilo então que eu teria de fazer com o meu próprio rosto: diminuir o meu sorriso sem apagá-lo por completo. E assim foi: Tratei de ir contraindo vagarosamente a musculatura da face até que sobrasse apenas um movimento dos cantos da boca, prestando minuciosa atenção aos músculos em retração para não enrijecê-los ou movê-los rápido demais, como quem toca uma melodiosa e melancólica sanfona que lentamente se fecha em suas notas longas e plangentes, e, sim, estava conseguindo, porque conforme aquele meu sorriso murchava, sendo porém ainda sorriso, fui ouvindo da Beth, paciente a minha frente, olhando e esperando: - Isso! Assim! Um pouco mais! Quer dizer, um pouco menos! Ah, você entendeu. – disse ela sorrindo com ternura cuidadosa e ainda um pouco de prevenção, para não me contagiar e estragar a performance, eu acho. – Falta pouco. – completou. - Aí! Assim! Isso! Yara, sinta bastante, guarde bem, este é o sorriso da Monalisa. – disse ela, agora sorrindo abertamente, satisfeita. Contente, com expressão de “Missão cumprida!” no rosto, afastou-se para continuar a aula, suspensa por aqueles minutos, pois todas as alunas, naquele dia, foram gentis e silenciosas expectadoras e cúmplices da minha descoberta. A minha descoberta! Naquele dia eu soubera o que tantos espectadores do mundo todo contemplam naquele pequeno quadro de da Vinci ou em suas tantas reproduções. E foi tanto o encantamento da descoberta, que fiquei com posição e sorriso enigmático de Monalisa até a aula acabar, o que durou ainda mais de uma hora, fazendo penetrar mais a cada minuto a Monalisa em mim. Eu sabia que muito dificilmente voltaria a ter uma oportunidade como aquela e queria aproveitar cada minuto... Vários anos já se passaram desde então. Há não muito tempo, tive a oportunidade de relatar a Beth a importância dessa experiência para mim e de agradecê-la por isso. Quando eu disse que gostaria de agradecer por algo que ela havia feito por mim há muito tempo, Beth afirmou ter certeza de que eu estava falando da nossa experiência com a Monalisa. - Percebi, no momento mesmo em que compunha os detalhes no seu corpo, o quanto aquilo estava sendo importante para você. – disse ela. - Executei um procedimento comum de sala de aula, que deveria ser uma maneira de agir constitutiva de todos os educadores, mas percebi naquele momento que a importância desse procedimento repercutiria na sua vida. – reconheceu ela ainda uma vez durante os e-mails que trocamos sobre esse assunto. E assim é. É claro que não sou a Monalisa; aliás, ninguém realmente sabe quem ela é: se a esposa de um comerciante florentino, se o alterego de da Vinci, se a representação feminina de uma suposta paixão masculina do pintor. E este mistério já dura quase 500 anos. Mas o fato é que, de alguma forma, a Monalisa, seja ela quem for, está em mim, ganhou vida uma vez mais com a representação que involuntariamente protagonizei, e agora, vive novamente, nos registros que estes escritos hão de conservar. Limeira, quinta-feira, 23 de setembro de 2010

domingo, 4 de agosto de 2013

O Verso e O Reverso

Umas horas atrás estava assistindo na televisão ao caso de um rapaz que tinha um tumor no cérebro e precisava fazer uma cirurgia, cujo resultado poderia afetar a área da linguagem. Se bem entendi, os médicos primeiro o anestesiaram o suficiente para iniciar o procedimento, e depois o acordaram, para que um deles o estimulasse a falar, enquanto a outra, com a cabeça do jovem aberta, mapeava suas reações por meio de exames e decidia qual área do cérebro poderia ser operada sem afetar a habilidade da fala do rapaz. A cirurgia foi bem-sucedida tanto na retirada do tumor quanto em não afetar as habilidades linguísticas do jovem. Os mesmos médicos diziam que um procedimento desses não seria possível há apenas dez anos. Assim, fiquei pensando como a medicina tem evoluído de uns tempos para cá! E nessas reflexões me lembrei de uma outra conversa que tive uma vez, com o meu otorrino – Ricardo - e minha mãe, durante uma consulta. Ricardo me perguntou se eu sabia, fazendo parte também do mundo das pessoas com deficiência, o porquê de muitos surdos serem tão resistentes a implantes cocleares, que poderiam fazê-los ouvir ou voltar a ouvir, se bem me lembro. Relatou-me que sente certo desapontamento com essa conduta, porque os médicos pesquisam tanto, na firme certeza de estarem fazendo um bem, que, nessas tais ocasiões, acaba não sendo aceito pelos beneficiários em potencial. Respondi que não sabia exatamente o porquê, mas que eu igualmente não gostaria mais de voltar a ver, se me fosse possível agora. Recordo-me também da perplexidade de ambos com essa revelação repentina, que lhes deve ter parecido aterradora a julgar pelas reações: - Por quê? – interpelou-me Ricardo novamente, talvez sentindo que, ainda que de uma forma torta, eu poderia responder a pergunta que ele tantas vezes se fizera. E minha resposta, que para mim é absolutamente normal, parece que demorou a fazer algum sentido para os dois. Sou cega há mais de trinta anos. Leio sempre livros e resenhas de livros de Oliver Sax; sei que os procedimentos que ele apresenta nem sempre têm os resultados esperados pelos pacientes, e o Dr. Sax acabou dedicando a vida a estudar os envolvimentos emocionais dos pacientes com suas novas situações. Ainda bem! Porque eu quis muito ver quando era criança e adolescente, mas depois de ter conhecimento desses apontamentos, fui perdendo a vontade e descobrindo que estou bem da forma como estou. Por não ver, meus sentidos do tato, olfato, audição e paladar acabaram por desenvolver-se de modo a me fazer ter as mesmas percepções que todos têm por meio da visão através deles. Sei que a visão é o sentido que mais facilmente dispersa as pessoas. Portanto, suponhamos que eu me submeta a algum procedimento médico revolucionário e passe a enxergar, digamos, 10%. Sejamos realistas e práticos: conheço bastante gente com baixa visão; 10% nada significam no desempenho de grande parte das atividades cotidianas, isso para não mencionar as incomuns. Assim, além de não poder contar com a visão, eu ainda teria diminuído o desempenho de meus outros sentidos, por influência desses 10% de visão que “receberia”. Desculpem a falta de modéstia, mas eu só aceitaria uma cirurgia como essas se me fosse garantido resultado positivo, 100% e colorido! Sei que estou pedindo demais, porque esse tipo de garantia ninguém dá, nem pode dar. Logo, desculpem os bem-intencionados que me desejam visão, elevando preces a Deus por isso a cada dia, mas me sinto bem da maneira como estou. E essa é a opinião de vários outros cegos que conheço e com quem convivo diariamente. É claro que, no meu caso, há uma escolha. Ainda que não compreendida por muitos, é uma escolha possível e factível. O rapaz do programa a que assisti não podia escolher. Naquele caso, a cirurgia era tudo ou nada; graças a Deus, deu certo. E graças a Deus, Ricardo compreendeu também minha posição, anunciando que era preciso respeitá-la, que era preciso respeitar cada pessoa em suas diferenças peculiares; talvez essa posição tenha até mesmo trazido um pouco de luz à reflexão sobre esse tema, que já o acompanha há tanto tempo. E fico feliz também porque o posicionamento dele acabou convencendo e aparentemente trazendo também algum conforto para minha mãe. Explicar e fazer compreender uma escolha como a que fiz sempre é uma tarefa difícil, ainda mais para os familiares, que de um modo ou de outro idealizam o contrário; que bom que consegui!