quinta-feira, 31 de julho de 2014

Gratidão, Honra, Dignidade

“Se podes olhar, vê; se podes ver, repara”. (José Saramago)

(Dedico estes escritos a todos os filhos que, por uma razão ou por outra, se tenham tornado, em algum momento da vida, pais de seus próprios pais.)


A tarde era de alegria, sarau! Soprava esse friozinho chato, tempo nem geladíssimo nem quente demais, que finda os outonos no Brasil. O piano de cauda, ocre-caramelado, majestoso e recém-chegado, aguardava os pianistas e os ouvintes.

De repente Ela chegou. Alheia ao mundo que a rodeava, deixou-se ser posta no sofá da maneira como fosse e lá ficou, porque não mais importavam o lugar nem o como. A única coisa que lhe importava, ainda e de alguma forma, era estar presente.

Seu rosto denotava desconforto, talvez algum cansaço. Sua fiel companheira e acompanhante já há tantos anos, que conversava comigo por um momento, me segredou, com respeito reverente e desvelo na voz alegre:

- Olha, eu vou levar a doutora ali pra deitar um pouquinho e já volto.

Acenei afirmativamente, pensando na suavidade digna, solícita e cheia de reconhecimento com que aquele “doutora” saía dos lábios dela, recordando que são apenas uma a que foi e a que é, frisando que os vários eus de uma pessoa jamais se excluem; muito ao contrário, acumulam-se e complementam-se.

Quando já almoçávamos - churrasco, pagode, caipirinha, cerveja - Ela ressurgiu, inteira em sua baixa estatura, bem-disposta, até algo sorridente. Cumprimentou todos os presentes e, agora sim, estava firme, pronta para ser parte da festa, da forma como fosse, da maneira como pudesse ser.

Passada a euforia etílica do almoço, nos preparamos todos para ir conhecer com mais profundidade o motivo daquela festa toda, o piano, que enchia a sala com sua presença a um só tempo maciça e delicada. Eu o ouvia, meio atenta, meio distraída, quando Aquela Senhora, que desde o início me chamara a atenção, veio sentar se ao meu lado no sofá, tão outra, tão renovada.

- Ela foi a médica da sua mãe... - minha cabeça reproduzia o que minha avó sempre dizia e ainda diz. Então aquela era a figura cujo nome desde a infância eu já conhecia, de uma maneira quase mítica e que pensei que não veria pessoalmente, porque nem a mais astuta das pessoas é jamais capaz de prever as voltas que a vida dá. Cadddda frase era um assunto, e assim íamos navegando, eu pensando se me sairia bem na tarefa de agradá-la e entretê-la, já que Ela me havia escolhido para fazer-lhe companhia.

Conversávamos enquanto sempre havia alguém para soar o piano. De vez em quando, Ela cantarolava melodias e as modulações de sua voz me deixavam perceber que emoções insondáveis, talvez distintas e inúmeras, lhe povoavam a mente e a maneira que encontrava de exprimi-las era dialogando musicalmente com Chopin, Tchaikovsky, Nazareth, Waldir Azevedo, Gardel...

Quando chegou a vez daquele tango de compositor uruguaio que a Argentina adotou como o tango dos tangos, Ela se levantou e arriscou uns passos surpreendentemente ágeis e compassados para quem a havia visto mais cedo na chegada, observados com cuidado e graça benfazeja pelos que a olhavam mais de perto. Ao retornar ao sofá sentando-se novamente ao meu lado, ou seja, escolhendo-me pela segunda vez, perguntei, para entabular uma nova conversa:

- Então a senhora tocava piano?...

- Tocava! - respondeu, como que tomada de novo ânimo, fôlego e força, e continuou:

- Tocava e isso é uma das coisas que me deixa mais frustrada por não ter voltado a fazer.

- E por que não? - perguntei, notando que a lucidez definitivamente a tomava de assalto e que eu havia encontrado um assunto do qual Ela parecia ter gosto em falar.

- Sabe o que aconteceu? - Ela recomeçou me olhando com mais vivacidade no rosto e na voz - Meu pai faleceu, minha mãe faleceu e eu nunca mais consegui me reabilitar como pessoa, e agora isso fica marcado na vida de todos os meus filhos...

Tão repentinamente quanto começou Ela parou de falar, parecendo novamente absorta pela música e esquecendo a confissão de toda uma vida que acabava de fazer a mim, uma quase desconhecida, para mergulhar de novo no aparente torpor costumeiro das emoções fugazes e indecifráveis.

A luz alegre e refletida do fim da tarde se coava pelas portas e paredes envidraçadas da grande sala e eu pensava:

- Meu Deus, então, de alguma forma inconsciente que a medicina a que se dedicou a vida inteira não explica, Ela sabe que habita hoje um mundo só seu, porque um dia sofreu demais...

Ajeitei de leve o cobertor macio que a confortava no friozinho desenxavido da tarde, pensando em quanta força interior ainda se escondia por detrás daquela aparente fragilidade externa, emocionada e grata a Deus por ter me concedido viver um momento como este, e pouco voltamos a falar depois disso, até que Ela partiu, acompanhada por familiares, entre eles filhos, que agora a cuidam como o fazem pais.

Escolhida espiritualmente para ser portadora dessa revelação tão importante que Aquela Senhora queria fazer conhecer e manter viva, hoje escrevo esta história, universal e que já se deve ter repetido tantas vezes desde o início da humanidade sem que ninguém o percebesse...

- Pronto, Doutora, como a chama sábia e delicadamente o seu anjo da guarda aqui da Terra. A partir de hoje está bem guardada e preservada a sua mensagem! E quando, se um dia chegar novamente a hora, sou toda ouvidos.


Limeira, 25 de junho de 2014