terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Na Minha Biblioteca...


“Um livro aberto é um cérebro que fala; fechado, um amigo que espera; esquecido, uma alma que perdoa; destruído, um coração que chora”. (RabindranathTagore).


Escuto da janela cair essa chuva abençoada pela qual tanto esperamos depois de uma estiagem histórica e tão longa. Escuto ao mesmo tempo em que me lembro de uma notícia que vi ontem em um jornal na televisão. Dizia que choveu tanto no Rio Grande do Sul que, em uma escola, várias salas ficaram alagadas, inclusive a biblioteca. Olhando, minha avó contava que os livros das prateleiras inferiores literalmente boiavam, desamparados. (desamparados é por minha conta). Essa imagem me lembrou uma outra, que me acompanha desde que me mudei da casa onde morava, da qual acho que só vou conseguir dar conta depois que me sentar e fizer exatamente o que estou fazendo agora: escrever.

Tive uma infância, em certa medida, solitária. Cresci rodeada de adultos. Brinquedos? Eu os tinha de todos os tipos, mas passei meio que à margem da etapa do esconde-esconde, do pega-pega, da queimada, de pular corda e subir em árvore, coisas que as crianças da minha idade ainda faziam. Isso tudo só periodicamente, quando meu irmão vinha me ver com os meus pais. As crianças da rua, conheci pouco. Me fizeram companhia desde cedo a música e os livros. Desde que me conheço por gente, estou cantando ou tocando alguma coisa.

Quando voltava da escola, terminava os deveres e não queria mais as bonecas ou a música, eu ia ler. Na época, a única maneira como um cego podia ler era o método Braille. Os livros gravados em fitas e cds, os eletrônicos baixados no computador, os livros digitais vieram todos bem depois do momento em que essa história começa. Por isso, eu tinha que reler muitas coisas, pois um livro novo em Braille era coisa rara. No início, eu só tinha aqueles que minha avó mesma havia datilografado em Braille, da escola. Alguns anos depois passei a adquirir, bem devagar, em instituições especializadas, clássicos da literatura em Braille, que eu devorava imediatamente e guardava na estante correndo. Me lembro de reclamar para minha avó que todo mundo podia ir à livraria ou à biblioteca, escolher o que quisesse; eu não, e mesmo assim as pessoas da minha idade não queriam saber de ler. Ela tentava apaziguar, mas sabia que aquilo me deixava uma fera! Minha bisavó, que estudou só até a chamada quarta série, costumava dizer que eu jamais arrancasse uma página de um livro, porque se eu fizesse isso, ele iria chorar. Guardei esse conselho comigo toda a vida, porque para mim, todo livro novo que chega é um novo ente que vai me acompanhar, a partir do momento em que somos apresentados, ao longo da caminhada.

Quando eu tinha uns quinze anos, me lembro de ter visto os primeiros livros gravados em fitas cassete. Eu emprestava os livros da biblioteca e lia que lia; depois vieram os cds e eu lia que lia... Aos dezoito fiz meu primeiro trabalho da faculdade no computador. Um novo mundo, o da tecnologia, me abria de vez as portas. A universidade demandava títulos muito específicos da área das letras, que eu não encontrava em Braille nem gravados em lugar nenhum. Então, pessoas do meu convívio, amigos, parentes, liam os livros impressos em tinta que eu comprava e gravavam, e eu escutava. E junta que junta livro... E assim foi durante muitos anos, minha biblioteca ia crescendo. E ainda mais cresceu depois dos livros eletrônicos e digitais.

Até que chegou um dia ainda não muito distante, em que minha vida sofreu uma grande reviravolta; eu precisava me mudar para um apartamento. Não haveria espaço para guardar os livros em Braille e as fitas; o piano, também, eu precisaria vender; e vendi, para alguém que eu sabia que cuidaria bem dele. Os livros foram dispensados em todos os lugares onde tentei doá-los, inclusive em uma escola para cegos. Aproximava-se o dia da mudança e eu tinha que dar um destino a tudo aquilo que havia juntado... Depois de relutar muito, aceitei de má vontade a ideia de que os meus livros se tornariam alguma coisa reciclada... Coloquei tudo na garagem e pedi que me dispensassem dos momentos finais; eu não queria vê-los indo para a caminhonete. Fui atendida, subi para o meu quarto. Eu me lembrava de tudo o que minha avó datilografou para mim, de todas as fitas que tinham sido gravadas, dos rostos conhecidos que tinham feito as leituras, de todo o tempo que tinham dedicado, de todos os livros impressos em Braille que eu tinha lido e guardado em casa, caso tivesse vontade de ler de novo. Me lembrava dos meus amigos cegos que hoje não querem mais ler Braille por causa dos computadores; me lembrava da grande quantidade que conheço de professores que trabalham com o ensino de cegos e já me disseram com todas as letras que o ensino do Braille não é mais importante, isso aqui mesmo, em Limeira. Me sentia como aquelas mães desesperadas, que têm os bebês às escondidas, enrolam em um pano e colocam no lixo... E ainda hoje, quando penso nos livros que tive que abandonar às próprias más-sortes, na chuva, no sol, na sujeira pelas quais devem ter passado, é assim que me sinto. Aquele dia foi um dos de maior impotência que já vivi.

Conservei os cds, os livros impressos em tinta. Hoje compro muito menos, mas é só assim, com esses dois formatos de livros, a passos lentíssimos, que minha biblioteca ainda cresce. Só aqui entre nós: de vez em quando vou à estante, pego um livro que sei que não vou poder ler agora, e sinto o cheirinho de papel... Mudei-me para o apartamento. O piano agora é digital. Os livros da infância, da adolescência e da juventude ficaram na lembrança. Já me peguei várias vezes pedindo a Deus para conseguir preservar a qualquer custo os livros que restaram e o piano, seja lá para onde eu novamente tenha que ir... Não sei como seria se eu tivesse que passar por isso de novo.

E ontem me deparo com aqueles livros todos na tv, nadando na chuva... Senti que finalmente era hora de escrever, de me libertar; que eu finalmente teria forças e saberia o que dizer... E que finalmente, talvez, depois de tanto tempo passado, os meus entes-livros poderiam me perdoar...

sábado, 13 de dezembro de 2014

Uma Folha Verde

“Sim, eu quero saber. Saber para melhor sentir. Sentir para melhor saber”. (Paul Cézanne).

(Já que a reencontrei há poucas semanas, dedico estes escritos à tia Cleidi, que fez parte desse momento sem jamais saber a importância que ele tinha ou teria. Os dedico também à Mariana, para quem esta história, um dia, foi quase tão importante quanto o foi para mim).


Essa história foi uma memória durante muito tempo. Hoje, elaborada, contada informalmente algumas poucas vezes, está pronta para ser escrita. Ou seria sua protagonista quem está pronta para contá-la?... Não importa. De qualquer maneira, foi assim:

Um dia de escola de criança, aparentemente como qualquer outro. Tão comum que a garotinha não sabia que, dentro de poucos minutos, sucederia algo, não necessariamente ruim, mas que mudaria para sempre o entendimento que ela tinha de si mesma. A melhor amiga, em pé, lhe ofereceu a mão, que ela aceitou como em todos os dias, e se foram as duas para o parquinho, aproveitar a melhor parte do dia quando a gente tem seis anos: o recreio. Se comeu? Deve ter comido, ela não se lembrava. Permaneceu registrado daquele dia apenas um único acontecimento.

Sentaram-se na areia todas as crianças juntas em algazarra, com os baldinhos e aqueles rastelos todos, pás, conchas... Como sempre, a amiga diligentemente postada ao seu lado direito. Embora tivessem a mesma idade, ela estava sempre alerta para o que a outra precisasse. Precisava ir a algum lugar na escola: vamos. Precisava encontrar a escova de dentes no meio das outras: aqui. Precisava pegar o lápis da cor certa no estojo para fazer a atividade como a professora pedia: é esse, ó... E o lápis certo estava ali, ao alcance da sua mão esquerda.

E, assim, a tarde transcorria com tranquilidade. De repente, a garotinha teve a atenção atraída por um diálogo vindo de crianças ali perto:

- Olha, uma folha...

- Nossa! Que bonita!

- Que grande!

- É, olha só, que verde legal!!!

Largou o baldinho e as ferramentas e levantou a cabeça intrigada, monologando consigo mesma: grande, ta bom. Bonita, tudo bem. Mas, verde legal?! O que seria isso, um verde legal?

Pediu para ver a folha, que veio passando de mão em mão até chegar à sua. Tocou cada pedacinho; não viu nada de diferente, nada de textura de verde. Cheirou; nada; cheiro de areia, cheiro de folha, mas nada de cheiro de verde. Pôs perto do ouvido e tudo continuava igual, vai ver que o verde não tinha som. Devolveu a folha a alguém e fez em voz alta a pergunta que mobilizava seus pensamentos às crianças que se assentavam ali perto:

- Que que é isso, verde legal?

- Verde... Bom... Ah, assim... É legal, sabe? Bonito... Ah, verde... Oras, Yara, verde é verde, e pronto, ué...

Claro; que verde era verde e pronto ela já sabia. Como percebeu que daquele mato não sairia mais coelho, resolveu deixar pra lá, perguntar a uma pessoa que soubesse... Uma pessoa grande. Voltou para a areia e o baldinho até terminar o intervalo.

Chegou de novo à classe, sentou-se, esperou pacientemente que a professora passasse as atividades. Quando recebeu a sua e percebeu que todos já começavam a trabalhar, enquanto pegava o papel das mãos da professora, criou coragem e foi dizendo meio reticente:

- Ô tia... Eu queria perguntar uma coisa...

- O quê? – respondeu a professora, a um só tempo terminando de distribuir os papéis às crianças ali da mesma mesinha e virando-se um pouco para olhar a meninazinha que falava com ela, como quem tem um olho no gato e outro no peixe. – Pode perguntar.

- Ah, não - respondeu a garotinha. – Vem aqui perto, por favor, eu queria perguntar uma coisa séria.

- Ta bom, então espera um pouquinho só que a tia já volta.

Ah, essa história de esperar um pouquinho só ela já conhecia, mas tudo bem; sempre acabava dando certo mesmo; E deu.

- Pronto – veio dizendo a professora enquanto se aproximava veloz – To aqui, só pra saber a coisa séria que você queria perguntar... Pode falar.

E como criança dificilmente faz rodeios, a garotinha virou a cabeça para a esquerda, de onde vinha o som da voz da professora, levantou-a um pouquinho como fazia quando queria falar com ela e disparou de uma vez só:

- Tia, o que que é verde???

- O quê? – perguntou a professora como quem se esforça para sintonizar uma frequência certa.

- É isso mesmo que eu quero saber, o que que é verde??? – repetiu a garotinha com vivacidade determinada – É isso, pronto, o que que é verde?

Para surpresa da menina instalada na cadeirinha baixa, a professora, jovem e antes jovial como sempre, apoiou uma mão na mesa e veio baixando o corpo, séria, até sentar-se no chão ao seu lado; tudo isso muito devagar... Para ganhar tempo, quem sabe. Primeiro a calça jeans roçava a sua pele; depois o cabelo da professora, grosso, longo, crespo, forte, veio chegando perto... Mais perto... Passando pelo seu próprio cabelo, depois pelo seu rosto, e, de repente, pronto, a professora estava sentada, ali, pequenininha, igual a ela.

- Yarinha... Bom... O verde... Olha... Sabe, a tia acha melhor você perguntar isso pra vó quando chegar em casa hoje... Tudo bem?

- Ah, ta bom... Tudo bem... Você não sabe responder, né? Eu sei... A Lu também não sabia... Mas eu achei que você sabia... Sabe, tem um monte de gente aqui que não sabe o que que é verde...

A professora levantou-se desconsertada, talvez pela pergunta que ouvira, ou quem sabe pela resposta assustadoramente compreensiva que depois recebera da criança, e, caminhando atabalhoadamente, foi sentar-se à sua mesa, vindo de vez em quando para verificar o andamento das atividades dos alunos e sempre demorando-se um pouco mais ao lado da garotinha que tão decididamente a interpelara; talvez procurando alguma palavra que não surgiu em nenhum momento naquele dia.

A menina, por seu turno, queria chegar logo à casa, afinal, não era qualquer pessoa grande que servia para responder sua pergunta: tinha que ser a vó, que para ela era mãe e sempre seria; tinha que ser a vó, que sempre sabia tudo. Se a professora tinha dito para perguntar para a vó, então tinha mesmo que ser ela, não tinha jeito.

Finalmente lhe disseram que a avó tinha chegado e que ela podia ir. Chegou à casa, jantou, conversou, esperou. Quando conseguiu ficar sozinha com a avó, procurou as palavras para fazer a pergunta que queria e que já por duas vezes tinha ficado sem resposta, mas acabou usando as mesmas anteriormente tentadas naquele dia:

- Mãe, o que que é verde?

A avó-mãe, que nunca lhe tinha escondido nada, começou, devagar, mas resolutamente:

- Verde?... Bom, filha, senta aqui. Olha, o verde é uma cor bem bonita, das folhas, das matas... Algumas horas o mar também é verde. Mas acontece que você não vai conseguir ver o verde como as pessoas fazem, porque elas fazem isso com os olhos e os seus não funcionam. Lembra que eu te contei aquela história que o médico te deixou muito tempo no bercinho? Então, quando você saiu de lá, os seus olhos já não estavam mais funcionando. Eles estão aí, sabe, mas não funcionam. Como quando você quebra um brinquedo, ele continua aí, mas não funciona mais.

A menina fez um sinal de positivo com a cabeça – Entendi.

- Mas olha – continuou a avó – agora que você já sabe que os seus olhos não funcionam, que já entende o que eu quero dizer quando conto isso, vai me prometer que não vai ficar triste e que vai responder todas as perguntas que te fizerem, como você sempre tem feito, porque assim você aprende com as perguntas das pessoas e elas aprendem com as suas respostas. Não deixa nunca de responder, ta bom? O que você não souber, depois me pergunta, mas não deixa nunca de responder.

A menina concordou que assim estava bem e saiu. Continuou sem saber o que era o tal do verde legal, e agora já tinha entendido que não iria mesmo saber. Se a avó não tinha palavras para lhe explicar o que perguntava, ninguém mais as teria. Entendeu que se não saberia o verde, também não saberia o amarelo, o azul nem nenhuma das outras cores. Cresceu e continua sem saber, mas não desistiu ainda de perguntar. Porém, agora, cada tentativa de resposta de alguém é um pouquinho mais de cor que ela consegue juntar. Agora, de cada cor já tem uma ideia; Agora é como se cada tentativa de cada pessoa deixasse cada cor um pouco mais colorida. Agora ela já sabe que nunca vai chegar ao fim da busca, mas sabe também que, até o último dia, vai continuar tentando.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Recuerdos Del Paisito: ¿Qué Uruguay Tiene De Brasil?


Bem, ao que parece, esta é a última das últimas crônicas sobre o Uruguai. Começo a escrever, recordo o vivido e o relatado e constato que os dias no paisito já vão mesmo ficando longe... Só consegui mantê-los por perto até agora por causa das crônicas, sei disso. Mas chegada a hora da última delas, não há como não notar a passagem implacável do tempo. Consulto o caderninho de anotações; vejo que tudo, rigorosamente tudo foi contado.

Assim, para me despedir dos intrépidos brasileiros e uruguaios leitores desta série despretensiosa de crônicas, dedico-me a mostrar, afinal de contas, que traços o Uruguai guarda do Brasil; ao menos alguns deles, os que pude notar ao longo de uma semana. Porque há, sim, em muitas ocasiões, elementos que trazem de volta o Brasil aos brasileiros que passeiam ou mesmo moram no Uruguai.

Para começar, não é nada difícil ouvir o som do português brasileiro no Uruguai. Quase em todo lugar onde se chega, em muitas das esquinas que se dobra, se um brasileiro apurar o ouvido, muito certamente ouvirá o acento familiar de sua terra, principalmente nas áreas mais turísticas do país, agora que os brasileiros vêm cada vez mais descobrindo as belezas do Uruguai e a hospitalidade tranquila, cortês, discreta e sempre atenta dos uruguaios. Os ônibus de turismo, por exemplo, têm mais brasileiros do que qualquer outra coisa... Prova disso é que saí daqui de Limeira e, fazendo o citytour de Montevidéu, no segundo dia da viagem, conheci um casal de Brasileiros de Sampa, Alessandra e José Eduardo (acompanhados pela mãe dela, Ana). E tinha que ser naquele dia, naquela hora, porque depois do almoço partiram para Punta Del Este, tomando nossas viagens rumos bem diferentes, e não mais os vi. Contudo, apesar do pouco tempo, trocamos ideias, contatos e sempre estamos nos falando... Mundo pequeno...

Mas, como eu dizia, quando a gente diz que é brasileiro no Uruguai, na grande maioria das vezes, o interlocutor abre um sorriso e se abre por inteiro; conta o que conhece do Brasil; diz que já está acostumado à alegria ruidosa dos brasileiros; faz perguntas, quer saber, faz o máximo possível para aproximar-se do português se percebe que não é entendido em espanhol. Isso quando os uruguaios não falam o português mesmo, principalmente os gaúchos da fronteira ou aqueles que por alguma razão têm uma ligação estreita com o Brasil.

Outro traço brasileiro sempre presente no Uruguai é a música: da sertaneja à mpb, passando pelo chorinho e outros gêneros mais, o português brasileiro cantado está sempre saindo dos auto-falantes, assim como os ritmos quebradinhos e as melodias dissonantes tão típicas do Brasil. Inclusive, não poucas vezes ouvi uruguaios cantando em português. E isso tudo lá, bem longe do Norte, bem distante da fronteira com o Brasil. Cheguei mesmo a ouvir no rádio um anúncio de um show da Gal Costa que aconteceria em Montevidéu em poucos dias, cujos ingressos estavam sendo vendidos.

E como não poderia deixar de ser, a presença das novelas brasileiras se faz sentir fortemente no Uruguai. Dubladas em espanhol, claro, como fazemos com as mexicanas aqui, mas sempre há uma oportunidade para um brasileiro encontrar uma de suas novelas para assistir, se tiver um tempinho de passar pelos canais. E, claro, temas brasileiros também andam pelos noticiários. No meu caso, ouvi sobre a eleição presidencial, quando a candidata Marina Silva estava no auge de sua campanha e de sua popularidade.

Enfim, para todos os brasileiros com os quais cruzei no Uruguai por alguma razão, de passagem, a palavra que mais frequentemente resumia o país e o povo era satisfação. Quanto a mim, penso que a palavra que melhor os resume seja afetividade; palavra não, expressão. Afetividade cálida é a expressão que melhor os resume. E levada por essa afetividade, um dia, eu volto... Quem sabe?! Assim, para encurtar a despedida que não aprecio, termino a crônica e a série simplesmente com um “até breve”!

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Recuerdos Del Paisito: Uruguay, Un Poco De Sociopolítica

Uma das coisas que notei com simpatia ao passar uma semana entre os uruguaios foi a maneira genuína como falam de seu país, como prezam seu chão, seu lugar no mundo. É claro que escrevo como uma observadora estrangeira, turista, que teve pouco tempo para poder ficar ao par das coisas, mas penso que não se trata nem do patriotismo exacerbado que muitas vezes parece caracterizar os estadunidenses, nem da falta de patriotismo que infelizmente acomete o Brasil, característica que só se modifica aqui quase que exclusivamente durante as copas do mundo. Esse papo de que o gigante acordou é balela; ele está, novamente e por tempo indefinido, no mesmo estado letárgico do qual saiu momentaneamente no ano passado. Recentemente li um artigo que definia o Uruguai como um país de grandeza discreta, e é asssim, discretamente, que os uruguaios descrevem as conquistas de seu país; discreta porém alegremente, com reconhecimento. Valorizam o que conseguiram, satisfeitos pela caminhada, mas sempre de olhos postos no futuro, criticamente, com a humildade que lhes é tão característica, sabendo que é preciso agir firmemente para que as recompensas venham e para que a maior quantidade possível de problemas possa ser evitada, no curto, médio e longo prazo.

Na crônica anterior a esta, em que abri alas ao general Artigas, foi possível perceber, examinando mais detidamente sua figura, como o Uruguai, desde seu início, caracterizou-se ou tentou caracterizar-se por uma postura integracionista de nação. Basta, para isso, recordar que artigas tinha seguidores de diversas proscedências, que muitas vezes professavam sua fé de maneira distinta uns dos outros e provinham de diferentes estratos sociais. Não estou aqui dizendo que isso tenha dado certo sempre, nada dá sempre certo, até por essa ser uma questão de pontos de vista. Mas a postura integracionista foi a opção escolhida pelos uruguaios várias vezes ao longo do caminho e parece ter sido exitosa em muitas ocasiões, como deve ter sido possível notar àqueles que me acompanharam até aqui.

Essa postura integracionista de nação pode ser constatada e confirmada por outros indícios além da figura do prócer da pátria uruguaia. Vejamos: o Uruguai é um país que não tem religião oficial prevista em constituição, embora uma parcela significativa de sua população remeta à tradição católica. Esses modos laicizantes proporcionam que a igreja não interfira decisivamente nas iniciativas civis do país. Disso resulta um debate democraticamente saudável, que trata a religião como uma das facetas a ser analisada nas situações, mas não de maneira predominante. Tal debate só está arraigado e definido tão fortemente na política uruguaia porque aparece já na vida cotidiana do país. Essa tendência pode ser percebida, por exemplo, quando em um romance como A Trégua, o consagrado escritor uruguaio Mario Benedetti mescla a suas reflexões políticas e/ou cotidianas um debate entre os dois protagonistas – namorados e com uma diferença grande de idade. Ambos, sentados na praia vazia, olham as ondas escuras e dialogam sobre a possibilidade ou não da existência de Deus: ele, racionalmente, defendendo que Deus não existe. Ela, sem precisar de comprovações para sua fé, sustentando que sim, ele existe e está em tudo e em cada coisa. Esse é um lance no relacionamento dos dois, mas trata-se de uma diferença que, embora exista dentro do casal e da obra literária em si, não é decisiva para o desfecho da trama. O livro se nos apresenta como uma microrrepresentação do próprio país.

Quanto à educação, no Uruguai ela é laica, além de obrigatória e gratuita, do ensino elementar ao superior, praticamente inexistindo o analfabetismo no país. E quando digo educação não me refiro a esse arremedo estatístico de escolarização global que temos, em que uma porcentagem imensa dos alunos é posta na escola graças a pífias recompensas monetárias governamentais e uma grandessíssima parte deles a frequenta sem aprender o que deve, nem da maneira como deve. O uruguaio é um povo politizado, consciente de seus deveres e direitos, crítico, desde o motorista ao empresário, e isso só se consegue com educação de qualidade.

Essa mentalidade crítica formada desde cedo e de maneira ampla e irrestrita entre a população do país deu lugar, desde logo na história, a posturas legais distintas que fazem do Uruguai um país de vanguarda. Em 1907, torna-se o primeiro país latino-americano a legalizar o divórcio, permitindo, ainda, que essa fosse uma iniciativa feminina já em 1913. Em 1932, passa a ser o segundo país a reconhecer o direito ao sufrágio feminino. No entanto, a aprovação e vigor de leis vanguardistas não significam que essas leis recebam 100% da aprovação dos uruguaios; aliás, em nome de uma real democracia, é muito bom que assim seja. Em 2013, torna-se o terceiro país latino-americano a permitir o aborto nas doze primeiras semanas de gravidez, apenas uma das medidas polêmicas aprovadas durante o governo do atual presidente, José Mujica, que lhe trouxeram críticas severas por parte de setores mais conservadores da sociedade. Também em 2013 o Uruguai se coloca como o segundo país sul-americano a aprovar o casamento igualitário, permitindo ainda o ingresso de homossexuais nas forças armadas. Retrocedendo um pouco na história, no princípio do século XX regula o consumo e venda do álcool, revertendo seus lucros à saúde pública, e em 2013 passa a ser o primeiro país do mundo a legalizar a produção, venda e distribuição da maconha sob o controle do Estado, medida que tem suscitado discussões calorosas no país.

O presidente Mujica goza de uma popularidade alta. Permite que pessoas socialmente menos favorecidas habitem o palácio onde deveria viver; usa apenas uma parte mínima de seu salário; vive em uma casa modesta e dirige um fusca azul. É conhecido por seu estilo austero de vida. Embora admirado por grande parte daqueles que governa, também há uruguaios que se perguntam por que seu mandatário adota esse estilo em que aos mais humildes é dado apenas o básico do básico; por que não se pode estender a eles também outras comodidades que, em nossos dias,são necessárias a um mínimo de conforto.

O fato é que, ao que tudo indica, José Mujica, que não pode reeleger-se, pois não existe esse mecanismo eleitoral nas leis uruguaias, conseguirá ajudar a eleger o candidato de seu partido – a coalisão de esquerda Frente Ampla. Trata-se do ex-presidente Tabaré Vázquez que, de acordo com as pesquisas, deverá voltar a governar seu país. Cabe salientar que, embora do mesmo partido, há diferenças visíveis entre os modos de governar de Mujica e Vázquez, o que, a se confirmar aquilo que predizem as pesquisas, deve preconizar mudanças em determinados rumos do país. No exato dia em que tivemos o segundo turno de nossas eleições presidenciais, os uruguaios votaram em primeiro turno para começar a decidir quem os governará pelos próximos cinco anos. Porém, as semelhanças param por aí. Enquanto aqui temos mais de trinta partidos políticos que parecem não atender a nenhuma outra ideologia que não seja a dos interesses próprios de cada candidato, estabelecendo coligações absurdas e alianças ideologicamente impensáveis às pessoas de algum senso, no Uruguai os partidos políticos são três, ideologicamente bem distintos, fenômeno que deveria verificar-se em qualquer país com intenções políticas realmente sérias. Lá, quando um candidato troca de partido, ele tem apenas duas opções: começar um novo partido do zero ou aposentar-se definitivamente da política. Evita-se, assim, esse troca-troca promíscuo de partidos que ocorre em certos lugares que nos são de alguma forma familiares.

Como em todos os países do mundo, governados pelos mais diferentes regimes, há pontos que os uruguaios gostariam de melhorar, de modificar, porque sempre vão haver e têm que haver; porque a estagnação é daninha em qualquer campo da vida. O que realmente me impressiona é saber que logo aqui, pertinho, há um lugar politicamente tão distinto, porque a vontade política é quase tudo quando se trata do bom governo de um país.

Bem à moda de Platão, termino este texto esboçando apenas um breve e despretensioso panorama, até porque a unanimidade dificilmente existe além do próprio vocábulo que a define. No entanto, dialogando platonicamente com os possíveis leitores desta crônica, deixo no ar uma pergunta: como um país pequeno, com pouca diversidade de fontes de renda, consegue fazer tanto, por exemplo, no que diz respeito à educação, isso para não mencionar outras áreas, enquanto que nós, um país de duzentos e poucos milhões de habitantes, farto em espaço e recursos capazes de fazer a economia girar, estatisticamente fazemos tanto e continuamos fazendo essencialmente tão pouco? A resposta pode ser dada mentalmente mesmo, pelos leitores aí do outro lado da telinha; um belo caso para se pensar... Eu, por minha parte, já tenho uma teoria; já vislumbro uma resposta.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Recuerdos Del Paisito: El General Artigas

Tendo chegado ao fim a viagem propriamente dita, com os lugares, paisagens, peculiaridades, pessoas que conheci no Uruguai, quase tudo já devidamente descrito e bem-guardado, devo começar a me despedir. No entanto, esta não será uma despedida breve. Minhas últimas três crônicas serão bastante pessoais: duas sobre como se originou e vem desenvolvendo esse pequeno e aprazível país e a última sobre aquilo que percebi que o Uruguai tem de Brasil, porque é muito provável e possível, quase inevitável, que um brasileiro que vá até lá se sinta em casa.

Iniciando então o fechamento desta série sobre o “Paisito”, me cabe falar a respeito de um personagem tratado no Uruguai com solenidade a um só tempo terna e reverente, cuja história é um mosaico mesclado de Europa e Banda Oriental: o general Artigas, prócer da pátria. O Uruguai laico, liberal e vanguardista de hoje, em certa medida, deve muito às ideias, por que não dizer, revolucionárias de seu herói nacional.

José Gervasio Artigas nasceu em Montevidéu, em 1764, proveniente de uma fidalga família espanhola. Nesse tempo, as terras a Leste do Rio Uruguai – Banda Oriental -, eram disputadas pelos impérios espanhol e português, por conta dos imensos rebanhos de gado e cavalos selvagens existentes no pampa. Ao redor de Montevidéu alargava-se a vasta campanha plana e verdejante. Conta-se que, lá pelos catorze anos, Artigas deixou sua casa na cidadela, reaparecendo anos depois, liderando índios charruas, minuanos e guaranis, bem como desertores espanhóis e portugueses e escravos fugidos. Todos esses eram os seguidores multiétnicos com os quais passou a conviver, chamados, em espanhol, de gauchos, e de gaúchos em português.

Aos trinta e três anos entrou para o serviço da Coroa Espanhola. Naquele país, em 1808, consolidando seu plano de tomar posse da Europa, Napoleão Bonaparte invade a Espanha, depõe o rei Carlos IV e entrega o trono usurpado a seu irmão José Bonaparte, enquanto a família real portuguesa se instala no Brasil, fugindo a destino similar.O caos instaurado na Espanha abre brecha às lutas de independência de suas colônias na América. Os atuais Paraguai, Peru, Chile, Argentina, Uruguai e fatias do que hoje é o Rio Grande do Sul declaram independência em 1810, formando a Junta de Buenos Aires. O governo de Montevidéu declara lealdade à Espanha.

Em 1811 Artigas deserta do exército espanhol e se une aos revolucionários com seu próprio exército gaucho. De seu cavalo, o general reunia combatentes por onde passava. Combatentes e suas famílias. Aquela nação nômade que se formava seguia seu líder por onde quer que ele fosse. Trajando endumentária gaucha, o general de olhos esverdeados, expressão sisuda e rosto bronzeado de sol pregava a liberdade civil e religiosa e a cessão de terras aos índios. As formações espanholas, estabelecidas de maneira lenta e disciplinada, eram sorrateiramente atacadas e debeladas graças à ligeireza das montarias das tropas artiguistas. Ainda naquele ano Montevidéu fica prestes a ruir na batalha de Las Piedras.

Sem saída, o governo da cidadela busca a ajuda do reino de Portugal, seu antigo inimigo. Carlota Joaquina, princesa dos reinos de Brasil, Portugal e Algarves e filha do deposto rei espanhol Carlos IV, mais do que de pressa faz atender ao apelo do governo de Montevidéu, com a intenção oculta de anexar a Banda Oriental aos territórios portugueses. Artigas foge com cerca de 80% daquela que um dia seria a população uruguaia para a atual província argentina de Entre-Rios, conseguindo tomar Montevidéu em 1814. Encerrado o domínio espanhol na região do Prata, a Junta de Buenos Aires tenta anexar a Banda Oriental à União Argentina, sendo impedida pelo exército de Artigas, que, combatendo seus antigos aliados portenhos, passa a ser novamente caçado por espanhóis e portugueses, além dos argentinos. Esse cerco dura até 1821, quando Artigas exila-se no Paraguai, até sua morte em 1850. O território uruguaio é anexado aos reinos de Portugal, Brasil e Algarves sob o nome de Província Cisplatina e, após a independência do Brasil, torna-se parte desse império.

Porém, o ideal do novo país que teria lugar na antiga Banda Oriental já tinha sido semeado. Em 19 de abril de 1825, um grupo liderado por ex-seguidores de Artigas – já exilado -, dentre eles Fructuoso Rivera, Manuel Oribe e Juan Antonio Lavalleja, e conhecido como os Trinta E Três Orientais, chega à cidade de Florida. Não eram apenas orientais nem apenas trinta e três, mas esse número corresponde ao grau supremo da Maçonaria e é oficialmente aceito no país. Em 25 de agosto do mesmo ano a Assembleia Constituinte se reúne e declara a independência da República Oriental do Uruguai, depositando aos pés daquela que seria mais tarde chamada Virgem Dos Trinta E Três Orientais, além da bandeira tricolor com três listras horizontais: vermelha, azul e branca – cores já disseminadas nos tempos de Artigas -, os rumos do novo país do qual ela seria um dia padroeira. Em 1828 esse ato ganha o devido reconhecimento por parte de brasileiros e argentinos e a história uruguaia ganha novos rumos.

Quando estive detidamente diante do monumento erigido a Artigas, ventava forte e chovia gelado na antiga cidadela que se fez grande. Ainda assim, a atmosfera solene mas não pesada reinava na praça. Do alto de seu cavalo alto, era como se o velho gaucho nos observasse a todos. A água tornava o piso escorregadio e liso, mas ninguém resistiria à oportunidade de chegar um pouquinho mais perto do prócer, até porque a chuva de Montevidéu não devia ser, para ele, nenhuma novidade. Ninguém resistiria e, claro, eu também não resisti.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Recuerdos Del Paisito: Colonia Del Sacramento

Neste estágio da viagem conhecemos lugares bastante distintos dos que havíamos visto até então. Viajando agora pelo Oeste do país se nos apresentou a produção de frutas, verduras, leite, mel... Estão presentes ali os vilarejos e em bem menor número são as árvores, visão oposta à que tivemos quando fomos rumo ao departamento de Maldonado. No entanto, chama a atenção a presença abundante, em determinado trecho do caminho, das palmeiras canarienses.

Trafegando pela estrada plana e serpenteante vamos descobrindo que está presente com grande força nessa região a influência dos Imigrantes. A chamada Guerra Grande (1839-1851), já visitada em uma crônica anterior, teve papel decisivo nessa história. Com o seu fim e o país em falência econômica generalizada, imigrantes europeus (suíços, piamonteses, espanhóis...) chegavam trazendo suas ferramentas e conhecimentos novos sobre a terra e o gado, que fizeram o Uruguai, já livre da guerra civil, começar novamente a prosperar. Era esse, em parte, o cenário que nos aguardava. Porém, a história do departamento de Colonia, onde logo chegamos, bem como de sua capital, a cidadezinha antiga de Colonia Del Sacramento, começa em um período bem mais anterior. E quando digo antiga não me refiro somente ao aspecto arquitetônico antigo do local; digo antiga também para explicitar que, em Colonia Del Sacramento, tudo recende a antiguidade, como se o tempo lá não passasse.

A cidade então chamada Colônia Do Santíssimo Sacramento, na época uma possessão portuguesa em meio às terras da coroa espanhola, foi a primeira cidade do país que hoje se denomina República Oriental do Uruguai. Então temos lá a primeira igreja do Uruguai, o primeiro colégio do Uruguai e assim por diante. Fundada em 1680 por Manuel Lobo – governador da Capitania Real do Rio de Janeiro -, a intenção portuguesa com o estabelecimento desta cidade dentro dos domínios espanhóis era, além do componente bélico, minerar e traficar por intermédio do Rio da Prata. Durante quase cem anos Colonia Del Sacramento foi tomada pelas armas pelos espanhóis, recuperada diplomaticamente pelos portugueses, retomada pelas armas pelos espanhóis etc., etc., etc., assim sucessivamente. Em 1777, torna-se definitivamente possessão espanhola, como preconizou o Tratado de Badajoz. Essa alternância luso-espanhola no poder deixou uma herança visível: as casas espanholas, de traços retilíneos como os de um tabuleiro de xadrez, se misturam às portuguesas, que seguem o relevo do lugar. Esse desenho peculiar, aliado às ruas de pedras portuguesas, à semelhança da cidade brasileira de Paraty, ajudam a dar-lhe o ar de tempos antigos.

E novamente em Colonia Del Sacramento, na década de 70 do século XX, o impulso econômico argentino se fez sentir no Uruguai, como já retratado em outras ocasiões aqui mesmo nestas crônicas. Até então, passado o furor da disputa pelo poder entre espanhóis e portugueses e afastadas de vez ambas as metrópoles com a independência do país e das demais colônias luso-espanholas, a cidade, depois da desativação do complexo turístico de Real de San Carlos – com a proibição nacional das touradas em 1912, foi se tornando uma localidade perigosa e desvalorizada, conhecida como el bajo. Situada a apenas 45 quilômetros de Buenos Aires, começou a ser gradualmente recuperada pelos argentinos por meio do turismo. Em 1995 foi declarada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.

Em Colonia Del Sacramento me aconteceu algo inusitado. Feito o passeio pela cidade, almoçamos. Então eu quis voltar à basílica, rezar com mais tranquilidade e comprar algumas lembranças. A questão era: onde está a igreja mesmo? E anda que anda e nada de igreja. O tempo corria impiedoso, tínhamos quinze minutos antes que o ônibus partisse no horário combinado. Íamos desistir quando ouvi um sino. Estaquei onde estava, apontei a direção com a mão direita e disse à minha amiga: “Aqui”! Sem que ela tivesse certeza visual de que íamos na direção correta, seguimos o som do sino; tínhamos pouco tempo e não muita escolha. E, depois de um pouco de tempo de quase-corrida, efetivamente, lá estava a igreja. Foi uma emoção diferente entrar com os uruguaios celebrando a missa, cantando. Aquelas preces em espanhol me inundaram por completo e entendi que haveria tempo para tudo. Deus havia feito soar o sino na hora exata. Nos permitiu chegar à igreja guiadas pelo som. Ao abrir-se a porta, os uruguaios cantavam em prece e novamente lá estava Deus. Então, sim, haveria tempo para tudo, porque no tempo de Deus há tempo para tudo.

Sempre fui fascinada por cidades que recordam outros tempos a partir do momento em que pela primeira vez nelas se pisa: Rotemburgo, Pompeia, Siena, Toledo, Araxá, Paraty... Colonia Del Sacramento é também uma delas. Não sei, nesses lugares me sinto em casa, como se houvesse algo de mim perdido em um tempo distante. Em cidades que têm tal atmosfera essa certeza sempre me visita e em Colonia Del Sacramento não foi diferente. Saí com a sensação de ter estado mais uma vez, em alma, em casa.

domingo, 12 de outubro de 2014

Recuerdos Del Paisito: Punta Del Este

“Entre agua y aire brilla/el puente curvo/entre verde y azul las curvaturas/de cemento, dos senos y dos simas/con la unidad desnuda/ de una mujer o una fortaleza/sostenida por letras de hormigón/que escribe en las páginas del río”. (Pablo Neruda – 1904-1973). “Entre água e ar brilha/a ponte curva/entre verde e azul as curvaturas/de cimento, dois seios e dois abismos/com a unidade nua/de uma mulher ou uma fortaleza/sustentada por letras de concreto/que escreve nas páginas do rio”. (tradução livre, 11/10/2014).

A cidade uruguaia de Punta del Este, em sua origem, foi uma antiga vila de pescadores chamada Ituzaingó, vocábulo guarani que significa “cascata abundante”. Tratava-se de um porto pesqueiro, sendo também comum a caça aos leões marinhos.

Em momentos anteriores foi possível relatar alguma animosidade envolvendo uruguaios e argentinos, como, de certo modo, é natural entre países vizinhos que protagonizaram disputas historicamente. No entanto, em algumas oportunidades, no que diz respeito a impulsionar a economia por meio do turismo, a participação Argentina foi e é importante no Uruguai, como, por exemplo, no início do século XX, quando se fundou Piriápolis, conforme já narrado. No caso de Punta del Este não foi diferente. Nos anos 40 do século passado, também a presença dos argentinos teve um papel relevante na consolidação desta cidade como importante polo turístico uruguaio.

Atualmente Punta del Este, o balneário mais famoso do Uruguai, que figura entre os dez mais luxuosos do mundo e tem praias tanto fluviais - graças ao Rio da Prata - como oceânicas - já que é ali na Punta de Salinas que começa o Oceano Atlântico -, recebe cerca de dois milhões de turistas por ano, sendo este o seguimento econômico mais forte no local, o que faz dela uma cidade cara, onde se pode chegar a gastar, por exemplo, três vezes mais para comer do que normalmente no restante do país, inclusive na capital, Montevidéu. Na maioria das vezes, certamente, os turistas estão preparados para suportar esses gastos e o atendimento os compensa louvavelmente; contudo, trata-se de um aspecto que não pode deixar de ser destacado. A alta temporada na cidade, claro, acontece no verão, mas sempre há alguém curioso para conhecer a Praia Mansa e a Praia Brava. Passeando, além dos altos edifícios na parte central, se podem observar as casas de veraneio, limpas e bem cuidadas por caseiros e outras pessoas responsáveis pelos trabalhos domésticos, o que ajuda a garantir emprego aos moradores locais durante o restante do ano. Essas casas e mansões de veraneio do tamanho de quarteirões têm nomes e a maior parte delas não possui muros ou cercas. Curiosamente, a mais cara pertence a um empresário brasileiro e é hermeticamente fechada, o que não deixa de refletir a preocupação com a segurança, que tanto nos atormenta aqui no Brasil. A construção civil, assim, é também um setor econômico em alta em Punta, além do turismo; um setor que alavanca não apenas essa cidade, mas também suas cidades-satélites, onde os trabalhadores que executam as construções vêm residir.

Um projeto arquitetônico que acabou por tornar-se um frequentado ponto turístico do lugar são as pontes de La Barra, criadas pelo engenheiro civil uruguaio Lionel Viera (1913-1975) e inauguradas em 1965. Seu acentuado formato ondular, descrito no poema que inicia este texto, produz nos passageiros dos veículos uma sensação semelhante à que se tem em um desses brinquedos de parque de diversões. Por uma das pontes ondulares se vai, pela outra, ainda mais ondulada, se volta, com igual sensação, na direção contrária. Me lembrei de meu irmão, Thiago. Quando éramos pequenos e viajávamos de carro com os nossos avós, sempre pedíamos para o vô passar rápido pelas lombadas, pra gente sentir aquele friozinho na barriga... Foi assim, mas um pouco mais intenso, nas pontes de La Barra, em que alguns passageiros do ônibus emitiram gritinhos prazerosos, enquanto outros soltaram exclamações mais assustadas; lembrança doce.

O monumento símbolo de Punta del Este, além, certamente, do farol, que já caiu três vezes mas agora vai bem, obrigada, é uma escultura localizada na Praia Brava e conhecida como “Los Dedos”. Foi uma obra esculpida em apenas seis dias, pelo artista chileno Mario Irarrázabal (1940), que concorria a um concurso e o venceu com essa escultura. Alguns dizem que aquela mão simboliza o homem emergindo para a vida; outros garantem que o monumento retoma a prudência que se deve ter diante do mar. O que é possível afirmar realmente é que não se pode pensar em Punta del Este sem recordar a imagem daquela grande mão esculpida brotando da areia. É uma pena que, infelizmente, como aqui, também haja pichadores no Uruguai, e esses “artistas às avessas” se tenham encarregado de pichar até mesmo a mão que simboliza a cidade... Dizer o quê? Nada; mudar de assunto é melhor.

A maior parte dos turistas ficou maravilhada pela visão do requintado cassino Conrad. Eu, por meu turno, prefiro a emoção de passar pelas pontes ou a mão brotando da areia, que faz a gente se sentir tão pequeno ali, em pé, diante dela, sentindo a dureza firme do concreto, ouvindo o vento e a vastidão do mar. A arte sempre me faz pensar em quanta singularidade cabe nesse nosso “Mundo mundo vasto mundo”, que Drummond há tempos assinalou. Essa é a lembrança mais suave, e ao mesmo tempo forte e imediata, que trago e vou sempre levar de Punta. Toda a opulência restante, deixo para que a admirem aqueles que têm olhos de ver, assim como deixo também um conselho que tem muito a ver com o “carpe diem” dos antigos romanos: “Se podes olhar, vê; se podes ver, repara”. (José Saramago - 1922-2010).

domingo, 5 de outubro de 2014

Recuerdos Del Paisito: Casa Pueblo


"O Sol é meu amigo mais antigo”. Assim se expressou o pintor, ceramista, muralista, escultor, compositor, escritor, arquiteto, produtor de cinema e empresário uruguaio Carlos Páez Vilaró (1923-2014). Difícil é apresentar tanta versatilidade em pouco espaço. Ir à península de Punta Ballena é, obrigatoriamente, mergulhar na obra do genial Vilaró. Punta Ballena é o berço da Casa Pueblo, um complexo que inclui um museu e uma galeria de arte com as obras do artista, um hotel, um restaurante e um café. E o que mais impressiona é saber que Vilaró construiu Casa Pueblo com as próprias mãos e a ajuda de pescadores e demais moradores dos arredores.

Conforme nos aproximávamos de ônibus, me lembro que minha avó e Carol olhavam pela janela, observando incrédulas materializar-se diante de seus olhos a concretude da península, essa porção de terra cercada de água por três dos lados que elas tanto tinham desenhado para os alunos no quadro-negro por mais de trinta anos, mas que nunca antes haviam visto fora dos livros. Foi emocionante vê-las fazendo essa descoberta ali, diante de mim.

Quando chegamos à Casa Pueblo fazia aquele típico friozinho uruguaio, mas o sol, símbolo do lugar, marcava presença. Casa Pueblo é conhecida mundialmente como uma “escultura habitável”, assim denominada por seu criador e construtor. Segundo o próprio Vilaró: "construi-a como se tratasse de uma escultura habitável, sem planejar antecipadamente, seguindo principalmente o meu entusiasmo. Quando o governo municipal me pediu, há pouco tempo, a planta do projeto - que eu não tinha - um amigo arquiteto teve que passar um mês estudando a maneira de decifrá-la”. O casarão branco de arredondados traços mediterrâneos abriga e expõe as obras do artista por todos os cantos e levou 35 anos para ser construído – o início data de 1958. Quando Casa Pueblo começou a tornar-se labiríntica, Vilaró decidiu espalhar por ela placas com os nomes dos amigos, como se de ruas se tratasse. Um desses amigos foi o nosso poetinha, Vinicius de Moraes (1913-1980). Foi inspirado em Casa Pueblo e para as filhas de Vilaró que Vinicius compôs os célebres versos: “Era uma casa muito engraçada”... Alguns outros desses amigos famosos eram simplesmente Jorge Amado (1912-2001), Pablo Picasso (1881-1973) e Salvador Dali (1904-1989).

Não se pode deixar de destacar, infelizmente, que o acesso de pessoas com deficiências, principalmente motoras, não é fácil, bem como o dos idosos, dada a proliferação de degraus e escadas dispostos de forma não regular e a inexistência de corrimãos propriamente ditos, exceto em alguns trechos de caminho. No entanto, se houver oportunidade e meios, trata-se de um passeio imperdível.

Na obra de Vilaró como um todo ressalta-se fortemente o cotidiano, primeiro, dos afro-uruguaios, com destaque para o candombe, manifestação musical uruguaia já tratada em uma crônica anterior. O artista aprofundou posteriormente seus estudos sobre a cultura africana no Brasil e em outros países latino-americanos com forte presença afro-descendente, tais como o Haiti, bem como em países da própria África subsaariana. Outras temáticas recorrentes em sua obra são o sol – claro -, a lua, as mulheres.

É certo que todo artista produz rodeado e influenciado por aquilo que vivencia. No caso de Vilaró, essa ligação vida-arte é bastante estreita e notória. Se o sol simboliza Casa Pueblo e é seu amigo mais antigo, a lua recorda e retoma outro episódio marcante de sua vida pessoal. Em 1972 um de seus filhos, Carlos Miguel, integrava um time uruguaio de rugby, os Old Christians. O avião da Força Aérea Uruguaia que transportava o time chocou-se contra uma montanha entre o Chile e a Argentina, na Cordilheira dos Andes. Dos 45 passageiros, 16 sobreviveram, numa inacreditável e, por que não, milagrosa luta pela vida. Um desses sobreviventes era o filho de Vilaró, que o artista nunca desistiu de procurar, mesmo com as autoridades colocando em xeque a existência de sobreviventes depois de mais de dois meses nos inóspitos Andes. Essa procura incansável foi transformada por Vilaró em Livro: Entre Meu Filho E Eu, A Lua. A tocante foto do reencontro dos dois, que ilustra a capa, já é um forte indício de tudo quanto o livro encerra.

Todos os dias ao entardecer os turistas são presenteados com um poema em prosa escrito por Vilaró e declamado por sua voz calma e comovida, com a beleza e suavidade tranquila de seu sotaque uruguaio, que reverbera pelos auto-falantes enquanto o sol se põe em Casa Pueblo. ( http://www.youtube.com/watch?v=HDdKf4a9zcg ) A essa cerimônia não assisti, mas a leitura reveladora do poema dá uma breve ideia do espetáculo que dia após dia se desenrolou diante dos sensíveis olhos do artista e que continua a oferecer-se voluntariamente aos frequentadores vespertinos da Casa Pueblo. Despeço-me de vocês hoje deixando, além da declamação do poema pelo próprio Vilaró no link acima, logo abaixo, o poema original em espanhol e, imediatamente após, uma tradução livre que fiz, para ver se conseguia administrar o impacto de ter sido apresentada ao sol pela agudeza terna e singela de Carlos Páez Vilaró. Divirtam-se, deleitem-se, meditem.:

"CEREMONIA DEL SOL

Hola Sol …! Otra vez sin anunciarte llegas a visitarnos. Otra vez en tu larga caminata desde el comienzo de la vida. Hola Sol…! Con tu panza cargada de oro hirviendo para repartirlo generoso por villas y caseríos, capillas campesinas, valles, bosques, ríos o pueblitos olvidados. Hola Sol…! Nadie ignora que perteneces a todos, pero que prefieres dar tu calor a los más necesitados, los que precisan de tu luz para iluminar sus casitas de chapa, los que reciben de tí la energía para afrontar el trabajo, los que piden a Dios que nunca les faltes, para enriquecer sus plantíos, y lograr sus cosechas. Es que vos, Sol, sos el pan dorado de la mesa de los pobres. Desde mis terrazas te veo llegar cada tarde como un aro de fuego rodando a través de los años, puntual, infaltable, animando mi filosofía desde el día que soñé con levantar Casapueblo y puse entre las rocas mi primer ladrillo. Recuerdo que era un día inflamado de tormenta, el mar había sustituido el azul por un color grisáceo empavonado, en el horizonte un velero escorado afinaba el rumbo para saltear la tempestad, el cielo se llenaba de graznidos de cuervos en huida, la sierra se peinaba con la ventolera alborotando a la comadreja y al conejo. Pero de golpe como un anuncio sobrenatural el cielo se perforó y apareciste vos. Eras un sol nítido y redondo, perfecto y delineado, puesto sobre el escenario de mi iniciación con la fuerza sagrada de un vitreaux de iglesia. Desde ese instante sentí que Dios habitaba en ti, que en tu fragua derretía la fe y que por medio de tus rayos la transmitía por todos los sitios donde transitabas. Los mismos brazos de oro que al desperezarte iluminan el cielo, al estirarse a los costados entibian las sierras, o apuntando hacia abajo laminan el mar. Hola Sol…! Cómo me gustaría haber compartido tu largo trayecto regalando luz, porque a tu paso acariciaste la vida de mil pueblos, compartiste sus alegrías y tristezas, conociste la guerra y la paz, impulsaste la oración y el trabajo, acompañaste la libertad e hiciste menos dura la oscuridad de los presidios. A tu paso sol, se adormecen los lagartos, despiertan los girasoles y los gallos cacarean. Se relamen los gatos vagabundos, los perros guitarrean, y el topo se encandila al salir de la cueva. A tu paso sol, hay sudor en la frente del obrero y en los cuerpos de las mujeres cobrizas que alcanzan el cántaro de la favela. Con tus latidos conmueves el mar, das música a la siembra, la usina y el mercado. A tu paso corrieron en estampida búfalos y antílopes, desperezó el león, se asombró la jirafa, se deslizó la serpiente y voló la mariposa. A tu paso cantó la calandria, despegó el aguilucho, despertó el murciélago y emigró el albatros. Hola Sol…! Gracias por volver a animar mi vida de artista. Porque hiciste menos sola mi soledad. Es que me he acostumbrado a tu compañía y si no te tengo, te busco por donde quiera que estés. Por eso te reencontré en la Polinesia, cuando te coronaron rey de los archipiélagos de nácar y los arrecifes dentellados de coral, o también en Africa, cuando dabas impulso a sus revoluciones libertarias y te reflejabas en el espejo de sus escudos tribales para inyectarles coraje. Te estoy mirando y veo que no has cambiado, que sos el mismo sol que reverenciaron los aztecas, el mismo de mi peregrinaje pintando por América, el que envolvió la Amazonia misteriosa y secreta, el que me alumbró los caminos al Machupichu sagrado del Perú, el de los valles patagónicos o los territorios del Sioux o del comanche. El mismo sol que me llevó a Borneo, Sumatra, Bali, las islas musicales o los quemantes arenales del Sahara. A diferencia del relámpago que apenas proyecta en la noche latigazos de luz, desde tu reinado planetario, tus destellos continúan activos, permanentes. Alguna vez la travesura de las nubes oculta tu esplendor, pero cuando ello ocurre, sabemos que estás ahí, jugando a las escondidas. Otras veces, en cambio, te vemos sonreír cuando las golondrinas o las gaviotas te usan de papel para escribir las frases de su vuelo. Gracias Sol, por invadir la intimidad de mi atardecer y zambullirte en mis aguas. Ahora serás la luz de los peces y su secreto universo submarino. También de los fantasmas que habitan en el vientre de los barcos hundidos en trágicos naufragios. Gracias Sol…! Por regalarnos esta ceremonia amarilla. Gracias por dejar mis paredes blancas impregnadas de tu fosforescencia. Entre ventoleras y borrascas, cruzando ciclones y tempestades, lluvias o tornados, pudiste llegar hasta aquí para irte silenciosamente frente a nuestros ojos. Porque tu misión es partir a iluminar otros sitios. Labradores, estibadores, pescadores te esperan en otras regiones donde la noche desaparecerá con tu llegada. Y como respondiendo a un timbre mágico despertarás las ciudades, irás junto a los niños a la escuela, pondrás en vuelo la felicidad de los pájaros, llamarás a misa. A tu llegada, se animará el andamio con sus obreros, cantarán los pregoneros en las ferias, la orilla del río se llenará de lavanderas y entrará la alegría por la banderola de los hospitales. Chau Sol…! Cuando en un instante te vayas del todo, morirá la tarde. La nostalgia se apoderará de mí y la oscuridad entrará en Casapueblo. La oscuridad, con su apetito insaciable penetrando por debajo de mis puertas, a través de las ventanas o por cuanta rendija encuentre para filtrarse en mi atelier, abriéndole cancha a las mariposas nocturnas. Chau Sol…! Te quiero mucho! Cuando era niño quería alcanzarte con mi barrilete. Ahora que soy viejo, sólo me resigno a saludarte mientras la tarde bosteza por tu boca de mimbre. Chau Sol…! Gracias por provocarnos una lágrima, al pensar que iluminaste también la vida de nuestros abuelos, de nuestros padres y la de todos los seres queridos que ya no están junto a nosotros, pero que te siguen disfrutando desde otra altura. Adiós Sol…! Mañana te espero otra vez. Casapueblo es tu casa, por eso todos la llaman la casa del sol. El sol de mi vida de artista. El sol de mi soledad. Es que me siento millonario en soles, que guardo en la alcancía del horizonte”.

(Carlos Páez Vilaró, Uruguai, 1923-2014)

“Cerimônia do Sol

Olá Sol! Outra vez sem anunciar-te chegas a visitar-nos. Outra vez em teu grande passeio desde o começo da vida. Olá Sol! Com teu ventre carregado de ouro fervente para reparti-lo generoso por vilas e casarios, capelas campesinas, vales, bosques, rios ou cidadezinhas esquecidas. Olá Sol! Ninguém ignora que pertences a todos, mas que preferes dar teu calor aos mais necessitados, os que precisam de tua luz para iluminar suas casinhas de lata, os que recebem de ti a energia para enfrentar o trabalho, os que pedem a Deus que nunca lhes faltes, para enriquecer seus plantios e propiciar suas colheitas. Porque tu, Sol, és o pão dourado da mesa dos pobres. De meus terraços te vejo chegar a cada tarde como um aro de fogo rodando através dos anos, pontual, infalível, animando minha filosofia desde o dia em que sonhei levantar Casa Pueblo e pus entre as rochas meu primeiro tijolo. Lembro-me que era um dia inflamado de tormenta, o mar havia substituído o azul por uma cor acinzentada apavorante, no horizonte um veleiro ancorado preparava-se para saltar a tempestade, o céu se enchia de grasnidos de corvos em fuga, a cerra se penteava com o vendaval alvoroçando a doninha e o coelho. Mas de golpe como um anúncio sobrenatural o céu se perfurou e tu apareceste. Eras um sol nítido e redondo, perfeito e delineado, posto sobre o cenário de minha iniciação com a força sagrada de um vitral de igreja. Desde esse instante senti que Deus habitava em ti, que em tua forja derretia a fé e que por meio de teus raios a transmitia por todos os lugares por onde transitavas. Os mesmos braços de ouro que ao espreguiçar-te iluminam o céu, ao estirar-se às costas entibiam as cerras, ou apontando para baixo laminam o mar. Olá Sol! Como eu gostaria de haver comnpartilhado teu grande trajeto presenteando luz, porque por onde passaste acariciaste a vida de mil povos, compartilhaste suas alegrias e tristezas, conheceste a guerra e a paz, impulsionaste a oração e o trabalho, acompanhaste a liberdade e fizeste menos dura a obscuridade dos presídios; por onde passas Sol, adormecem os lagartos, despertam os girassóis e os galos cacarejam; se lambem os gatos vagabundos, os cachorros latem e a toupeira se deslumbra ao sair da toca. Por onde passas Sol, há suor na testa do operário e nos corpos das mulheres acobreadas que agarram o cântaro da favela. Com teu pulsar comoves o mar, dás vida à semeadura, à usina e ao mercado. Por onde passaste correram precipitadamente búfalos e antílopes, espreguiçou-se o leão, assombrou-se a girafa, deslizou a serpente e voou a mariposa. Por onde passaste cantou a cotovia, decolou a aguiazinha, despertou o morcego e emigrou o albatroz. Olá Sol! Obrigado por voltar a animar minha vida de artista. Porque fizeste menos solitária minha solidão. É que me acostumei à tua companhia e se não te tenho, te busco por onde quer que estejas. Por isso te reencontrei na Polinésia, quando te coroaram rei dos arquipélagos de nácar e dos arrecifes denteados de coral, ou na África, quando davas impulso a suas revoluções libertárias e te refletias no espelho de seus escudos tribais para injetar-lhes coragem. Te estou olhando e vejo que não mudaste, que és o mesmo sol que reverenciaram os astecas, o mesmo de minha peregrinação pintando pela América, o que envolveu a Amazônia misteriosa e secreta, o que me iluminou os caminhos ao Machupichu sagrado do Peru, aos vales patagônicos ou os territórios do Sioux ou do Comanche. O mesmo sol que me levou a Bornéu, Sumatra, Bali, às ilhas musicais ou aos areais queimantes do Saara. Diferente do relâmpago que apenas projeta na noite chicotadas de luz, de teu reinado planetário, teu resplendor continua ativo, permanente. Às vezes alguma travessura das nuvens oculta teu esplendor, mas quando isso ocorre, sabemos que estás aí, brincando às escondidas. Outras vezes, no entanto, te vemos sorrir quando as andorinhas ou as gaivotas te usam de papel para escrever as frases de seu voo. Obrigado, Sol, por invadir a intimidade de meu entardecer e mergulhar-te em minhas águas. Agora serás a luz dos peixes e de seu secreto universo submarino. Também dos fantasmas que habitam o ventre dos barcos afundados em trágicos naufrágios. Obrigado Sol! Por presentearnos com esta cerimônia amarela. Por deixar minhas paredes brancas impregnadas de tua fosforescência. Entre vendavais e borrascas, cruzando ciclones e tempestades, chuvas ou tornados, pudeste chegar até aqui para ir-te silenciosamente diante de nossos olhos. Porque tua missão é partir a iluminar outros lugares. Lavradores, estivadores, pescadores te esperam em outras regiões onde a noite desaparecerá com tua chegada. E como respondendo a um timbre mágico despertarás as cidades, irás junto aos meninos à escola, porás em voo a felicidade dos pássaros, chamarás para a missa. À tua chegada se animará o andaime com seus operários, cantarão os pregoeiros nas feiras, a margem do rio se encherá de lavadeiras e entrará a alegria pela bandeirola dos hospitais. Tchau Sol! Quando em um instante te fores de todo, morrerá a tarde. A nostalgia se apoderará de mim e a obscuridade entrará na Casa Pueblo. A obscuridade, com seu apetite insaciável penetrando por debaixo de minhas portas, através das janelas ou por quantas aberturas encontre para filtrar-se em meu atelier, dando passagem às mariposas noturnas. Tchau Sol! Te amo muito! Quando eu era menino, queria alcançar-te com o meu barrilete. Agora que sou velho, só resigno-me a saudar-te, enquanto a tarde boceja por tua boca de vime. Tchau Sol! Obrigado por provocar-nos uma lágrima, ao pensar que iluminaste também a vida de nossos avós, de nossos pais e a de todos os seres queridos que já não estão junto a nós, mas que te seguem desfrutando de outra altura. Adeus Sol! Amanhã te espero outra vez. Casa Pueblo é a tua casa, por isso todos a chamam casa do sol. O sol de minha vida de artista. O sol de minha solidão. É que me sinto milionário de sóis, que guardo no cofre do horizonte”.

(tradução livre, 02/10/2014)

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Recuerdos Del Paisito: Piriápolis

"a Piria se lo puede hallar en todo cuanto su férrea voluntad creó. Fue un hombre que tuvo un sueño, lo hizo real y vive en él". (Loreley Lazo, poetisa uruguaia)

E finalmente hoje vamos a um lugar diferente. Do ambiente urbano, embora tranquilo e convidativo da capital Montevidéu, passaremos às estradas asfaltadas, planas, bem demarcadas e sinalizadas do Leste do país, com seus pinheirais e eucaliptos, coqueiros e palmeiras, até chegar a outro departamento, o de Maldonado. Ali o relevo não é mais plano e a região continua a ser cortada pelo Rio da Prata, até que se chega à Punta de Salinas, onde começa o Oceano Atlântico.

Aqui e ali, pela estrada, insinuam-se em meio à mata pequenas vilas sem asfalto, algumas casinhas, em sua maioria brancas, para de novo a paisagem ser tomada pelo verde. Esse jogo de revela-esconde das poucas casinhas brancas em meio à paisagem permaneceu por todo o caminho até Piriápolis, que já foi o balneário mais famoso do Uruguai.

É claro que o objetivo principal dos turistas, enquanto viajávamos, era Punta del Este, sempre aguardada. Fomos comunicados, no entanto, de que, no meio do caminho, passaríamos por Piriápolis para apreciar a vista. Aí fiquei pensando: o que eu poderia contar sobre Piriápolis, onde estive por uns vinte minutos e aonde os turistas que me acompanharam foram para apreciar a vista?... Cabia a mim descobrir o que era importante lá além da bela vista.

Então, algo que não pode deixar de ser contado é a história de seu fundador, Francisco Piria, que, afinal de contas, dá nome à cidade – Piriápolis, cidade de Piria. Só pensar “Quem foi esse uruguaio que fundou a própria cidade”? Já é algo que inspira a escrever. Assim, vamos a ele.

Filho de imigrantes genoveses, Francisco Piria nasceu em Montevidéu em 1847. Em idade escolar foi levado à Itália por um tio monge, que o colocaria em contato com os conhecimentos filosóficos sobre a alquimia, que teriam grande influência em sua vida e cuja simbólica pode ser vista e constatada em tudo quanto criou e desenvolveu. Além de ter fundado a cidade balneária de Piriápolis, chamada sugestivamente de “cidade do porvir”, é responsável pela existência de várias dezenas de bairros na capital uruguaia. A atual sede da Suprema Corte do país foi sua residência em Montevidéu, mandada construir por ele, cravada em pleno centro histórico da cidade, pertinho de onde eu me havia hospedado.

Tudo isso se deve à destacada atuação de Piria como empresário: desde logo tornou-se um homem de negócios, de tino extraordinário. Comprava terras, para depois dividi-las e vendê-las. “Convidava” amigos a se hospedarem na cidade, em grande parte argentinos, e depois fazia as propostas de venda, que se acabavam concretizando. E Piriápolis, cujo desenvolvimento foi baseado desde sempre no turismo, acabou por consolidar-se.

Contudo, eram apenas duas as pessoas de confiança de Piria que poderiam tocar esse projeto adiante depois de sua morte, que se deu em 1933: um de seus filhos, Pancho, e um amigo, Carlos Bonavita. Bonavita ceifaria a vida a Pancho após um desentendimento, e a si próprio logo depois, não muito tempo após o falecimento de Piria. Na ausência de seu fundador e de seus dois continuadores naturais, o Estado se apropriou da cidade, que perdeu seu status de balneário mais famoso do Uruguai para a vizinha Punta del Este. Entretanto, Piriápolis prossegue, ainda bastante famosa, com o ápice de sua temporada no verão.O turismo interno é bastante importante, embora latino-americanos em geral e mais recentemente europeus a estejam descobrindo.

Chegamos ao alto do Morro do Inglês, mais conhecido como Cerro San Antonio, por causa da capelinha depositária de uma imagem imponente do santo casamenteiro que está em seu cume. Enquanto meus companheiros de viagem apreciavam a vista, depois de tiradas algumas fotos, claaaaro, aproveitei para rezar; não pelas coisas do coração, que essas vão ser como tiverem que ser, mas pelos que estavam lá e pelos que ficaram aqui.

Por um capricho da natureza, a vista da Baía de Piriápolis lá de cima do Cerro San Antonio lembra um coração. Digo o óbvio, mas isso acabou por cativar os turistas todos. As fotos que fiz, guardo todas. Ilusões não tenho muitas. A ciência progride rápido, mas o tempo também está passando rápido e estou perdendo progressivamente a coragem e a vontade de me arriscar ante as investidas destemidas da medicina, a não ser que tenha mais garantias do que suposições. Contudo, as fotos me esperarão sempre. Quem sabe eu também não termino cativada pela Baía de Piriápolis um dia desses... Hoje não vivo mais para poder ver um dia, mas essa também não é uma possibilidade que eu descarto por completo; que seja o que tiver que ser.

domingo, 21 de setembro de 2014

Recuerdos Del Paisito: Museo La Casa Del Gobierno

20 de setembro, no Brasil, é o Dia do Gaúcho, por ser, primeiramente, o aniversário da Revolução Farroupilha (1835-1845), o mais longo conflito civil de nossa história, permeada que foi por tantos conflitos civis.

Ultimamente, tenho escrito bastante sobre o Uruguai. Uma das crônicas que planejei escrever a respeito daquele país tem como tema um museu que fui conhecer em Montevidéu, que dá destaque aos presidentes uruguaios, o primeiro deles que teve, por certo período de tempo, uma ligação estreita com o líder da nossa Revolução Farroupilha – Bento Gonçalves da Silva (1788-1847). Já que passamos, então, recentemente pelo Dia do Gaúcho, e já que também os uruguaios são gaúchos, assim como os argentinos, vamos a esta crônica um pouquinho antes do previsto.

Sempre que viajo, procuro privilegiar neste tempo o aspecto cultural. Assim, houve um dia em que decidimos sair para procurar em Montevidéu um programa cultural para fazer. A viagem quase chegava ao fim e ainda não havíamos conhecido a chuvinha gelada e o vento forte, tão típicos da cidade e tão propalados. Pois bem, justamente no dia em que decidimos sair a pé e sem capa nem sombrinha eles chegaram. A chuvinha gelada e um pouco apertada, tomei com prazer, recordando os tempos de infância, de férias em Pirassununga, em que eu reencontrava meu irmão e podíamos brincar juntos, na chuva, na casa da vó... Putz, como era bom brincar na chuva!!!

E foi debaixo daquela chuva trigelada que descobrimos o museu. Procurávamos pelo Teatro Solis, que ficava na mesma quadra. Dentro de uma loja havia uma uruguaia de olhos atentos, que nos viu e veio ao nosso encontro, tomando chuva também. Ela indicou o Teatro Solis e mostrou o prédio do museu, ali, diante de nós, sugerindo que fôssemos visitá-lo; fomos. Olharíamos o teatro de perto depois.

O Museo La Casa Del Gobierno era dedicado a todos os presidentes uruguaios. Nos foi possível ver retratos dos presidentes, quadros, medalhas, armas, coches, mobília, relógios, imagens reais e/ou fictícias do cotidiano dos uruguaios ao longo do tempo... Alguns presidentes tinham suas salas próprias; outros, talvez sobre os quais o museu tivesse menos itens, compartilhavam salas. Há um circuito que se pode fazer, começando pela sala do primeiro presidente, Fructuoso Rivera, e terminando pelos dias atuais. Um breve giro pela história do Uruguai em aproximadamente duas horas, com folga, olhando tudo sem pressa.

Dois dos presidentes que têm mais destaque no museu, que possuem suas salas próprias, são José Fructuoso Rivera (1784-1854) e Manuel Oribe (1792-1857), respectivamente primeiro e segundo presidentes da República Oriental do Uruguai. (Imaginem só, toquei, parte por parte, o coche oficial do presidente Rivera... Ah, a visita prometia...) Esta crônica pretende apresentá-los melhor, levando em conta a importância histórica que têm, de certa forma até os nossos dias, para a política do país. Explico-me.

A região onde fica o Uruguai foi alvo de disputas constantes. Antes da independência do país, portugueses e espanhóis a disputaram inúmeras vezes. Acontece que chegou um tempo em que a maior parte das próprias colônias portuguesas e espanholas se tornou independente. Depois da independência do Uruguai, declarada em 1830, essa região continuou a ser disputada, mas pela Confederação Argentina e o Império do Brasil, também já independentes, estando ora sob a influência de um desses países, ora sob a influência do outro.

Em 1836 a jovem República Oriental do Uruguai viu dois de seus governantes constitucionais se enfrentarem na batalha de Carpintería. Parte dos combatentes era liderada por seu primeiro presidente, Fructuoso Rivera, e usava braçadeiras vermelhas; a outra parte dos contendores era liderada por seu então presidente, Manuel Oribe (que havia sido ministro da guerra de Fructuoso Rivera), e usava braçadeiras brancas. Terminada a batalha com a vitória dos blancos, estabeleceram-se os partidos que, liderados respectivamente por Rivera e Oribe – seus fundadores -, bipolarizariam a política do país a partir de então: o Partido Colorado (liberal) e o Partido Blanco (conservador). Esse bipartidarismo só seria rompido depois da ditadura militar uruguaia, já no século XXI, com a eleição de Tabaré Vasquez, da coalisão denominada Frente Ampla, autorizada a existir legalmente com a redemocratização do país. Por isso Rivera e Oribe me parecem ter importância até os dias atuais na história política do Uruguai, visto que os partidos que fundaram ainda existem, com determinadas modificações.

Bom, e os gaúchos? O presidente Rivera (pró-Brasil), no poder novamente no Uruguai enquanto se desenrolava a Revolução Farroupilha, opta por auxiliar Bento Gonçalves, presidente da República Rio-Grandense e seu antigo inimigo político. Esse auxílio dura até 1843, Quando a chamada Guerra Grande, já em curso há quatro anos, é definitivamente transferida a Montevidéu, sitiando-se a cidade e acirrando-se de vez os enfrentamentos entre blancos e colorados, que só terminariam em 1851, com a vitória dos colorados e a ruína econômica completa do país.

O presidente Oribe (pró-Argentina)se rende às tropas brasileiras em 1851, com o fim da Guerra Grande – transformada em conflito internacional e só encerrada após muitas intervenções externas -, abandonando a vida política no ano seguinte, depois de tantos intensos combates com os colorados. Informações oficiosas me deram conta de que Manuel Oribe era bonitão e se parecia bastante com o nosso imperador Dom Pedro I, embora não tivesse o mesmo “olhar 43” do brasileiro. Hahahhaa Divertido...

Após visitar todos os outros presidentes uruguaios, deixamos o museu com a cabeça fervilhando de tanta história em um período tão curto de tempo. E quando estávamos na calçada fronteira ao Teatro Solis, o vento gelado de Montevidéu veio nos receber no auge de sua força. Lendo assim parece um exagero, mas a câmera fotográfica em punho, que mirava o teatro, teve de esperar. A força do vento exigia concentração e cuidado, para podermos permanecer nos mesmos lugares onde estávamos. A chuva caía ainda e o vento fustigava com ímpeto. Me preocupei, claro, mas ao mesmo tempo pensei que, presente de última hora, eu não deixaria Montevidéu sem conhecer a chuva e o vento tão afamados. Meu cabelo solto e comprido de brasileira desprevenida me espanava com força o rosto, voando descontrolado em todas as direções. Pensei: “Ah, depois eu enxugo, desembaraço, faço o que tiver de fazer; a cada momento o seu momento”.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Recuerdos Del Paisito: Los Uruguayos

A todo povo sempre são atribuídas algumas características, ora positivas ora negativas, que vão “desenhando” a imagem com a qual os estrangeiros acabam ficando sobre esse povo. Aos brasileiros, por exemplo, no lado positivo, graças a Deus, são atribuídas alegria, cordialidade, musicalidade... Quanto às nossas características negativas, como diria uma personagem de uma série de comédia da televisão, “Prefiro não comentar”. Não por falta do que dizer, mas porque este não seja o momento apropriado. Vamos deixar isso pra lá. Estou escrevendo esta crônica para falar, e bem, dos uruguaios; então, vamos a eles.

Logo que entramos neste ano, ganhei lááá de cima um presente. Um presente-pessoa a quem eu já conhecia, ainda que pouco, há bastante tempo, mas que entrou definitivamente na minha vida como professora de espanhol (uruguaia, vamos dizer para ir costurando direitinho as coisas aqui neste texto). Contudo, hoje, quando revisito este presente a cada semana, é a amiga a quem eu primeiro vejo. Depois, bem devagar, é que vou me lembrando que bem junto da amiga está a professora de espanhol. Antes de conhecer seu país, eu pensava que determinadas características que a faziam admirável aos meus olhos eram dela. Bom, é claro que são, mas depois de ter ido ao Uruguai, percebi que essas características que estreitaram os nossos laços de amizade são dela, porque já a acompanham há muito tempo, vindas de seu próprio povo. o que vou dizer, então, dos uruguaios, a partir daqui, se aplica a ela, inerentemente, porque estar no Uruguai é estar diante dela e vice-versa, numa harmonia perfeita.

Zelo atento – Estávamos lá, três turistas despreocupadas na Praça Cagancha, pleno centro de Montevidéu, tirando fotos; anoitecia. Uma moça perguntou se queríamos que ela tirasse uma foto das três; queríamos, claro. Ela fez a foto enquanto, com o outro olho, observava um rapaz que parecia estar sob o efeito de alguma droga. Nos devolveu as câmeras, olhou para o rapaz, olhou de volta para nós e aconselhou: “Guardem-nas bem; vocês sabem como são as drogas”. Quando terminamos de guardá-las ela se foi. Um uruguaio sairá de onde estiver, parará o que estiver fazendo para vir ao seu encontro se achar que há alguma boa orientação que ele possa lhe dar. Vivenciamos isso algumas vezes.

Sensibilidade - Quando estava na Casa Pueblo, em Punta Ballena, eu quis escolher um azulejo decorado com uma obra de Carlos Páez Vilaró. (Falo mais detidamente sobre a Casa Pueblo e sobre Vilaró outro dia). A vendedora dos azulejos notou minha indecisão, aproximou-se mais, eu percebia que me olhava com interesse genuíno. Hesitou um segundo, procurando palavras como quem vai fazer uma revelação, e disse, com cuidado: “Sabe, a lua está bonita; muito bonita, e é uma das figuras mais representativas na obra de Vilaró. Recorda um período muito intenso em que sua vida e sua produção artística se mesclaram profundamente”. Claro, ela se referia ao acidente em que o artista quase perdeu o filho nos Andes mas nunca deixou de procurá-lo, pois sentia que estava vivo, apesar do descrédito das autoridades que já se anunciava; acidente e procura que viraram livro de sua autoria: Entre Meu Filho E Eu, A Lua. Ela me deixou livre para escolher, mas havia me convencido e a lua de Vilaró veio morar no Brasil. Aliás, muitos vendedores brasileiros deveriam aprender com os uruguaios que as coisas não se empurram para os clientes; as coisas são vendidas, mas quem escolhe sempre precisa ser quem compra. Sempre fomos deixadas à vontade; recebíamos sugestões, detalhes, mas também sempre dávamos a palavra final, e essa palavra era respeitada em todas as ocasiões, fosse ela “sim” ou “não”.

Mas tive depois uma prova literalmente bonita de como são esse zelo atento e essa sensibilidade dos uruguaios. Me refiro a uma cena marcante que presenciei na feira a que fomos no Parque Rodó. Logo que chegamos tivemos a atenção atraída por um senhor que vendia artesanato em madeira. Nos detivemos diante de alguns porta-chaves: havia peixes, sóis, desenhos mais abstratos. Ele pegava cuidadosamente cada uma das peças, limpava-as detidamente com uma escovinha, retirando cada grão de poeira, como se estivesse acariciando delicadamente a alguém muito amado e a colocava no lugar correspondente, para passar à seguinte. Achei tão lindo aquele agir que o artesão tinha para com as suas peças... Perguntei se podia tocá-las e a resposta foi positiva, sorridente e imediata. Enquanto eu ia tocando ele me explicava, com naturalidade absoluta, que “recortava” todos os pedacinhos da madeira da maneira como queria e depois “armava” os desenhos. As explicações, calmas e nas quais tinha evidente prazer, eram as mesmas que daria a qualquer passante. O vendedor das peças de madeira me olhava sem aqueles enormes olhos interrogadores e perplexos que de tempos em tempos me acompanham aqui. Será possível perceber que muitas das experiências descritas neste texto se passaram por causa de um dedinho de prosa. Para os uruguaios, tranquilos como costumam ser, sempre há tempo para conversar, seja entre si, seja com os estrangeiros.

Aliás, no Uruguai ninguém me interrogou nada perplexamente com os olhos; eles apenas me olharam, constataram e seguiram em frente. Um dia, deixamos minha avó, cansada, no hotel e fomos procurar o jantar; procurar o jantar numa casa de chá. Eu queria saber o tamanho de um doce para levar para ela. A moça à minha frente imediatamente juntou os dedos das duas mãos, com total desembaraço, fez o desenho. Colocou-o debaixo das minhas mãos para que eu o tocasse, acompanhando-o com uma descrição do exterior, do recheio, da receita, de tudo, detalhes que eu nem precisei pedir. Levei o doce, claro, impressionada com a espontaneidade e prontidão dela.

Afetividade cálida – no hotel onde ficamos havia um recepcionista muito simpático: ele cumprimentava, abria a porta do elevador e assim a mantinha até que todas entrássemos, respondia as perguntas sempre com alguma informação complementar, não hesitava em ir pessoalmente ver o que acontecia se necessário, falava portunhol, comigo falava espanhol e não economizava no vocabulário, gostava de me testar; fazia o que podia por todos os hóspedes. Ele realmente se desdobrava; era notório que apreciava muito aquilo que fazia. Assim, sempre que chegávamos ou saíamos, a torcida era para encontrar o Edimundo no balcão.

Amabilidade solícita – Quando chegávamos a algum lugar e precisávamos descer do ônibus, Elisa, a guia turística, ou Luiz, o motorista, estavam sempre à porta para me estender a mão, indicando o fim dos degraus e a direção a ser tomada. Tudo feito como se fosse parte do cotidiano deles todos os dias. Na maior parte das vezes, quem estava era Elisa, que adicionalmente me conduzia à calçada com hagilidade e ficava comigo esperando até que minha avó e Carol chegassem. No segundo dia de viagem, quando chegamos, ela havia tido a delicadeza de nos guardar os acentos da frente. Percebi também que, no dia anterior, havia dois falantes de inglês, que ela pôs na fileira contígua à sua. Algumas vezes a notei olhando-os com atenção, como a certificar-se de que não tinham dúvidas e de que ela podia prosseguir.

Gentileza a toda prova – Sempre que fazíamos algum pedido, qualquer que fosse, as respostas recorrentes eram: “Sim”, “claro”, “por favor”... E quando agradecíamos por algo, a resposta mais recorrente não era “de nada”; era “não, por favor”!, como a salientar que não havia necessidade nenhuma de agradecer.

Sobriedade alegre – Na feira comprei uma echarpe. Bonita, mas mesclava tons de preto, cinza, marrom, para mim pouco habituais. Foi o único dia em que saí sem aquele acessório indispensável no ventinho frio da cidade. O vendedor a pôs sobre minha blusa rosa e disse que ficava muito bem; se mostrou encantado com o meu espanhol. Parecia que redobrava sua alegria por estar falando com uma brasileira em espanhol. “Os brasileiros estão acostumados a usar muitas cores. Gostamos disso, embora o comum para nós sejam as cores mais clássicas. Com esse seu rosa vai ficar muito bom”! E ficou mesmo.

E as crianças uruguaias, como são? Bom, essas são todas iguais, existem as quietinhas e as espoletas em qualquer lugar do mundo. Sentada no parque, eu ouvia de uma mãe que passava: “para, você já me falou isso duzentas vezes”! De outra eu escutava: “Dá a mão”! E uma terceira trouxe aos meus ouvidos um “Vem aqui”! exasperado. Aí, quando você começa a entender as broncas que as mães dão nos filhos, passa também a acreditar, mesmo, que o seu desempenho na língua estrangeira está ficando realmente bom!

Enfim, voltei, e não só eu, agradavelmente impressionada e de certa maneira marcada pela suavidade alegre dos uruguaios.

sábado, 13 de setembro de 2014

Recuerdos Del Paisito: La Música


Assim que pus os pés no Uruguai pensei que escutaria muita música tradicional do país, mas isso não aconteceu tão imediatamente. Contudo, essa parte da conversa fica para uma crônica posterior. O que posso dizer é que, há uns dois anos mais ou menos, uma amiga pianista me disse: “Você precisa ir ao Uruguai, ouvir a musicalidade de lá e como é linda a predominância do piano em relação aos outros instrumentos, escutando tudo ser executado ali, na sua frente. É algo maravilhoso para nós, que tocamos”. Posteriormente, outros eventos foram se sucedendo e me encaminhando ao Uruguai, até que consegui concretizar isso.

Em busca, então, de conhecer a tão proclamada musicalidade uruguaia, fui a um espetáculo só para isso, em uma casa de shows muito bonita, El Milongón. A noite de música foi dividida em três blocos que, sucedendo-se de maneira bem definida, deram um panorama geral e de certo modo cronológico de como se formou e desenvolveu a musicalidade uruguaia, representados os seus momentos por grupos distintos de músicos e dançarinos, que traziam ao palco o que havia de melhor na manifestação musical específica a que se dedicavam. Vou descrever aqui cada um desses blocos, com um pouco do que ouvi, mas também, como não poderia deixar de ser, com algumas impressões próprias. Só advirto desde já que, para mim, fez falta no show a parte da milonga.

Iniciamos pelo componente folclórico, introduzidos à musicalidade gaúcha. Os gaúchos tocavam tambores, animicamente, recordando algo de influência indígena na musicalidade platina. Tocavam e dançavam, acompanhando com movimentos enérgicos, sincronizados, muito sonoros e bem ritmados de pés e palmas a cadência ancestral e bem marcada dos tambores. As coreografias mostravam, ora, as rivalidades entre os homens, provocando-se mutuamente, Ora ilustravam suas disputas pelas mulheres.

Em um segundo momento, ainda dentro da musicalidade gaúcha, o violão passou a entoar uma melodia melancólica, em tons menores, que para os meus ouvidos era uma guarânia ou algo parecido. Não sei dizer por que, mas desde que me conheço por gente, quando ouço os primeiros acordes lamentosos de alguma guarânia, me vem à mente algo de luar, de noite enluarada... Deve ser alguma lembrança infantil muito vaga, alguma história, um momento qualquer, que jamais vou identificar. A única coisa que sei é que, uma vez mais, essa lembrança veio me visitar, no Milongón.

Sucedendo-se à música gaúcha, foi chamado ao palco, com sua dramaticidade imponente, o señor Tango. Surgido a ambas as margens do Prata,em Rosário, Buenos Aires e Montevidéu, primeiramente foi ritmo restrito às zonas e cabarés, executado pelo violão e instrumentos de sopro. Incorporado o bandulión, de origem alemã, essa música dolente derivada da habanera cubana e do tango espanhol ganhou um toque de glamur, sem perder a sensualidade voluptuosa que primeiro a caracterizou.

Os tangos sempre me acompanharam. Meu avô me trouxe desde cedo essa influência, herdada de suas andanças platinas, quando montava máquinas. Foi emocionante demais ouvir aqueles tangos que ele cantarolava estalando os dedos e batendo os chinelos, cujos movimentos faziam tilintar a pulseira metálica do relógio, os tangos com os quais eu cresci, sendo tocados ali, no palco, a poucos passos de mim; ouvir o bandulión sendo aberto e fechado, enchendo-se e esvaziando-se o fole; ouvir ser libertada do piano aquela torrente de notas melodiosas, brilhantes e luzidias, enquanto os acordes, ora cheios, graves e possantes, ora suaves e discretos, esboçavam marcadamente dramas, saudades, amores, fracassos... E Elisa, a minha amiga pianista do começo desta crônica, tinha razão, em absoluto. O paraíso dos pianistas amantes do tango e da milonga, sem efeitos especiais, ali, na raça, é Montevidéu!

Para fechar a noite, uma manifestação musical uruguaia pouco conhecida dos brasileiros, o candombe. Manifestação originada como meio de comunicação, com a chegada dos escravos bantús ao Uruguai (da mesma região africana da qual foram trazidos escravos ao Brasil), o candombe é executado em conjunto por três tambores distintos: tambor chico, tambor repique e tambor piano, cada um com seu timbre particular, cuja junção, agrupadamente, se denomina cuerda. No Milongón assistimos à comparsa campeã do último carnaval uruguaio. O candombero que cantava, acompanhado pelos tamborileros e estimulando-os também a tocar, era parecidíssimo com o nosso Jair Rodrigues, em fisionomia, voz e expressões. As letras que cantava eram de uma jocosidade graciosa. Quando tocavam apenas os tambores, organizados em sua métrica nem sempre constante, recordavam algo dos tambores da Bahia. Quando passavam a ser acompanhados pelos acordes do piano, a musicalidade do candombe ganhava um toque caribenho.

E assim, nesse dia, consegui o que eu primeiro buscava: terminar a viagem me sentindo transbordante de Uruguai!

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Recuerdos Del Paisito: La Culinaria

Para definir em poucas palavras, no que diz respeito ao paladar, o Uruguai é um país onde, inegavelmente, se come bem; muito bem. Em se tratando dos pratos principais, a culinária uruguaia é composta predominantemente por receitas à base de carne de vaca, o que não surpreende, visto que o país tem 3,5 milhões de habitantes e cerca de 12 milhões de cabeças de gado. Contudo, cordeiro, frango e peixe também tèm lugar garantido, já que são por volta de 10 milhões as ovelhas e que o país, a Oeste, é banhado pelo Rio Uruguai, a Sudoeste está o estuário do Rio da Prata e a Sudeste o Oceano Atlântico. As batatas, principalmente fritas, também estão sempre presentes como acompanhamento, assim como as saladas.

O prato mais representativo da culinária do país é a parrillada, uma verdadeira tentação para os carnívoros de plantão: em uma grelha vertical com alguma inclinação, a parrilla, as carnes vão sendo assadas e esse processo pode ser observado. Normalmente estão presentes a carne, claro, o frango, a salsicha, a linguiça, a morcilla e também rins, que recebem o nome de chinchulín. O costume é que se consumam as carnes menos bem-passadas, mas isso pode ser conversado, bem como a troca de um item por um pouco mais de outro. No meu caso, troquei o chinchulín por mais carne; faltou coragem...

Algo que achei muito saboroso foi o chivito, um sanduíche que, em sua versão mais comum, leva pão de hambúrguer, carne, alface, tomate, queijo, ovo e maionese e vem acompanhado por uma porção de batatas fritas. Mas há outras versões com recheios variados. A maciez da carne é uma peculiaridade que poucas vezes vi aqui dessa forma. Me disseram que, pelo fato de o país ser predominantemente plano, o gado não precisa despender tanto esforço físico, estando, assim, mais relaxado, refletindo-se isso na textura da carne. Os brasileiros que me acompanhavam costumavam dizer que a sensação de cortar a carne no Uruguai era muito parecida com a sensação de cortar um pedaço de queijo. Para mim, que não sou carnívora por excelência e comi chivitos clássicos até não poder mais, a explicação faz todo o sentido. O sabor da carne uruguaia também é algo difícil de descrever, na melhor acepção da palavra. Creio que o chivito é um dos pratos dos quais mais vou sentir falta... Hummmm!!!

Ainda na seção sanduíches, o cachorro-quente, pancho no Uruguai, é bom também, embora menor e com menos ingredientes do que os que costumo ver aqui. Simples, mas classifico esse como um daqueles casos em que menos é mais: pão, salsicha, batata-palha, catchup, mostarda, maionese... Para mim, que pertenço à geração sanduíche-coca-cola, era algo impossível de perder.

Outro capítulo na culinária do Uruguai são as massas, sempre muito boas. Dada a grande presença de imigrantes no Uruguai desde o início de sua existência independente como país, creio, olhando os cardápios, que uma das maiores presenças imigrantes lá seja de italianos, porque é grande a quantidade e variedade de receitas de massa. Nem comento muito... Ai ai!!...

Uma curiosidade que segue uma tendência mundial depois das mais recentes descobertas científicas sobre os malefícios do sódio em excessso: está regulamentado por lei o não uso do sal, inclusive com campanhas publicitárias incentivando os uruguaios a diminuir ou cortar seu consumo. No entanto, os saleiros estão sempre à mesa, para suprir a falta que esse condimento faz a algumas pessoas.

Em se falando de bebidas, o mate, bebida por excelência dos gaúchos, ou melhor, dos gauchos, é consumido com a mesma espontaneidade e casualidade com que o cafezinho é consumido no Brasil. Estejam os uruguaios onde estiverem, façam o que fizerem, o mate os acompanha sempre. Nos mercados, é grande a profusão de marcas de erva-mate; muitas são as cuias, as bombas... De repente, você está passando por algum lugar na cidade e vê lá um quiosque onde se pode ferver a água, adquirir erva-mate, cuia, bomba, tudo o que seja necessário para que perdure sempre esse verdadeiro ritual de congraçamento entre o gaúcho e o mate.

E por falar em café... Bom, esse é um tópico difícil. Café no Uruguai é uma questão de sorte. Nos primeiros dias tive pouca; café aguado, fraco para o paladar brasileiro. Então comecei a estar mais atenta e descobri que, para tomar um bom café no Uruguai, é preciso ter o olfato sempre alerta. Se você chegar a um lugar e for recebido pelo aroma de café antes que qualquer pessoa note sua presença, então, vá em frente; satisfação garantida. Outra satisfação garantida naquele friozinho persistente é o chocolate quente; esse, imperdível em todos os lugares.

Uma bebida que merece destaque no Uruguai depois do mate é o vinho. Não sou o que se pode chamar de uma bebedora contumaz, mas assim mesmo creio estar fazendo uma boa indicação, não só pelo fato de que um dos passeios possíveis de ser feito é pela rota uruguaia do vinho, mas também por outro ponto curioso: em qualquer lugar onde houvesse um rádio ligado, um ouvinte atento poderia perceber a presença constante de propagandas de vinhos, de vinículas, de lugares que personalizam vinhos...O vinho que experimentei é o medio y medio, bebida típica uruguaia muito servida para acompanhar as carnes. Não sei como é feita a mistura, mas ela tem 50% de vinho e 50% de champanhe, uma combinação que resulta em um sabor particular, agradável ao paladar; por isso o nome da bebida: meio e meio. Muuuuuito bom!!!

E, por fim, os doces... Ah, os doces!... Difícil escolher qual é melhor do que o outro. Alfajores de todos os tipos: com doce-de-leite, com geleia, recobertos por chocolate ou não, com coco... Enfim, complicado saber qual o melhor. Muito gostosos também os suspiros, que aprendemos a conhecer como merengues, a mesma excelência valendo para o amendoim-doce. E os churros??? Essa é para quem cresceu assistindo ao Chaves: no quiosque, me senti como a turma do Chaves comendo churros: com chocolate (e não esse chocolate extremamente adocicado que temos aqui), com doce-de-leite e, acreditem se quiserem, mais comuns do que se imagina, sem recheio. Fiquei pasmada com a quantidade de pessoas que pedia churros sem recheio.

Deixei por último o croissant ou media luna, pelo fato de ela ser um dos pratos uruguaios presentes tanto entre as comidas salgadas como entre as sobremesas. Recheada com presunto e queijo, coberta por açúcar ou simplesmente sem recheio nem cobertura, era bastante comum ver alguém com uma media luna na mão, inclusive nós.

Ufa! Do que experimentamos, creio que não me esqueci de nada. Para quem estiver lendo, bom apetite!

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Recuerdos Del Paisito: Las Ramblas

Montevidéu tem 25 quilômetros de orla, oito praias de água doce, sim, doce! Trata-se do estuário gelado do Rio da Prata. E quando digo gelado, falo de um gelado que não muitas vezes conhecemos aqui no Brasil quando vamos à praia. Durante toda a viagem ouvi muito sobre como são bonitos os prédios na orla, como ela é bem-cuidada, como é seguro estar lá etc. etc. etc.. Contudo, as recordações que guardo da praia em Montevidéu são bastante particulares.

Fazia um dia, ou melhor, uma tarde bonita quando chegamos, um pouco depois do almoço, aquele friozinho com sol que eu havia aprendido a conhecer no Uruguai. Terminei de descer a escada e pisei a areia, fofa! Sempre gostei de brincar na areia fofa da praia; comecei instantaneamente a recordar minha infância, de tantas idas à praia com a família, principalmente com os meus avós. Meu avô me punha numa área livre da praia e dizia: “Corre”! E eu corria, ia, voltava... Sabia que a partir do momento em que ele me dizia isso, nada iria me atrapalhar; todo o cuidado já havia sido tomado. Era uma sensação incrível de liberdade, de poder estar sozinha e andar sozinha, algo que na cidade eu raramente experimento.

Quando pisei a praia de areia fofa em Montevidéu, essa recordação imediatamente me veio à cabeça. O vento no rosto era semelhante, embora um pouco mais frio, espanando não com tanta gentileza os meus cabelos em todas as direções sem que eu me preocupasse, tudo como antes. Essas coisas todas eu pensei, mas não disse. Claro que também não corri, mas não resisti a dar umas belas patinadas na areia!...

Uma amiga me dizia enquanto andávamos: “Olha, uma duna! Duas! Três”! E eu ali, toda encapotada, de botas, pensando: “Que coisa mais chata a gente estar tão coberta da cabeça aos pés na praia"... Mas não havia outro jeito. Eu pensava nisso, já sabendo de antemão que não resistiria à vontade de pôr pelo menos a mão na água, que certamente estaria fria e na qual não havia ninguém, mas que eu não deixaria de experimentar.

Andamos em frente, pela areia fina, fofa, branca e luminosa, pensando que, se não havia sal, como ela podia brilhar tão intensamente daquele jeito?... Comecei a ouvir o barulho da água se aproximando e tive a certeza de que eu não me comportaria tão bem por muito mais tempo. O salto da bota tocou a areia que começava a ficar molhada e consistente e continuamos alguns poucos passos. Me abaixei, toquei o chão que a água apenas roçava e mal se fazia sentir mesclada à areia e percebi que aquilo, para mim, não seria suficiente. Deixei uma sacola com alguns objetos, dizendo à minha amiga que já voltava. Fingindo que não ouvia a censura nas palavras dela, caminhei sozinha mais alguns passos para dentro do Rio-Mar da Prata, não muitos.

Ali já havia um pouco mais de água. Me contentei, resignada, e abaixei, segurando com uma mão a bolsinha com alguns pertences pessoais e tocando a água com a outra. Uma onda veio e revolveu a areia, afundando os meus saltos e me desestabilizando um pouco. Ergui firme a bolsinha e pensei: “Bom, o máximo que pode acontecer é eu levar um tombo de frente nessa água gelada e voltar molhada pro hotel; ta valendo”! No entanto, nada aconteceu. A onda voltou ao mar e devolveu a areia ao lugar onde estava antes, libertando os meus pés. Me abaixei com mais interesse e segurança, tocando irremediavelmente a água e tive uma grata surpresa: uma conchinha.

Nossa, sempre me surpreendi com as conchas; agora eu tinha na mão uma conchinha de Montevidéu... Que máximo! Comecei a esperar que as ondas escuras, calmas e geladas trouxessem outras conchas e a lavar aquelas que recolhia, todas brancas ou quase brancas e todas pequenas, do mesmo tamanho.... Sempre a vastidão do mar me trouxe um sentimento de interrogação. Eu tocava a água que sentia densa e gelada, recolhia e lavava as conchinhas e percebia de novo aquele velho sentimento crescer, ouvindo o barulho manso das ondas.

Mas infelizmente era preciso ir. Me levantei, girei nos passos e comecei a fazer o caminho de volta, recolhendo, no entanto, conchinhas da areia, que batíamos e se limpavam facilmente, iguaizinhas às que vieram do mar. Creio que devo ter passado naquela praia cerca de meia hora. Porém, nunca pensei que em metade de uma hora coubessem tantas sensações, tantos sentimentos, enfim, tantas coisas. Mas quando sabemos que estamos em um lugar ao qual possivelmente só iremos uma única vez, tudo se potencializa e intensifica.

Subi as escadas para sair e foi como se o tempo, esquecido de passar, voltasse a correr. Os carros e pedestres, o som do espanhol tranquilo que ia e vinha como o mar me lembraram que a vida continuava lá fora. Então segui sem me voltar, me preparando para o novo, que certamente viria depois...

sábado, 6 de setembro de 2014

Recuerdos Del Paisito: Montevideo

A primeira impressão que tive quando comecei a percorrer Montevidéu a pé, tocando a parede antiga e rústica que restou daquela que antes fora uma cidade amuralhada, foi de que eu havia sido transportada magicamente aos tempos coloniais. Forte militar e porto natural, San Felipe y Santiago de Montevideo foi edificada por Bruno Mauricio de Zabala, em dezembro de 1726, para deter o avanço dos portugueses, que já haviam fundado à margem esquerda do Rio da Prata, ainda no século anterior, a cidade de Colônia do Santíssimo Sacramento e prosperavam, com pretensões de expandir seus domínios em terras do rei da Espanha e, assim, minerar e traficar por intermédio ddeste rio.

Sendo este monte o sexto que se poderia ver navegando a costa do Rio da Prata de Leste a Oeste, segundo relatos da época da fundação da cidade, academicamente sustenta-se que a origem do nome Montevideo – Monte-VI-D-E-O – seria: Monte VI de Leste a Oeste. No entanto, há também outras explicações mais controvertidas, sejam elas espontâneas, religiosas ou documentais. Contudo, nenhuma dessas explicações conta com provas realmente contundentes que possam sustentá-la em detrimento das demais.

Esta se propõe a ser uma visão mais geral da capital uruguaia, ficando suas particularidades mais marcantes para as próximas crônicas. Creio que o olhar desta cronista sobre a cidade parecerá distinto à maioria dos leitores, visto que irá descrevê-la do ponto de vista de alguém que não vê, levando, assim, em conta, detalhes que normalmente não são percebidos por aqueles que olham.

Montevidéu é uma cidade plana. Não é perfeita em termos de acessibilidade arquitetônica, como de resto poucas cidades são, mas suas dificuldades de acessibilidade, fisicamente falando, são menores frente a todas as cidades brasileiras que conheço. São pouco numerosas as irregularidades no pavimento, se bem que existam, claro, e as rampas para cadeirantes, pelas quais fiz questão de passar para verificar empiricamente, me pareceram todas bem construídas e com inclinação adequada.

No que toca às atitudes, uma muito grata surpresa: as pessoas, de modo geral, lidaram comigo, não só em Montevidéu mas nas outras cidades uruguaias onde estive, com naturalidade e espontaneidade, deixando-me tocar o que era necessário e mostrando-me concretamente, sem reservas, com o uso de seus corpos ou mãos, de objetos ou de demonstrações por meio de meu próprio corpo, o que havia para ser concretizado. Quando me lembro de tantas vezes nas quais já fui impedida de tocar objetos e lugares aqui no Brasil, seja em lojas, seja em museus, seja onde for, inclusive com as pessoas me dizendo que se eu tocasse determinado monumento a segurança me repreenderia ou prejudicaria o monitor, penso que, em se tratando de como lidar com pessoas com deficiência, em Montevidéu estive no melhor dos mundos. Porque é engraçado: tudo indica que aqui no Brasil, por exemplo, os cegos não consomem, não precisam ter acesso à cultura. Muitos olhares tortos, fiscalizadores e penalizados que tive aqui desde que me conheço por gente, e que percebo mesmo que se pense o contrário, lá, não tive em momento algum.

Para aqueles que me leem com olhos de ver registro, na paisagem da cidade, primeiro, seus grandes plátanos, e depois seus eucaliptos. Ainda posso mencionar suas muitas praças, parques e áreas verdes; capital com matizes de cidade do interior. Em seus 25 quilômetros de orla murada e bem pavimentada, os montevideanos praticam esportes, passeiam com os cachorros – muitos! Mas dificilmente estão sozinhos – brincam com as crianças ou simplesmente descansam.

No que tange à conservação, há, sim, claro, imóveis históricos, por exemplo, que necessitariam ser restaurados, como aqui. No entanto, o cuidado com o patrimônio me parece maior, outra lição que poderíamos ao menos começar a aprender.

Mais um ponto positivo a destacar parece ser a maior prudência no trânsito. Se os semáforos estão vermelhos para quem anda a pé, o pedestre aciona um botão. Eles ficam verdes, os carros param tão logo avistam a mudança e se pode atravessar as ruas com tranquilidade. Poucas foram as motos que vi, ou seja, nada de motoqueiros costurando o caminho entre os carros e amedrontando até mesmo os pedestres mais alerta. Algo curioso ao se transitar pelas calçadas: é como se houvesse uma linha imaginária vertical que dividisse a calçada em duas partes, uma para os pedestres que vão e outra para aqueles que vêm. Acredite-se ou não: essa linha traçada no imaginário coletivo dos montevideanos é impreterivelmente respeitada.

Os táxis, fechados na parte de trás, em que se vê o motorista através de vidros, me pareceram meio claustrofóbicos; na verdade me senti meio enjaulada neles – agora uma lembrança divertida -, mas compreendo que essa seja uma precaução que até poderia ajudar os taxistas brasileiros no que se relaciona aos assaltos a táxis, que têm se tornado cada vez mais frequentes aqui. Uma prática que creio seja comum aqui e lá são os atravessadores. No shopping Punta Carretas, por exemplo, que por sinal fica longe do centro, se você desejar pegar um táxi para voltar ao hotel, antes de pagar ao motorista, que está fazendo seu trabalho como deve, prepare-se para molhar com alguns pesos a mão do atravessador, que no meu caso foi um rapaz bem aparentado, com os cinco sentidos perfeitos e inegavelmente apto para fazer parte da população economicamente ativa do Uruguai... Mas vai ver que a exploração do turismo seja bastante mais rentável que o trabalho mensal, não é? Vá se saber... Por outro lado, não convem esquecer que todos os lugares, assim como tudo na vida, têm seus pontos positivos e negativos. Este é o ponto negativo que tenho para destacar na cidade.

O que me fica da capital uruguaia, para dizer em linhas bem gerais, é uma mescla entre o tradicional e o moderno; um olhar para a frente sem esquecer as origens de tudo. Gosto disso, faz a gente se repensar e se reencontrar no mundo...