quinta-feira, 12 de março de 2015

Esmeralda

“Caminos

De la ciudad moruna/tras las murallas viejas,/yo contemplo la tarde silenciosa/a solas con mi sombra y con mi pena./El río va corriendo/entre sombrías huertas/y grises olivares,/por los alegres campos de Baeza./Tienen la vides pámpanos dorados/sobre las rojas cepas./Guadalquivir, como un alfanje roto/y disperso,/reluce y espejea./Lejos, los montes duermen/envueltos en la niebla,/niebla de otoño, maternal; descansan las rudas moles de su ser de piedra/en ésta tibia tarde de Noviembre,/tarde piadosa, cárdena y violenta/El viento ha sacudido/los mustios olmos de la carretera,/levantando en rosados torbellinos/el polvo de la tierra./La luna está subiendo/amoratada, jadeante y llena./Los caminitos blancos/se cruzan y se alejan,/buscando los dispersos caseríos/del valle de la sierra./Caminos de los campos.../¡Ay, ya no puedo caminar con ella”! (Antonio Machado).


Desde bem pequena me lembro muito claramente de uma bonequinha trajada à espanhola, que meu avô havia trazido de viagem de algum lugar para minha mãe muitos anos antes e que sobrevivera até chegar às minhas mãos. Ela sempre me chamava a atenção: usava um vestido longo, de tecido grosso – mas não grosseiro -, pregueado, que era diferente dos vestidos de noiva, os únicos vestidos longos que eu conhecia então. Aquele era um vestido rodado e longo, com babados, mas cuja cor eu não saberia dizer, um detalhe para mim desimportante. A cabeça coberta pelo véu, brincos de pérolas nas orelhas, clássicos e ocidentais e, em contraste, uns olhos de cílios grandes que se moviam para cima e para baixo, conforme a boneca era manejada; provavelmente escuros. Só bem mais tarde descobri que aqueles olhos de cílios grandes eram os famosos olhos mouros, mouriscos ou árabes, de profunda perspicácia e mistério por trás dos tantos lenços e véus advindos do Oriente... E um rostinho delicado, perfeito, simétrico. Uma boneca em tudo distinta das tantas outras que eu tinha. Os sapatos, porém, se haviam perdido no tempo; já me lembro dela assim, descalça. Eu a tateava incansavelmente, mesmo sabendo que já conhecia cada detalhe. A cada dia de brincadeira aproveitava para revisitá-la um pouquinho; quem sabe não haveria ainda algo no traje da espanhola que eu não tinha notado antes... Quando perguntei o porquê de todo aquele estilo, digamos, exótico, minha bisavó respondeu simplesmente:

- É uma espanhola, fia!

Essa resposta não me aclarou nada, porém guardei-a. Foi o primeiro contato que me lembro de ter tido com a Espanha e os espanhóis. Aquela boneca, ostentando com arrojo e graça o vestido longo e rodado, as pérolas, os cílios grandes, o véu nos cabelos, tinha toda minha reverência; sempre pressenti um mundo diferente escondido por detrás dela. Eu a colocava em pé e as saias e babados tomavam o espaço diante de mim, majestosamente. Eu a movia e o vestido serpenteava no rastro dela. “Gosto disso”, eu pensava sonhadora... Curiosamente, nunca lhe dei um nome e não tenho notícia de que minha mãe tenha feito isso antes de mim.

O tempo passou e a espanholita ficou mais na memória do que no cotidiano, embora existisse ainda em algum armário. Mais ou menos aos treze anos eu já era uma leitora voraz. E foi assim, por meio dos livros, que a Espanha voltou à minha vida de maneira mais incisiva. Certo dia eu lia Ana Terra, um dos capítulos de O Tempo E O Vento, história em que o genial Érico Veríssimo conta a saga das famílias Terra e Cambará, dos séculos XVII ao XX e, com ela, como pano de fundo e determinante dos rumos das personagens, também a história do Brasil e principalmente da região que é hoje o nosso estado do Rio Grande do Sul. Entregue à fascinante vida da jovem, forte e bela Ana Terra, ambientada na região que futuramente seria o Rio Grande do Sul, mas no século XVII, de tantas disputas e guerras com os castelhanos, subitamente li o seguinte:

“ - Donde están los otros?
Ana mal reconheceu a voz do irmão quando ele respondeu, meio engasgado:
- Dentro de casa.
- Que salgan! Bamos!
- Vosmecê pode me dizer. . - começou Antônio.
- Perro súcio!
Ouviu-se um estampido lá fora. E em seguida Maneco disparou o mosquete. Pelo vão da porta o escravo atirou também. Ana rojou-se ao chão, de todo o comprimento, colou-se à terra, enquanto outros estrondos fendiam o ar e as balas esburacavam as paredes do rancho. De olhos fechados, Ana ouvia os gritos e os tiros, sentia cair-lhe poeira sobre o corpo, enterrava com desespero as unhas no chão. Santa Maria Mãe de Deus - pensava ela - rogai por nós pecadores... Da boca entreaberta saía-lhe com a respiração uma baba visguenta. De repente ela viu, mais com os ouvidos que com os olhos, que a parede da frente vinha abaixo. Um dos bandidos entrava no rancho a cavalo, distribuindo golpes de espada a torto e a direito. Ana sentiu tão perto o resfolegar do animal que escondeu a cabeça nas mãos e esperou agoniada que patas lhe esmagassem o crânio ou que espadas lhe varassem o corpo.
A gritaria continuava. Mãos fortes agarraram Ana Terra no ar, e puseram-na de pé. A mulher abriu os olhos: cresceram para ela faces tostadas, barbudas, lavadas em suor.
- Mira que guapa!
Um dos homens apertou-lhe os seios. E depois Ana viu uma cara de beiços carnudos, com dentes grandes e amarelados - e esses beiços, que cheiravam a cachaça e sarro de cigarro, se colaram brutalmente aos seus num beijo que foi quase uma mordida. Ana cuspiu com nojo e os homens desataram a rir.
Um suor gelado escorria-lhe pela testa, entrava-lhe nos olhos, fazendo-os arder e aumentando-lhe a confusão do que via: o pai e o irmão ensangüentados, caídos no chão, e aqueles bandidos que gritavam, entravam no rancho, quebravam móveis, arrastavam a arca, remexiam nas roupas, derrubavam a pontapés e golpes de facão as paredes que ainda estavam de pé. Mas não lhe deram tempo para olhar melhor. Começaram a sacudi-la e a perguntar:
- Donde está la plata?
La plata... la plata... la plata... Ana estava estonteada. Alguém lhe perguntava alguma coisa. Dois olhos sujos e riscados de sangue se aproximaram dos dela. Mãos lhe apertavam os braços. Donde está? Donde está? La plata, la plata... Ela sacudia a cabeça freneticamente, e a cabeça lhe doía, latejava, doía... La plata...” [...]

Paro de reproduzir aqui o trecho que por muitos meses permaneceu em minha mente, mesmo que eu me tenha dedicado a outros livros depois. Certamente o leitor imagina o que aconteceu onde havia uma mulher sozinha e vários homens cheios de más intenções praticadas e declaradas, exatamente o que ocorre, seja na realidade, seja nos livros. Furto-me, assim, a reproduzir o fim do capítulo, que, como mulher, me aflige. A mim, contudo, uma adolescente caseira que tinha em ler uma de suas maiores e melhores diversões, a Espanha agora trazia medo; tornava-se difícil enxergar que existisse lá algum homem diferente dos castelhanos que violaram Ana Terra, destruíram sua família, sua casinha e dilapidaram seus poucos bens. Sempre tive facilidade para aprender e identificar sonoramente idiomas, tanto quanto música. Sempre concebi as línguas estrangeiras como músicas perfeitamente distintas umas das outras, pelo menos aos meus ouvidos. Assim, depois da leitura de Ana Terra, ao ouvir a mais mínima palavra em espanhol, um arrepio gelado e desagradável me percorria o corpo todo em uma fração de segundo, era uma musicalidade de que comecei a não gostar.

Mas, graças a Deus, nem sempre as primeiras impressões, ou as até então mais marcantes são as que ficam. Um tempinho depois precisei ler o Dom Quixote, de Cervantes. Mesmo sabendo que o Quixote não era bonito, que já era mais velho e só fazia trapalhadas, embora sempre bem-intencionado, conforme eu lia, sentia vontade de ser a Dulcineia que ele jamais conseguira encontrar, de sair por aí galopando na garupa do cavaleiro da triste figura por toda a Espanha, ainda que o potente Rocinante não passasse de um magro e fraco pangaré.

Nessa época também eu já me virava bem no teclado. Meu avô-pai sempre teve uma relação estreita com os países de fala hispânica. Neto de espanhola e montando máquinas pela América Latina, falava espanhol fluentemente, guarani também, e acho que herdei dele o meu ouvido musical. Ele escolhia as músicas que queria que eu tocasse, muitas vezes de países que falam espanhol, e eu que me virasse pra tocar.

- Eu sei que você consegue, toca aí, vai! É tão bonito... - e assobiava a tal música que queria.

Escolhia músicas e mais músicas, sempre antigas. Ele cantarolava e eu tinha que executar. Verdade seja dita, eu sempre conseguia e ele ficava satisfeito, pensando, viajando, lembrando sabe Deus que tantas coisas... cantava, assobiava, estalava os dedos... Chegava mesmo a dar uns passinhos pela sala, fazendo tilintar o antigo relógio de metal no braço esquerdo e bater os chinelos...: Malagueña Salerosa, La Barca, El Reloj, Perfidia, Bésame Mucho, India, Adelita, La Chalana, tangos de Gardel - principalmente Por Una Cabeza e La Cumparsita... Dentre tantas outras que eu poderia enumerar. Eu ouvia também um cd de boleros que uma vez peguei em umas coisas do meu pai... Peguei e não devolvi mais; ele disse que não precisava. Hoje estou certa de que essa minha procura pelos sons, pelas harmonias, pelos ritmos para contentar meu avô ajudou definitivamente a desenvolver o ouvido musical que eu tinha. Tomei gosto pela coisa e comecei a tocar o que eu mesma achava bonito, caminhando em paralelo com os professores de música popular que tive ao longo da vida e ampliando sempre o repertório, inclusive o de música hispânica, já sem que ele pedisse. Tenho certeza de que isso me proporciona hoje poder dedicar-me às músicas clássicas que mais me agradam no piano, oferecendo-me uma maior segurança para me desenvolver naquilo que pedem as interpretações. A música e a musicalidade foram, portanto, o melhor e maior bem que meu avô me deixou e poderia ter deixado.

Mas foi na universidade que percebi que o espanhol e a Espanha se entranhavam de vez em mim. Estudando literatura cheguei a Eurico, O Presbítero, de Alexandre Herculano. Lá descobri Toledo – um dos últimos redutos mouros na Península Ibérica -, os sarracenos e a influência que tiveram naquela que um dia seria a Espanha, por 700 anos. Era dessa suceção de eventos, então, que vinham aquelas letras “l” tão bem pronunciadas, rigorosamente nítidas do espanhol, assim como algunas otras cositas... Soube, então, que era isso o que eu gostava na Espanha, esse ponto de intercecção entre o Ocidente e o Oriente, esse meio do caminho geográfico e cultural, essa melancolia árabe e muçulmana, semita, que cresceu e se desenvolveu forte, lado a lado com o que a Espanha tem robustamente de ocidental e cristão. A partir dali eu sentia que não podia mais escapar a isso, que sempre alguma coisinha espanhola faria parte de mim.

No último ano da faculdade uma amiga, Mônica, fez uma viagem ao Peru e Bolívia, me trouxe dois cds de música andina e uma samponha, toda enfeitadinha, artesanal, linda... E, surpresa das surpresas, uns três anos depois comecei a estudar espanhol com um professor chileno, vizinho da minha mãe, Alejandro; ainda não sei como comecei, quando percebi já tinha ido, estava lá. Meu avô me levava a cada semana, todo satisfeito; estava escrito no rosto dele como ficava contente em me levar às aulas de espanhol. Venci minhas últimas resistências íntimas e comecei a ouvir minha própria voz em espanhol, com aquela cadência nova, a um só tempo terna e forte, saída de recantos que nem eu mesma conhecia, sensação diferente... E definitivamente agradável, música que começava a se tornar familiar aos meus ouvidos. Aquele foi um ano intenso. Gramática, ortografia, muito cuidado com a escrita, apuro na fala e Alejandro me pegou pelo ponto fraco, literatura: aprendi muito com A Ciganinha, de Cervantes, El Cid, O Zorro, e outros livros menos conhecidos, todos lidos em espanhol. E essa minha aproximação com o idioma durou um ano. Até que chegou um dia em que meu avô foi falar espanhol, guarani e cantar moda de viola no céu... Tive um bloqueio fortíssimo. Tinha, então, um piano, mas não conseguia mais tocar; sentava-me diante dele e parecia que mutuamente nos repelíamos; minha mão pairava a dois, três centímetros das teclas sem coragem de tocar nelas; só a angústia havia. Vendi o piano. Passei cinco anos sem fazer soar uma nota sequer, o espanhol me visitava às vezes; lia, de vez em quando, uma coisa ou outra. Mas a Espanha continuava presente. Eu soube disso quando toquei, uma vez, uma estátua de um touro, subjugado, com o toureiro sobre seu dorso... Fiquei pensando: “Se esse bicho suspeitasse a força que tem”... Permaneci ali um tempo, alisando o touro de bronze, e alguma coisa despertou dentro de mim. Na mesma época assisti, ao vivo, a uma apresentação de flamenco, com bailarinos e músicos espanhóis... Impressiona a sincronia das pontas e calcanhares dos sapatos dos casais de bailarinos no assoalho com a energia das palmas, o violão, as castanholas, os tambores e as vozes vibrantes e cheias de fôlego para as vogais longas e lamentosas, tão típicas da música cigana e árabe, mais ou menos como os chamados para as orações que ecoam nas mesquitas ao redor do mundo, e refletidas com graça melancólica naquilo que a música espanhola tem de ocidental... Aliás, essa transição musical da Espanha entre os tons maiores e menores na mesma canção, às vezes na mesma frase musical é fascinante! Quando as bailarinas tocam castanholas e dançam, a impressão que se tem é a de que as castanholas conversam, perguntam e respondem, retrucam e treplicam. Havia uma das bailarinas, pareceu-me ser a mais experiente do grupo, que sempre gritava palavras de incentivo às outras: “¡Vamos”! “¡Dale”! etc., com voz sonora, palavras claras, rosto sorridente durante as invocações. Tudo isso somado à melancolia intensa e, a sua forma, alegre, da música cigana e às bem definidas expressões faciais para cada momento. O entrosamento de músicos e dançarinos é indescritível. Sem contar que não é preciso ver com os olhos para entender; encantador! Basta agora ouvir o som de castanholas para que o meu rosto se transfigure.

E como Deus sempre nos envia anjos da guarda sobre a terra, certo dia, em um passeio com Evandro, um amigo professor de piano erudito, e Wânia, que também o piano me trouxe, sua aluna e que depois veio a tornar-se uma amiga muito querida, fui interpelada pelos dois insistentemente para voltar a tocar, que eu ficaria feliz, que meu avô, onde estivesse, gostaria de ouvir, que eu me sentiria mais leve, mais alegre....

- Volta – me dizia Wânia vezes sem conta com aquela expressão calma e serelepe tão sua – A gente toca junto... Seria tão legal...

- É isso, emendava Evandro com cara de negociante que sabe que a operação vai ser bem-sucedida – volta, Ser! (um apelido carinhoso). – A gente troca piano com inglês, eu vou na sua casa, vamos, vai amarelar? – disparou de uma feita, provocante.

Não, não amarelei, voltei, graças a Deus voltei. Pedi para tocar música espanhola e fui atendida prontamente:

- Agora que você voltou, escolhe, toca o estilo que quiser – Evandro Garantia com um sorriso triunfante de orelha a orelha.

Promessa feita, promessa atendida. No segundo mês de aula comecei uma malagueña do espanhol Isaac Albéniz, que depois soube que era para alunos do sexto ano, mas então eu já a estava quase terminando de ler, celando minha reaproximação com o piano e, de alguma forma, com o idioma castelhano... e agora já tenho um tango também dele... E Evandro me permitiu realizar um sonho antigo: tocar vestida, completamente, de espanhola; me apresentou até a costureira que transformaria tudo isso em camadas e camadas farfalhantes de preto e vermelho... Fui atrevida o suficiente para pedir e ele, sem pestanejar, novamente, me atendeu. Minha avó-mãe Adalgisa afirma categoricamente que esse foi o encontro de dois malucos. Isso sem contar os amigos novos que ganhei. Tantos presentes o espanhol me trouxe... Desde então os arabescos andaluzes vêm se desenhando dia a dia em minha existência, proliferam-se a Espanha e o espanhol em cada acontecimento, em cada coisa. Sinto que esse universo se torna cada vez mais parte de mim, me constitui como uma identidade, como uma marca de cuja força, não sei por que obscuro motivo, eu ainda não me havia dado conta. Adotei de vez em quando a mantilha, lenços, o batom vermelho... Tudo pela arte, para ir entrando no clima... Pela arte e por mim mesma.

E como a vida não para de dar voltas, ano passado voltei a estudar espanhol. Desta vez com uma professora uruguaia, Alicia, ou simplesmente Ali, alguém que conheci casualmente num dia já distante e que vim encontrando e reencontrando ao longo dos anos em distintos lugares, por essas artimanhas ocultas das antigas parcas gregas que tecem e retecem o destino, até que nos reencontramos definitiva e imutavelmente, como professora e aluna. Hoje, no entanto, quando penso no rol dos meus amigos mais próximos, o nome e a figura de Ali logo aparecem, outro presente que ganhei aceitando o espanhol de volta de uma vez por todas. Agora, com uma delicadeza até então insuspeitada na forte língua espanhola, tornei-me, por escolha dela, carinhosamente, Yarita, como até hoje permaneço e tenho gosto em ser; um apelido que “pegou”, nas aulas de espanhol e fora delas. Em vários outros lugares e círculos por onde transito eu já sou Yarita. Diferentemente de quando me defrontei com Ana Terra, agora tenho até um apelido genuinamente espanhol e ele me soa bem nos ouvidos. Hoje, de uma vez por todas, a musicalidade do espanhol me é agradável e ninguém mais, na ficção ou na realidade, pode arrancá-la desse patamar. Já penso cada vez menos para usá-la dia a dia.

Uma tarde conversávamos despreocupadamente no facebook (sempre em espanhol) sobre como era bom tocar música espanhola e falar espanhol e eu comentava com Ali que gostaria de encontrar um nome para essa presença espanhola que me habitava em forma de música desde que voltei a tocar piano, um nome que definisse espiritualmente como me sinto quando toco, que preenchesse um pouco essa vontade íntima que passei a ter de ser espanhola de uns anos para cá; uma espécie de estado de espírito com nome espanhol. Ela quis saber se eu já havia pensado em algum. Respondi que Isabel, mas poderia ser confundido com um nome português; Carmen, mas já havia muitas Carmens, tanto na ficção quanto na realidade; Soledad, mas que esse nome me parecia muito triste; que então eu pensava chamar Esmeralda a essa força que me enchia de disposição e propósito, depois de tanto tempo sem tocar. Seria esse, para os amigos, despretenciosamente, o meu pseudônimo musical; Esmeralda.

- Esmeralda, nombre de piedra preciosa – me respondeu – ¡Me queda grande!

Para os que me conhecem e apreciam piano, que sabem dessa minha cruzada para poder voltar a tocar e da alegria que sinto por ter conseguido, sou agora, muitas vezes, com carinho, Esmeralda, com o “L” bem longo. No coral em que canto também já sou Esmerallllda desde que me viram tocar. E assim Esmeralda, no piano, vai desabrochando para o mundo e Yara, Yarita, também vai ficando contente por tabela. Me acompanham sempre, para ouvir, Paco de Lucia, Buena Vista Social Club, Gypse Kings...

Mais recentemente a história de Esmeralda ganhou um capítulo novo; novo e difícil. Minha avó fez comigo uma viagem e ficou seriamente enferma. Internada na unidade de cuidados intensivos, eu não podia entrar para vê-la. Impotente em um país longínquo e estranho, resolvi, assim, sair com o grupo para passear, para desanuviar os pensamentos, tentar esquecer o quanto fosse possível. Tínhamos uma guia espanhola, Reyes, e uma portuguesa, Helena, que fazia naquele momento a visita guiada do nosso grupo de brasileiros. Assim, foi permitido que Reyes estivesse comigo o tempo todo: me levou para tocar os monumentos, descrevia tudo com rigor de detalhes, me conduzia com cuidado, avisando de cada obstáculo, fez fotos e mais fotos minhas nos lugares em que eu as solicitava, me sugeria poses que pensava ficariam bonitas – e ficaram mesmo – tudo com muita prontidão, carinho, desvelo e em língua espanhola. Pratiquei o idioma, me distraí de minha impotência, consegui passar bem por aquele dia tenebroso e ganhei uma nova amiga. Uma vez mais, lá estava o espanhol me acalentando a alma naquele momento tão difícil, um dos mais difíceis de toda minha vida... E mais uma vez a face suave do forte idioma espanhol se mostrava a mim.

E hoje estou eu aqui diante do teclado do computador, com todas essas letras inquisitivas me olhando, rendida às lembranças, aos fatos, aos fragmentos, aos sentimentos todos que se acumularam ao longo dos anos; estive metamorfoseada por minha própria vontade em Esmeralda, tendo tocado música do Sul da Espanha ao piano há poucos dias, completamente trajada como a bonequinha espanhola de minha infância, com exceção dos cílios grandes. Batom e esmalte vermelhos, sapatos de flamenco, pente como os da Espanha nos cabelos, bem como a flor vermelha, o véu, claro, o véu... Tudo como imagino que deva ser, e a música espanhola saltando de mim para o piano antes inerte, em rajadas de plenitude. Pelos epítetos que recebi, creio que consegui o que queria, ser espanhola por um dia: “Frida Calo”; “Periguete de Albéniz”; “A própria Carmen”; “Rainha de Alhambra”. Imagino que meu avô gostaria de me ter visto daqui debaixo (porque de lá de cima aposto que viu). Como foi bom ser Esmeralda, ser espanhola por aquele tempo em que toquei Albéniz... Quanto arrebatamento, quanto êxtase! Que sensação boa de que tudo está no seu devido lugar... De que consegui finalmente “atar as duas pontas da vida”, a Yara de ontem e a Yarita de hoje, como almejou um dia Dom Casmurro...

E foi assim que, quase miraculosamente, os eventos se vieram construindo em minha vida, para que eu pudesse, de alguma forma, ter esse encontro com aquelas que sei que são as minhas raízes. Agora, só resta despedir-me dos leitores que me acompanharam nessa viagem geográfica e cronológica. E àqueles que nelas acreditam, que Nossa Senhora do Pilar e Santa Teresa Dávila os protejam e guardem... Amém!