tag:blogger.com,1999:blog-35843195562401071042024-03-14T04:57:19.713-03:00Pra não perder o costume...Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.comBlogger35125tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-32094765124511127382017-06-16T03:40:00.002-03:002017-06-16T03:40:27.327-03:00Pelos Olhos“Onde o interior e o exterior se tocam, ali se encontra o centro da alma”. (Novalis).<br />
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Desde bem pequena até o início da juventude fui várias vezes à praia: Eram Excursões com toda a família; saíamos de madrugada nos finais de ano, como muitas famílias ainda hoje fazem, alguns dias depois do natal. Já no litoral, quem me acompanhava à água era meu avô: sempre gostei mais da água do que da areia. Nadávamos, brincávamos, ele sempre me ensinou a não temer as ondas, a ficar muito atenta a seus sons, para aprender a distinguir assim os tamanhos que tinham e a pular no momento exato em que elas me atingiriam: de costas, de frente... Me ensinou a boiar sobre elas, a me agachar no mar raso e deixar que me levassem até a praia... Mas nunca tive registro visual de nenhuma imagem dessas, só tátil, auditivo.<br />
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O tempo foi passando e fui retendo assim esses momentos com o mar e a praia, pelos cheiros, sons, texturas. Até um pouco depois dos vinte anos eu ainda tinha vontade de ver com os olhos, confiava que a medicina me traria brevemente isso, que eu ainda teria muito tempo para aprender tudo de novo, que poderia finalmente conhecer visualmente tantas das imagens que quase todos que me acompanhavam pela vida já tinham visto, inclusive as imagens do mar.<br />
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A música clássica foi outra coisa que me acompanhou desde sempre, mas eu ouvia as peças sem a preocupação de quem eram os autores, depois, devagar, os ia descobrindo, associando uma coisa com outra. E assim, certo dia, sentada na sala de minha antiga casa, já na época da faculdade, ouvi o segundo movimento do Concerto número 2 de Chopin pela primeira vez, mas não sabia que era Chopin. Quem tocava ao piano era Arthur Moreira Lima. Fui ouvindo os primeiros acordes das cordas da orquestra, a suavidade da flauta acompanhada por outros sopros, depois entrou o piano com firme suavidade e comecei a pensar que aquela melodia poderia bem ser o fundo musical apropriado para alguém que aprecia visualmente o mar pela primeira vez, como eu pretendia ainda poder fazer um dia. Fui ouvindo aqueles sons cristalinos que subiam e desciam lentamente e escutando as ondas chegando mansamente à praia num dia ensolarado, as aves marinhas que eu veria, quem sabe; e quando vieram os momentos de sons mais graves, fortes, cheios de oitavas, eu me imaginei vendo ondas arrebentando implacáveis, indo e voltando furiosas de encontro às pedras. Talvez já não houvesse mais sol; Eu lá, só olhando, nem aí... E quando o movimento retornou novamente ao tema, calmo, cristalino, líquido, me imaginei descalça andando na areia molhada ao longo da praia, sentindo o mar ir e vir sobre os meus pés, enquanto ainda observava. Depois desse dia, sempre que voltava a ouvir esse movimento, essas imagens me vinham à mente; e os anos continuaram passando.<br />
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Hoje já tenho outras ideias, a obstinação por imagens visuais não me persegue mais e há muito eu não ouvia esse movimento do concerto 2 de Chopin. Até que há quase uma semana o ouvi de novo. Só nesse dia descobri que era Chopin o seu compositor, o mesmo do meu noturno preferido. Quanto mais eu ouvia, mais a música se humanizava, vertida pelos dedos Hágeis da pianista. Sentada no teatro ouvi tocar novamente os primeiros acordes e uma sensação estranha me assaltou: uma mistura das lembranças da praia da infância e das imagens visuais que minha mente havia criado ao ouvir esse movimento pela primeira vez. Eu estava ali, sentada, sabia que a pianista tocava também ali com a orquestra e o regente, mas minha mente vagava pela infância de brincadeiras e pelo início da juventude, revivendo o impacto que, eu imaginava, aquelas imagens marinhas teriam quando eu as contemplasse com os olhos pela primeira vez. E eis que, de repente, percebi que as lembranças das brincadeiras com meu avô nas praias e as imagens que eu posteriormente criara se me escapavam, literalmente, pelos olhos inundados, numa fuga impossível de conter... Deixei que a música me invadisse por completo e permiti, ainda, que aquele pranto envergonhado da presença de plateia, mas também aliviado e silencioso cumprisse seu papel: reviver a infância e ao mesmo tempo fazer sepultar as imagens que nunca vieram e também agora já não são mais esperadas.<br />
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Para completar a noite, depois estive com a pianista, Sônia Goullart, por sinal talentosíssima, e vi que suas mãos eram, para mim, espantosamente pequenas. Reouvi mentalmente O segundo movimento do concerto e uma vez mais ele se humanizava, porque agora eu sabia como eram as mãos que em parte o haviam brilhantemente executado ali, diante de mim.<br />
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Saí do concerto de alma e cara lavadas, porque naquele momento eu soube que agora estou apaziguada com relação às imagens visuais, embora de vez em quando ainda alguma tristeza pela privação total de todas elas me visite; que não vou ver o mar em um dia ensolarado, mas que isso, afinal de contas, não é tão necessário. Tenho uma amiga, Elisa, que estava comigo nesse dia e sempre diz que a arte cura; e hoje sei, por experiência própria, que ela tem razão: a arte, realmente, cura!<br />
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-28914933977607305032016-08-17T14:12:00.001-03:002016-08-17T15:09:16.897-03:00Saudades De Elke<p dir="ltr">Certa vez, em uma aula de conversação de inglês há alguns anos, um professor pediu que escolhêssemos dois artistas brasileiros que queríamos conhecer e explicássemos o porquê. Escolhi Villa-Lobos e Elke Maravilha. Para o primeiro nome, indiferença total; parecia que aquele punhado de adolescentes e engenheiros nem sequer o conhecia. Para o segundo, incompreensão e risos; era como se eu houvesse dito uma bizarrice sem tamanho. Expliquei malmente os meus porquês, sem me esforçar muito, pensando que seria melhor nunca dizer-lhes que me sinto aprendendo a ser perspicaz quando leio Machado de Assis, ou que sinto prazer e vontade de dançar tango quando ouço Gardel cantar.</p>
<p dir="ltr">Sempre admirei aquela refugiada de guerra russa que chegou pequena com os pais ao meu país e aqui cresceu e se fez grande: uma artista completa, para mim igualável a Marília Pera e Ney Matogrosso, que cantava, atuava, dirigia... Uma mulher que pensava e trabalhava por um mundo muito à frente de seu tempo, que não se deixava tocar por tantos preconceitos ignominiosos que assolam a gente dos nossos dias... Uma pessoa culta, que exemplificava as coisas mais cotidianas amparada pelos grandes pensadores da humanidade e falava fluentemente mais de meia-dúzia de idiomas... Uma comunicadora de riso fácil e modos extravagantes, sim, em se tratando da persona que Elke vestia quando estava na televisão, mas de uma humildade e compaixão raras nos dias de hoje, e que quando ficava séria para falar do que necessitava seriedade, punha a calma na voz e, por consequência, a depositava também no olhar, porque aquele que é capaz de pôr a calma na voz sempre a irradia pelos olhos. Engraçado: excetuando-se meus familiares passados, atuais e vindouros, alguns grandes amigos e certos lugares onde estive, uma pessoa como Elke me inspira vontade de ver com os olhos.</p>
<p dir="ltr">Desde o constrangimento da aula de inglês, nunca comentei com ninguém, mas mantive o desejo secreto de poder conhecer Elke pessoalmente um dia, contudo, esse dia não chegaria. Foi com tristeza que recebi ontem (16/08) a notícia de sua passagem, porque uma pessoa como Elke não morre jamais: apenas passa momentaneamente para o outro lado. Infelizmente não a conheci, nem nunca tive a ideia de dizer-lhe o quanto a admirava pelas redes sociais, e agora ficou tarde.</p>
<p dir="ltr">Uma vez vi uma entrevista sua, em que lhe pediam uma frase preferida; Elke recordou uma frase do dramaturgo grego Sófocles: "O amor é invencível nas batalhas". De fato, alguém que acredita atualmente neste como seu lema de vida merece o meu respeito. Sei que, quando perceberem que a personagem desta crônica é Elke, muitos não a lerão, mas isso não importa. Um respeitável santo católico um dia também já pregou para os peixes, por isso posso fazer o mesmo em minha existência terrena e profana.</p>
<p dir="ltr">Dentre as várias acepções desta palavra tão rigorosamente lusófona que é saudade, li um dia que também se pode ter saudade daquilo ou daquele que não se conheceu. Refletindo sobre tudo o que acabo de escrever, concluo que aquilo que neste momento sinto são saudades de Elke. Que descanse, caso esteja se sentindo cansada. Que receba no céu, caso tenha ido para lá, caso o céu exista, a paz que sempre emanou para mim na terra. Até um dia, criança!...<br>
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Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-81603774569605319252016-02-21T16:20:00.006-03:002016-02-21T16:20:42.351-03:00Algumas Palavras Àquele que Dedicou Sua Vida Às Palavras“-Ai flores, ai flores do verde pino,/se sabedes novas do meu amigo!/Ai Deus, e u é”? (D. Dinis).<br />
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Eu ainda não tinha feito quinze anos e já começava, em 1997, mais um ano letivo no Colégio São José, o primeiro do Ensino Médio. Na véspera do início das aulas minha avó foi à reunião com o coordenador da classe, o professor Marcos, de português. Ele deu várias orientações sobre como a escola seria, o que podíamos, o que não deveríamos etc. e depois disse aos pais que, naquele ano, leríamos oito grandes clássicos da literatura luso-brasileira para a matéria dele; passou a lista. Eu já havia decidido cursar Letras na faculdade, mas ainda assim fiquei ressabiada com a novidade: será que eu daria conta?<br />
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A resposta foi “sim”. O tempo foi passando, o professor era, ou ao menos parecia enérgico, mas fui dando conta da literatura e da gramática. Até que chegou o dia da primeira prova. Ele a aplicou em separado para mim e para os demais, visto que, como eu não enxergava, quis que minha primeira prova fosse oral, na certa para medir o quanto eu sabia; e eu sabia bastante, mas o nervosismo das perguntas a serem respondidas no ato me deixou com 8,25. No entanto, foi bom, porque vencida essa resistência, Marcos conseguiu ver em mim a aluna promissora que eu tinha potencial para ser em suas matérias. Minhas notas não eram tão altas quanto eu gostaria – ele era minuciosíssimo nas correções – mas eram sempre boas.<br />
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Os meses foram se passando e ele havia se tornado um dos meus professores mais chegados, das minhas duas matérias preferidas. Meu aniversário de quinze anos caiu em um dia de aula sua. Vanessa, uma de minhas amigas já naquele tempo, foi pedir-lhe que cantassem os parabéns naquele momento, em que ele estava presente; tive uma grata surpresa, um momento de felicidade suprema. Era como se, enquanto a menina dava lugar à mulher que começava a surgir, a literatura fosse me adubando...<br />
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Às vezes, enquanto ele viajava pela literatura sem nada nas mãos, em largas passadas pela sala, como era de seu costume, sorriso largo estampado no rosto, e percebia que parecia não haver ninguém prestando atenção ao que dizia, vinha-se achegando e logo eu sentia aproximar-se o perfume que ele então usava. Naquela fileira havia quatro pares de ouvidos sempre atentos: os da Vanessa, os da Taís, os da Karina e os meus, e ele sabia disso: sentava-se na pontinha da minha mesa, virava-se de perfil para nós e continuava excursionando pela literatura, e nós o acompanhávamos. Eu já deixava, a cada aula sua, aquele lugarzinho guardado para quando ele quisesse se achegar... <br />
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Gostava de ser chamado de mestre e bem merecia sê-lo. Me recordo agora quantas e quantas vezes, eu tão menina, me chamou de “minha cara discípula”, com aquela sua formalidade tão característica! Hoje, mais do que antes, dimensiono a honra que era para mim receber dele esse epíteto. Pensando agora me vem à cabeça a singeleza com que declamava as cantigas medievais de amigo; a melancolia apaixonada com que recitava as cantigas de amor; a maneira como os personagens dos autos de Gil Vicente adquiriam vida com suas palavras; a sanha lutadora que punha nos versos dos Lusíadas de Camões; a jocosidade mordaz que emprestava aos versos de Bocage; a sacralidade sublime com que dizia os sonetos de Gregório de Matos, mesmo sendo ateu; o lirismo idílico que os versos árcades tinham nos seus lábios. A literatura se apoderava dele, ele era um templo das palavras que se tornaram arte ao longo dos séculos.<br />
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As aulas cessaram naquele ano mesmo, mas sempre mantivemos o contato. Ao fim do Ensino Médio a despedida foi difícil. Eu sentia, enquanto o estreitava timidamente naquele último dia, naqueles tempos em que a Internet ainda não havia, que perdia o mestre e o amigo. Mas não foi assim. Primeiro o telefone impediu isso, depois o e-mail e por fim o facebook. Ainda que virtualmente eu tinha aquela presença de volta, mais a do amigo agora do que a do mestre. Passaram-se os anos e a amizade se estreitava mais. Fiz Letras e ele ficou contente; fiz o Mestrado e ele estava lá na minha banca de defesa. Recusou-se a falar; disse que a emoção era tão violenta que não lhe permitiria expressar-se com palavras. Posteriormente me escreveu que eu era uma das alunas que mais lhe dava orgulho, porque academicamente o havia superado, havia chegado ao Mestrado, que ele não tinha feito. Porém, jamais senti que o superava; para mim ele era e continuaria, continuará sendo sempre o meu mestre, meu caro e querido mestre.<br />
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Quis o destino que eu não estivesse em Limeira quando recebi a mais temível das notícias: disseram-me que ele havia partido voluntariamente para uma das barcas de Gil Vicente. Fora por vontade própria para o lado de Dante, de Virgílio, de Camões...<br />
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Jamais esperei viver para escrever esta crônica do adeus a um dos meus mais profundos iniciadores naquela que se tornaria a vocação de minha vida: as letras; esta crônica que ele nunca poderá ler. E como gostava de ler as minhas crônicas!... Dizia que eu escrevia de forma lírica. É com o coração sinceramente dilacerado que faço essas profundas rememorações. <br />
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Marcos, meu caro mestre, meu querido amigo: que você finalmente tenha encontrado a paz que procurava; que cessem por completo os seus tormentos; que você tenha, muito mais do que o descanso do corpo, o refrigério da alma! E não se esqueça de que o que combinamos continua de pé: um dia nos vemos, felizes, na Barca da Glória! <br />
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“Ó Capitão! meu Capitão! Finda é a temível jornada,/Vencida cada tormenta, a busca foi laureada./O porto é ali, os sinos ouvi, exulta o povo inteiro,/Com o olhar na quilha estanque do vaso ousado e austero./Mas ó coração, coração!/O sangue mancha o navio,/No convés, meu Capitão/Vai caído, morto e frio.//Ó Capitão! meu Capitão! Ergue-te ao dobre dos sinos;/Por ti se agita o pendão e os clarins tocam teus hinos./Por ti buquês, guirlandas... Multidões as praias lotam,/Teu nome é o que elas clamam; para ti os olhos voltam,/Capitão, querido pai,/Dormes no braço macio.../É meu sonho que ao convés/Vais caído, morto e frio.//Ah! meu Capitão não fala, foi do lábio o sopro expulso,/Meu calor meu pai não sente, já não tem vontade ou pulso./Da nau ancorada e ilesa, a jornada é concluída./E lá vem ela em triunfo da viagem antes temida./Povo, exulta! Sino, dobra!/Mas meu passo é tão sombrio.../No convés meu Capitão/Vai caído, morto e frio”. (Walt Whitman).<br />
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-40061290785314422782015-09-13T19:36:00.003-03:002015-09-13T19:36:49.439-03:00O Submundo Da Torre EifelDiante de toda a desumana indignidade com a qual venho percebendo que estão sendo tratados os refugiados, predominantemente sírios, em sua busca desesperada por uma vida melhor no Velho Continente – que, com poucas ressalvas, parece querer ignorar sumariamente as dívidas históricas que um dia contraiu sem perguntar com quem -, republico hoje (13/09/15) esta crônica que escrevi faz alguns anos, quando pela primeira vez tive contato, ainda que superficial, com o drama dos refugiados que buscam a Europa. Reflitamos um pouco mais.<br />
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Nas últimas semanas, enlevada ainda por tudo de lindo que vi durante o tempo em que estive na Europa até mais ou menos quinze dias atrás, tenho escrito crônicas contando episódios que, literalmente, me maravilharam.<br />
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Porém, contrariamente àquilo que muitas vezes se imagina, vi, no Velho Continente, tão velho quanto a América que nós mesmos desconhecemos, muitos problemas que, a julgar pela imagem que se tem dos países mais abastados, seriam, erroneamente, problemas exclusivos dos países a que se denomina “em desenvolvimento”.<br />
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Quando eu ainda cursava o Ensino Médio, há nem tantos anos assim, a União Européia começava a dar fortes mostras de consolidação, que se expandiram com o passar do tempo. O que ouvíamos e líamos então era que, depois de um período de adaptação difícil dos países mais pobres do bloco às novas condições de integração econômica e social, haveria um equilíbrio bastante satisfatório. Porém, não foi isso o que constatei, passado mais ou menos um decênio, na maioria dos países que visitei: Portugal, a Espanha, a França e a Itália me puseram problemas bem brasileiros diante dos olhos – dois países mais pobres e dois mais abastados: mendicância, desemprego, venda de mercadorias piratas, salários-mínimos insuficientes, acampamentos miseráveis onde imigrantes ciganos levam vidas muito similares aquelas que costumamos ver retratadas nas nossas praças, viadutos e jornais. A diferença é que o uso de armas, brancas ou de fogo, ainda não acompanha as ações e reações desses deserdados do desenvolvimento; seu trunfo é a hagilidade coletiva, principalmente das crianças menores de idade, que, como aqui, serão presas por pouco tempo e logo estarão novamente nas ruas praticando o delito – único trabalho que conhecem. Não estou sendo sentimental, ao contrário do que se possa pensar. Segundo os nossos guias, elas chamam mesmo isso de trabalho, assim como os ciganos em geral, e este é sim o único “trabalho” que lhes cabe, e que nós, turistas e guias turísticos, tentamos evitar que ocorra a todo custo, afinal de contas, ninguém em sã consciência vai deixar-se roubar, não é? <br />
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Espanhóis e portugueses me atestaram com igual lamento as desastrosas conseqüências da adoção do Euro nessas realidades econômicas. Lá, como aqui, todos esses fragmentos cotidianos e depoimentos penalizam. Mas o episódio que me leva a escrever esta crônica foi um episódio que vivi na opulência iluminada da Torre Eifel. <br />
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O que mais chamava a atenção dos turistas que podiam olhar era como aquela construção é majestosa, grandiosa, como grandicíssima parte dos monumentos na França. O jogo de luzes que à noite torna a torre dourada, camuflando sua verdadeira coloração marrom diurna, parecia hipnotizà-los. Mas para mim, que via de outra maneira e achava tudo aquilo muito monótono, o que atraiu minha atenção foi a realidade circundante: imigrantes africanos, bastante altos, numerosos e extremamente simpáticos nos cercavam, apresentando mercadorias ilegais, que gerariam multas altíssimas, para eles e para nós, se a polícia aparecesse. Já havíamos sido alertados da presença deles e das potenciais conseqüências dessas compras se houvesse flagrante, mas chegar e estar de repente no meio deles nos faz sentir na 25 de Março. Os franceses, de modo geral, comunicam-se apenas em francês, falando inglês bem poucas vezes e nem sempre com fisionomias receptivas, ao menos pelo que presenciei; aqueles imigrantes, pelo contrário, falavam uma espécie de espanhol misturada com português, arranhada com os “erres” pronunciadíssimos do francês. Conheciam Pelé, o presidente Lula, sorriam e queriam nos fazer sentir em casa. E falariam outras línguas, se outros fossem os turistas a chegar para ver a torre e os outros monumentos. A presença deles era recorrente. Precisavam desesperadamente vender, mas nos tratavam com tanta hospitalidade para issso... Quem sabe, a hospitalidade que eles mesmos não receberam do país que os colonizou. Vejam-se as expulsões de ciganos da Romênia e Bulgária, acampados em território francês, que temos acompanhado há mais de um mês, e cujos acampamentos eu mesma vi à entrada de Paris, isso para não mencionar a proibição de símbolos religiosos em lugares públicos.<br />
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Não escrevo como quem se acha dona da verdade, só relato o que vi. Mas a única imagem que temos aqui antes de chegar a Paris é a de cidade-luz. E aqueles que regressam nunca falam sobre a França que se esconde nos porões da própria França; nunca contam sobre a Europa que se esconde nos porões da própria Europa.<br />
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Ter podido estar naqueles países foi a realização de um sonho acalentado há muito tempo. Para quem respira literatura, como eu, é indescritível poder estar no lugar a que se convencionou chamar de “o berço da Civilização Ocidental”. Mas hoje, gostaria de dividir com vocês esse outro lado. Não estou querendo dizer que não se deva ir a Europa. Eu mesma, se pudesse, voltaria, ainda há tantas coisas que não pude ver... Só gostaria de convidá-los a visitar a Europa, ou observar a Europa, lembrando que esta moeda também tem dois lados. Enfim, só queria dizer que viajar pela Europa e por dentro doBrasil são igualmente passíveis de revelar sublimidades que jamais imaginamos e indignidades das quais nem desconfiamos. Ou seja, em nenhum dos dois lados há unanimidades absolutas. Baudelaire costumava dizer que o homem contemporâneo precisaria aprender a “abrir alas à beleza da feiúra”. Depois dessa viagem, terminei de constatar que ainda precisamos ir um pouco além e abrir alas também à feiúra da beleza.<br />
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Limeira, quarta-feira, 29 de setembro de 2010.<br />
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[Texto publicado originalmente no blog jornalistas.blog.br, em 01/10/2010].<br />
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-29376911379178411172015-09-03T22:22:00.001-03:002015-09-04T11:45:38.087-03:00Através Das Janelas Do Mundo<!--[if gte mso 9]><xml>
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Desde criança sempre tive, por natureza, um carinho todo especial pelos estrangeiros. Logo que os ouvia falar línguas distintas da minha, eu já tinha a atenção atraída para eles, fossem de onde fossem, fosse qual fosse o idioma que falassem. Ouvi-los contar os costumes de seus países, suas recordações, suas experiências de vida sempre foi para mim motivo de júbilo atento; sempre foi para mim oportunidade escancarada de aprender alguma coisa nova. Toda vez que ouço um estrangeiro falar é como se, de par em par, devagarinho, ele me fosse abrindo uma janela do mundo...</div>
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Comecei a me dar conta desse fascínio quando, com uns dez anos, estudava em uma escola que recebeu três crianças que viviam em um circo que tinha chegado à nossa cidade; três brasileirinhos, mas que sabiam falar espanhol. Tinham dificuldades em várias disciplinas, acho que em grande medida devidas ao fato de passarem uma semana, dez dias em uma escola e logo já precisarem levantar acampamento e partir de novo. Mas falavam espanhol, principalmente o menino: baixinho, franzino, dono de uma vozinha aguda com sotaque de paulistano da Mooca, mas falava espanhol... Me recordo que a professora nos deixou fazer-lhes perguntas, todas as que quiséssemos e que eles quisessem responder, e eu só queria saber em que momento o Luís Antônio falaria alguma coisa em espanhol; esse era o nome dele. E acabou falando mesmo. </div>
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Depois disso eu tive amigos estrangeiros, professores estrangeiros, inclusive alguns desses mestres se tornaram grandes amigos. O marido da professora brasileira de italiano contava, alegre, como era a infância fria mas saudosa em Trento; meu professor bavarês de alemão contava, aterrado, do medo imenso que tinha do papai-noel; o professor chileno de espanhol descrevia, pensativo, as paisagens dos Andes; o professor britânico de inglês relatava, satisfeito, a rigidez benéfica das escolas de sua infância; a professora irlandesa de inglês dizia, irritada, como detestava as aulas de sapateado irlandês que a mãe a obrigava a fazer; a professora uruguaia de espanhol ainda hoje me fala, com ternura, das brincadeiras na escola e no casarão antigo da avó. Isso para ficar apenas no tema infância.</div>
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Além do mais, acho que viajar é o maior e melhor investimento que uma pessoa pode fazer em toda sua vida. Ficar impregnado do chão, dos ruídos, dos cheiros, das vozes, da aura de outros lugares do mundo que não o país onde a gente nasceu é uma dádiva que não tem preço e que não nos pode ser tirada jamais.</div>
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Tudo isso para encontrar um meio de dizer que hoje estou dilacerada. Dilacerada pela impotência. Dilacerada pela imagem do mmenino sírio de três anos morto afogado, com o rosto sufocado sobre a areia de uma praia na Turquia, que correu mundo nessses últimos dois dias. Dilacerada por pensar nesse pai que, torturado em Kobane pelo Isis, que não é estado e jamais soube o que é ser islâmico, tentou fugir com a família para o Canadá, para ficar junto do irmão, e teve o pedido de asilo negado; esse pai que pagou por duas vezes quantias absurdas para fazer com os atravessadores desumanos e inescrupulosos que traficam pessoas essa infausta rota do Mediterrâneo e foi boicotado; esse pai que conseguiu viajar com a mulher e dois filhos pequenos, finalmente, mas que viu sua vida despedaçada quando o atravessador pulou do barco na Turquia e os abandonou à própria sorte, ou antes, à própria falta de sorte. O barco virou; a mulher e os filhos lhe escaparam por entre os dedos a pouco mais de quarenta quilômetros da fronteira com a Grécia; apenas ele sobreviveu. Sobreviveu ao Isis para ter a família fria e grosseiramente abalroada por esses verdadeiros cemitérios submarinos que estão se tornando o Mediterrâneo, o Egeu, apenas duas das tantas rotas pelas quais esses imigrantes tentam desesperadamente escapulir à procura de um pouco de paz... Sírios, afegãos, etíopes, eritreus, haitianos, bolivianos e tantos outros para os quais o mundo parece não se importar em fechar os olhos. Agora o Canadá oferece a este pai abrigo; agora que seu único desejo é voltar à torturada e torturante Síria, para enterrar a própria família. E essa é apenas uma das grandes tragédias humanas do nosso tempo que chegam ao nosso conhecimento. </div>
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Pode parecer exagero, mas escrevo para não explodir, para não sufocar em aflição. O que estamos fazendo? Sim, estamos, os que estão perto e os que estão longe desse êxodo forçado, porque calar e omitir-se também é compactuar, também é ser cúmplice. Estamos multando, pondo grades nas janelas de trens, proibindo-os de circular, fazendo devoluções como se de mercadoria indesejada se tratasse, expremendo gente sobre gente em caminhões, vans, porões de barcos, até à literal asfixia; estamos construindo muros e cercas, estamos nos escondendo atrás da desculpa do “roubo” dos empregos... Ah, também tem aquela da ameaça islâmica à tradição cristã... Ora, façam-me o favor! Será que é tão difícil lembrar que somos todos humanos, de carne, osso e sangue? Que todos sentimos, que todos desejamos, que todos buscamos, que cada um de nós recebeu, do Deus em que acredita, se é que acredita, o privilégio de existir?</div>
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Pelo amor de Deus! Se cada estrangeiro é uma janela do mundo que se abre, o que estamos fazendo? Estilhaçando a pedradas inclementes uma por uma dessas janelas todas? Quando encontrei os primeiros refugiados africanos de que tive conhecimento, certa vez, em uma excursão, quando os vi vendendo lembranças na informalidade e correndo com as mercadorias às costas e a polícia em seus calcanhares, não pude e nem soube supor que eram apenas o começo dessa onda insana de indignidade que assola o mundo. Tantas coisas eu espreitei por aquelas janelinhas do mundo que eram esses negros altos, com jeitão todos de maratonistas quenianos, que muitas vezes me trataram melhor do que os moradores “originais” que conheci em alguns lugares... Espreitei tantas coisas, pensei que tinha visto tanto e vi em realidade tão pouco.</div>
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Já faz tempo que essa indiferença com a vida vem me incomodando, dia a dia, na tv, redes sociais etc., mas hoje esse incômodo beira as raias do desespero. Há pouco vi uma jornalista conclamando que cada um, onde estivesse, dentro de sua profissão, fizesse o que pudesse para pressionar o mundo por atitudes mais humanas e mais efetivas. Minha profissão são as palavras; minha vida são as palavras! Brasileiras e estrangeiras; todas as palavras. Então, humildemente, escrevo.</div>
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Escrevo e aproveito para agradecer: seu Lívio (in memoriam), Alejandro, Jose, Manuel, Paco, Pedro, Mario, Lucas, Luis, aos Antonios, Jesús, às Carmens que já conheci, Fernando, Liliana, Paloma, Monika, Axel, Steve, Emma, Veit, Elisa, Alicia, Reyes, Helena, Alexandra, Cristina, Raul, Beatriz, Sara, Ruben, Susana, Ana, Javier, Enrico... A todos vocês e a todos os estrangeiros, nomeados ou não aqui, que me abriram e abrirão um dia as janelas do mundo, porque jamais me cansarei de espreitar entre elas, obrigada por tudo, obrigada por tanto! Obrigada por me terem ensinado, acima de tudo, a ser mais gente!... Jamais os esquecerei por isso.</div>
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-80161350192526041362015-06-11T17:13:00.002-03:002015-06-11T17:13:25.894-03:00Dica De Leitura: O Romance De Tristão E Isolda“Senhores, os bons trovadores de antanho, Béroul e Thomas, e monsenhor Eilhart e mestre Gottfried, narram este conto para todos os que amam, não<br />
para os outros. Transmitem-vos por meu intermédio sua saudação. Cumprimentam os que são sonhadores e os que são felizes, os descontentes e os apaixonados,<br />
os que estão alegres e os que estão perturbados, todos os amantes. Que possam encontrar aqui consolo contra a inconstância, contra a injustiça, contra<br />
o despeito, contra a aflição, contra todos os males de amor”! (J. Bédier).<br />
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Contada e recontada muitas vezes, a lenda medieval do romance entre sir Tristão de Loonois e Isolda, a Loura, princesa irlandesa que viria a ser a rainha das Cornualhas – onde se passa a história -, tem seus primeiros registros poéticos escritos datados no século X, por vários trovadores anglo-franceses, sendo efetivamente desconhecida sua real autoria. Nessa época as línguas vernáculas europeias estavam em formação, vigorando os chamados romances, e as fronteiras entre os países ainda não estavam bem definidas, sendo muito comuns as guerras ensejadas por disputas territoriais entre os então vários reinados existentes.<br />
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A versão ora em questão foi composta pelo escritor, filólogo e estudioso da literatura francesa medieval Joseph Bédier (1864-1938), editada no Brasil pela Martins Fontes. A atmosfera medieval é mantida e mostrada de maneira relevante, a cada momento revelando os matizes das cantigas de amigo, que primeiro devem tê-la registrado, os cavaleiros com suas lorigas, elmos, lanças, espadas, clavas e flechas e as damas com seus vestidos finos e ricamente bordados e adornados de pedrarias são presença constante. Os servos, mensageiros e traidores fazem, também, por sua vez, a história desenrolar-se.<br />
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Ainda jovem, o cavaleiro Tristão é raptado por mercadores irlandeses e deixado nas praias das Cornualhas, terras do rei Marc, seu tio; no entanto, por bastante tempo, ambos desconhecem esse parentesco, embora se queiram com ternura infinita desde o primeiro momento em que se encontram. Certo dia chega o gigante Morholt, da Irlanda, para cobrar impostos ao rei Marc. Esse pagamento consistia em que lhe fossem entregues jovens do reino, a não ser que alguém o vencesse em combate. Todos os barões de Marc regeitam o combate, a não ser Tristão, que derrota o gigante, mas fica mortalmente ferido e pede ao tio que o deixe morrer ao mar, em uma nau sem velas, acompanhado apenas por sua harpa, segundo o costume antigo que se pode já depreender da leitura do épico anônimo Bewolf. Milagrosamente, o mar o conduz às terras irlandesas. Detentoras dos antigos conhecimentos celtas sobre magia e poções, perfeitamente familiares àqueles que sejam leitores vorazes das proezas ocorridas no universo mágico e místico de Avalon, Isolda, a loura, e a rainha, sua mãe, curam Tristão dos ferimentos e ele volta para o tio sem ser reconhecido como o assassino do Morholt.<br />
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O rei Marc deseja deixar todo seu reinado ao sobrinho. No entanto, quatro barões traidores, que se encarregarão de tecer intrigas durante o transcurso de todo o enredo, o induzem a casar-se. Marc, então, os informa de que se casará apenas com a dona do fio de cabelo de ouro que os pássaros lhe trouxeram. Lembrando-se de Isolda, a loura, Tristão, arriscando-se a ser reconhecido e morto, regressa à Irlanda para buscá-la, a fim de que se case com o rei. Porém, o destino os atraiçoa. A mãe de Isolda entrega a sua serva e companheira, Brangien, a fiel, um filtro que deve ser servido apenas a Isolda e ao rei Marc, na noite de núpcias, para que o bebam juntos, pois os que dele se servirem haverão de amar-se com todos os sentidos e pensamentos, na vida e na morte. Por engano, Isolda e Tristão o bebem juntos para aplacar o calor e, a partir desse momento, passam a amar-se com todos os seus sentidos e pensamentos e se entregam um ao outro desesperadamente, até o fim da viagem. <br />
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Chegados às Cornualhas, Isolda casa-se com o rei Marc, tornando-se a rainha de seu país, mas os amantes não podem deixar-se, até que são flagrados por ele que, amando Isolda verdadeiramente e ferido pela deslealdade das duas pessoas a quem mais queria no mundo, decide matá-los sem julgamento, na fogueira, embora Tristão jure jamais ter amado Isolda com amor culpável e vice-versa. Tristão consegue fugir e é salvo por Deus. Tomado pela cólera, Marc considera que a morte rápida é pouco para punir Isolda e decide entregá-la a seus leprosos, para que seja de todos eles. Ao ver a turba que a conduz, Tristão consegue matar seu captor, reaver a rainha e fugir com ela para a floresta densa, onde se escondem e se amam por muito tempo... Um amor, uma cabana... <br />
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Descobertos pelo rei, seu precioso sobrinho e a amada de seu coração são perdoados. Tristão entrega-lhe Isolda e parte, levando seu anel de jaspe verde e deixando-lhe seu leal cão, Husdent.<br />
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Forçada pelos barões, Isolda deve fazer o juramento do ferro em brasa e manda mensagem a Tristão para que venha em seu socorro vestido de peregrino. Chegados à charneca branca onde o juramento aconteceria, Isolda ordena que o peregrino miserável à margem do rio venha buscá-la e a tome nos braços, para chegar ao outro lado sem enlamear-se. Tristão a obedece. Então, diante dos reis Marc e Arthur, Isolda jura que nenhum homem jamais a teve nos braços, a não ser seu marido, Marc, e o peregrino miserável estendido na areia diante de todos os presentes. Proferindo esse juramento, toma o ferro em brasa e permanece com as mãos ilesas depois de soltá-lo. Os barões se convencem de sua inocência e Tristão parte para a Bretanha. <br />
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Lá chegando, vence uma guerra que já durava anos e recebe como recompensa a mão da filha do rei, Isolda, das brancas mãos. Julgando-se esquecido por Isolda, a loura, aceita o casamento, mas é incapaz de consumá-lo, uma vez que não consegue deixar de pensar na amada. Torturado, volta às Cornualhas e, encoberto por variados estratagemas, consegue rever Isolda, a loura, e amá-la pela última vez. Regressando à Bretanha, é ferido mortalmente em combate. Ao saber disso, Isolda, a loura, foge pelos mares para revê-lo e curá-lo. Contudo, consumida pela vingança, Isolda, das brancas mãos, diz a Tristão que a nau que retorna tem uma vela negra enfunada. Esse era o sinal combinado caso Isolda, a loura, não concordasse em vir vê-lo. Fulminado pelo desgosto, Tristão expira. Ao chegar e vê-lo morto, Isolda, a loura, cola-se a ele, e morre também, enquanto Isolda, das brancas mãos, se consome em agonia pelo mal que causara. Ao saber da desventura dos amantes, o rei Marc vai buscar seus corpos e os enterra separados por uma capela. No entanto, à noite, cresce do túmulo de Tristão um espinheiro verde que sobe pela igrejinha até descansar no túmulo de Isolda, a loura. Por três vezes é cortado e por três vezes renasce, cresce e volta para o regaço da rainha. Ao ter conhecimento disso, o rei Marc ordena que os amantes sejam deixados em paz.<br />
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O romance de Tristão e Isolda foi a fonte em que beberam vários autores e contadores de outras histórias de amor e morte, como Romeu e Julieta, de Shakespeare e a história real de Pedro, rei de Portugal e de Inês de Castro, coroada sua rainha depois de morta, perpetuada nos Lusíadas, de Camões. Muito mais do que o amor e a morte, os grandes dons que nos oferece o romance de Tristão e Isolda são a perseverança e a fé.<br />
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-50248633127212533332015-06-11T17:03:00.005-03:002015-06-11T17:03:56.076-03:00Dica De Leitura: Fábulas Italianastraiçoeiro, algo perfeitamente compreensível, visto que, no tempo em que presumidamente se passaram as fábulas, a Europa se encontrava sob o domínio do Império Turco Otomano. Outro mister a que se prestam algumas dessas fábulas é a explicação pelo mito, como já faziam os antigos gregos.<br />
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Algo importante ainda a ser destacado são os componentes sagrado e profano, inerentes ao ser-italiano. Da mesma forma como estão presentes nessas fábulas elementos pagãos encontráveis de Norte a Sul da Europa, como fadas, bruxas, monstros, gigantes e ogros, o componente cristão também tem lugar na constituição da identidade italiana, de maneira simultânea, como já era de se esperar: na terra do Papa nasceram fábulas com personagens como Jesus, Maria, São João e São Pedro, tendo este último um lugar especial nas historietas: ora Pedro é irritadiço e gabola, ora dá demonstrações incontestes de fé.<br />
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A obra é recomendável principalmente aos leitores adultos que ainda sabem onde encontrar a criança que habita a cada um de nós.<br />
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-38859455188082947272015-03-12T18:51:00.001-03:002015-03-12T18:51:18.137-03:00Esmeralda“Caminos<br />
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De la ciudad moruna/tras las murallas viejas,/yo contemplo la tarde silenciosa/a solas con mi sombra y con mi pena./El río va corriendo/entre sombrías huertas/y grises olivares,/por los alegres campos de Baeza./Tienen la vides pámpanos dorados/sobre las rojas cepas./Guadalquivir, como un alfanje roto/y disperso,/reluce y espejea./Lejos, los montes duermen/envueltos en la niebla,/niebla de otoño, maternal; descansan las rudas moles de su ser de piedra/en ésta tibia tarde de Noviembre,/tarde piadosa, cárdena y violenta/El viento ha sacudido/los mustios olmos de la carretera,/levantando en rosados torbellinos/el polvo de la tierra./La luna está subiendo/amoratada, jadeante y llena./Los caminitos blancos/se cruzan y se alejan,/buscando los dispersos caseríos/del valle de la sierra./Caminos de los campos.../¡Ay, ya no puedo caminar con ella”! (Antonio Machado).<br />
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Desde bem pequena me lembro muito claramente de uma bonequinha trajada à espanhola, que meu avô havia trazido de viagem de algum lugar para minha mãe muitos anos antes e que sobrevivera até chegar às minhas mãos. Ela sempre me chamava a atenção: usava um vestido longo, de tecido grosso – mas não grosseiro -, pregueado, que era diferente dos vestidos de noiva, os únicos vestidos longos que eu conhecia então. Aquele era um vestido rodado e longo, com babados, mas cuja cor eu não saberia dizer, um detalhe para mim desimportante. A cabeça coberta pelo véu, brincos de pérolas nas orelhas, clássicos e ocidentais e, em contraste, uns olhos de cílios grandes que se moviam para cima e para baixo, conforme a boneca era manejada; provavelmente escuros. Só bem mais tarde descobri que aqueles olhos de cílios grandes eram os famosos olhos mouros, mouriscos ou árabes, de profunda perspicácia e mistério por trás dos tantos lenços e véus advindos do Oriente... E um rostinho delicado, perfeito, simétrico. Uma boneca em tudo distinta das tantas outras que eu tinha. Os sapatos, porém, se haviam perdido no tempo; já me lembro dela assim, descalça. Eu a tateava incansavelmente, mesmo sabendo que já conhecia cada detalhe. A cada dia de brincadeira aproveitava para revisitá-la um pouquinho; quem sabe não haveria ainda algo no traje da espanhola que eu não tinha notado antes... Quando perguntei o porquê de todo aquele estilo, digamos, exótico, minha bisavó respondeu simplesmente:<br />
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- É uma espanhola, fia!<br />
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Essa resposta não me aclarou nada, porém guardei-a. Foi o primeiro contato que me lembro de ter tido com a Espanha e os espanhóis. Aquela boneca, ostentando com arrojo e graça o vestido longo e rodado, as pérolas, os cílios grandes, o véu nos cabelos, tinha toda minha reverência; sempre pressenti um mundo diferente escondido por detrás dela. Eu a colocava em pé e as saias e babados tomavam o espaço diante de mim, majestosamente. Eu a movia e o vestido serpenteava no rastro dela. “Gosto disso”, eu pensava sonhadora... Curiosamente, nunca lhe dei um nome e não tenho notícia de que minha mãe tenha feito isso antes de mim.<br />
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O tempo passou e a espanholita ficou mais na memória do que no cotidiano, embora existisse ainda em algum armário. Mais ou menos aos treze anos eu já era uma leitora voraz. E foi assim, por meio dos livros, que a Espanha voltou à minha vida de maneira mais incisiva. Certo dia eu lia Ana Terra, um dos capítulos de O Tempo E O Vento, história em que o genial Érico Veríssimo conta a saga das famílias Terra e Cambará, dos séculos XVII ao XX e, com ela, como pano de fundo e determinante dos rumos das personagens, também a história do Brasil e principalmente da região que é hoje o nosso estado do Rio Grande do Sul. Entregue à fascinante vida da jovem, forte e bela Ana Terra, ambientada na região que futuramente seria o Rio Grande do Sul, mas no século XVII, de tantas disputas e guerras com os castelhanos, subitamente li o seguinte:<br />
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“ - Donde están los otros?<br />
Ana mal reconheceu a voz do irmão quando ele respondeu, meio engasgado:<br />
- Dentro de casa.<br />
- Que salgan! Bamos!<br />
- Vosmecê pode me dizer. . - começou Antônio.<br />
- Perro súcio!<br />
Ouviu-se um estampido lá fora. E em seguida Maneco disparou o mosquete. Pelo vão da porta o escravo atirou também. Ana rojou-se ao chão, de todo o comprimento, colou-se à terra, enquanto outros estrondos fendiam o ar e as balas esburacavam as paredes do rancho. De olhos fechados, Ana ouvia os gritos e os tiros, sentia cair-lhe poeira sobre o corpo, enterrava com desespero as unhas no chão. Santa Maria Mãe de Deus - pensava ela - rogai por nós pecadores... Da boca entreaberta saía-lhe com a respiração uma baba visguenta. De repente ela viu, mais com os ouvidos que com os olhos, que a parede da frente vinha abaixo. Um dos bandidos entrava no rancho a cavalo, distribuindo golpes de espada a torto e a direito. Ana sentiu tão perto o resfolegar do animal que escondeu a cabeça nas mãos e esperou agoniada que patas lhe esmagassem o crânio ou que espadas lhe varassem o corpo.<br />
A gritaria continuava. Mãos fortes agarraram Ana Terra no ar, e puseram-na de pé. A mulher abriu os olhos: cresceram para ela faces tostadas, barbudas, lavadas em suor.<br />
- Mira que guapa!<br />
Um dos homens apertou-lhe os seios. E depois Ana viu uma cara de beiços carnudos, com dentes grandes e amarelados - e esses beiços, que cheiravam a cachaça e sarro de cigarro, se colaram brutalmente aos seus num beijo que foi quase uma mordida. Ana cuspiu com nojo e os homens desataram a rir.<br />
Um suor gelado escorria-lhe pela testa, entrava-lhe nos olhos, fazendo-os arder e aumentando-lhe a confusão do que via: o pai e o irmão ensangüentados, caídos no chão, e aqueles bandidos que gritavam, entravam no rancho, quebravam móveis, arrastavam a arca, remexiam nas roupas, derrubavam a pontapés e golpes de facão as paredes que ainda estavam de pé. Mas não lhe deram tempo para olhar melhor. Começaram a sacudi-la e a perguntar:<br />
- Donde está la plata?<br />
La plata... la plata... la plata... Ana estava estonteada. Alguém lhe perguntava alguma coisa. Dois olhos sujos e riscados de sangue se aproximaram dos dela. Mãos lhe apertavam os braços. Donde está? Donde está? La plata, la plata... Ela sacudia a cabeça freneticamente, e a cabeça lhe doía, latejava, doía... La plata...” [...]<br />
<br />
Paro de reproduzir aqui o trecho que por muitos meses permaneceu em minha mente, mesmo que eu me tenha dedicado a outros livros depois. Certamente o leitor imagina o que aconteceu onde havia uma mulher sozinha e vários homens cheios de más intenções praticadas e declaradas, exatamente o que ocorre, seja na realidade, seja nos livros. Furto-me, assim, a reproduzir o fim do capítulo, que, como mulher, me aflige. A mim, contudo, uma adolescente caseira que tinha em ler uma de suas maiores e melhores diversões, a Espanha agora trazia medo; tornava-se difícil enxergar que existisse lá algum homem diferente dos castelhanos que violaram Ana Terra, destruíram sua família, sua casinha e dilapidaram seus poucos bens. Sempre tive facilidade para aprender e identificar sonoramente idiomas, tanto quanto música. Sempre concebi as línguas estrangeiras como músicas perfeitamente distintas umas das outras, pelo menos aos meus ouvidos. Assim, depois da leitura de Ana Terra, ao ouvir a mais mínima palavra em espanhol, um arrepio gelado e desagradável me percorria o corpo todo em uma fração de segundo, era uma musicalidade de que comecei a não gostar. <br />
<br />
Mas, graças a Deus, nem sempre as primeiras impressões, ou as até então mais marcantes são as que ficam. Um tempinho depois precisei ler o Dom Quixote, de Cervantes. Mesmo sabendo que o Quixote não era bonito, que já era mais velho e só fazia trapalhadas, embora sempre bem-intencionado, conforme eu lia, sentia vontade de ser a Dulcineia que ele jamais conseguira encontrar, de sair por aí galopando na garupa do cavaleiro da triste figura por toda a Espanha, ainda que o potente Rocinante não passasse de um magro e fraco pangaré.<br />
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Nessa época também eu já me virava bem no teclado. Meu avô-pai sempre teve uma relação estreita com os países de fala hispânica. Neto de espanhola e montando máquinas pela América Latina, falava espanhol fluentemente, guarani também, e acho que herdei dele o meu ouvido musical. Ele escolhia as músicas que queria que eu tocasse, muitas vezes de países que falam espanhol, e eu que me virasse pra tocar.<br />
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- Eu sei que você consegue, toca aí, vai! É tão bonito... - e assobiava a tal música que queria.<br />
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Escolhia músicas e mais músicas, sempre antigas. Ele cantarolava e eu tinha que executar. Verdade seja dita, eu sempre conseguia e ele ficava satisfeito, pensando, viajando, lembrando sabe Deus que tantas coisas... cantava, assobiava, estalava os dedos... Chegava mesmo a dar uns passinhos pela sala, fazendo tilintar o antigo relógio de metal no braço esquerdo e bater os chinelos...: Malagueña Salerosa, La Barca, El Reloj, Perfidia, Bésame Mucho, India, Adelita, La Chalana, tangos de Gardel - principalmente Por Una Cabeza e La Cumparsita... Dentre tantas outras que eu poderia enumerar. Eu ouvia também um cd de boleros que uma vez peguei em umas coisas do meu pai... Peguei e não devolvi mais; ele disse que não precisava. Hoje estou certa de que essa minha procura pelos sons, pelas harmonias, pelos ritmos para contentar meu avô ajudou definitivamente a desenvolver o ouvido musical que eu tinha. Tomei gosto pela coisa e comecei a tocar o que eu mesma achava bonito, caminhando em paralelo com os professores de música popular que tive ao longo da vida e ampliando sempre o repertório, inclusive o de música hispânica, já sem que ele pedisse. Tenho certeza de que isso me proporciona hoje poder dedicar-me às músicas clássicas que mais me agradam no piano, oferecendo-me uma maior segurança para me desenvolver naquilo que pedem as interpretações. A música e a musicalidade foram, portanto, o melhor e maior bem que meu avô me deixou e poderia ter deixado. <br />
<br />
Mas foi na universidade que percebi que o espanhol e a Espanha se entranhavam de vez em mim. Estudando literatura cheguei a Eurico, O Presbítero, de Alexandre Herculano. Lá descobri Toledo – um dos últimos redutos mouros na Península Ibérica -, os sarracenos e a influência que tiveram naquela que um dia seria a Espanha, por 700 anos. Era dessa suceção de eventos, então, que vinham aquelas letras “l” tão bem pronunciadas, rigorosamente nítidas do espanhol, assim como algunas otras cositas... Soube, então, que era isso o que eu gostava na Espanha, esse ponto de intercecção entre o Ocidente e o Oriente, esse meio do caminho geográfico e cultural, essa melancolia árabe e muçulmana, semita, que cresceu e se desenvolveu forte, lado a lado com o que a Espanha tem robustamente de ocidental e cristão. A partir dali eu sentia que não podia mais escapar a isso, que sempre alguma coisinha espanhola faria parte de mim.<br />
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No último ano da faculdade uma amiga, Mônica, fez uma viagem ao Peru e Bolívia, me trouxe dois cds de música andina e uma samponha, toda enfeitadinha, artesanal, linda... E, surpresa das surpresas, uns três anos depois comecei a estudar espanhol com um professor chileno, vizinho da minha mãe, Alejandro; ainda não sei como comecei, quando percebi já tinha ido, estava lá. Meu avô me levava a cada semana, todo satisfeito; estava escrito no rosto dele como ficava contente em me levar às aulas de espanhol. Venci minhas últimas resistências íntimas e comecei a ouvir minha própria voz em espanhol, com aquela cadência nova, a um só tempo terna e forte, saída de recantos que nem eu mesma conhecia, sensação diferente... E definitivamente agradável, música que começava a se tornar familiar aos meus ouvidos. Aquele foi um ano intenso. Gramática, ortografia, muito cuidado com a escrita, apuro na fala e Alejandro me pegou pelo ponto fraco, literatura: aprendi muito com A Ciganinha, de Cervantes, El Cid, O Zorro, e outros livros menos conhecidos, todos lidos em espanhol. E essa minha aproximação com o idioma durou um ano. Até que chegou um dia em que meu avô foi falar espanhol, guarani e cantar moda de viola no céu... Tive um bloqueio fortíssimo. Tinha, então, um piano, mas não conseguia mais tocar; sentava-me diante dele e parecia que mutuamente nos repelíamos; minha mão pairava a dois, três centímetros das teclas sem coragem de tocar nelas; só a angústia havia. Vendi o piano. Passei cinco anos sem fazer soar uma nota sequer, o espanhol me visitava às vezes; lia, de vez em quando, uma coisa ou outra. Mas a Espanha continuava presente. Eu soube disso quando toquei, uma vez, uma estátua de um touro, subjugado, com o toureiro sobre seu dorso... Fiquei pensando: “Se esse bicho suspeitasse a força que tem”... Permaneci ali um tempo, alisando o touro de bronze, e alguma coisa despertou dentro de mim. Na mesma época assisti, ao vivo, a uma apresentação de flamenco, com bailarinos e músicos espanhóis... Impressiona a sincronia das pontas e calcanhares dos sapatos dos casais de bailarinos no assoalho com a energia das palmas, o violão, as castanholas, os tambores e as vozes vibrantes e cheias de fôlego para as vogais longas e lamentosas, tão típicas da música cigana e árabe, mais ou menos como os chamados para as orações que ecoam nas mesquitas ao redor do mundo, e refletidas com graça melancólica naquilo que a música espanhola tem de ocidental... Aliás, essa transição musical da Espanha entre os tons maiores e menores na mesma canção, às vezes na mesma frase musical é fascinante! Quando as bailarinas tocam castanholas e dançam, a impressão que se tem é a de que as castanholas conversam, perguntam e respondem, retrucam e treplicam. Havia uma das bailarinas, pareceu-me ser a mais experiente do grupo, que sempre gritava palavras de incentivo às outras: “¡Vamos”! “¡Dale”! etc., com voz sonora, palavras claras, rosto sorridente durante as invocações. Tudo isso somado à melancolia intensa e, a sua forma, alegre, da música cigana e às bem definidas expressões faciais para cada momento. O entrosamento de músicos e dançarinos é indescritível. Sem contar que não é preciso ver com os olhos para entender; encantador! Basta agora ouvir o som de castanholas para que o meu rosto se transfigure.<br />
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E como Deus sempre nos envia anjos da guarda sobre a terra, certo dia, em um passeio com Evandro, um amigo professor de piano erudito, e Wânia, que também o piano me trouxe, sua aluna e que depois veio a tornar-se uma amiga muito querida, fui interpelada pelos dois insistentemente para voltar a tocar, que eu ficaria feliz, que meu avô, onde estivesse, gostaria de ouvir, que eu me sentiria mais leve, mais alegre....<br />
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- Volta – me dizia Wânia vezes sem conta com aquela expressão calma e serelepe tão sua – A gente toca junto... Seria tão legal...<br />
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- É isso, emendava Evandro com cara de negociante que sabe que a operação vai ser bem-sucedida – volta, Ser! (um apelido carinhoso). – A gente troca piano com inglês, eu vou na sua casa, vamos, vai amarelar? – disparou de uma feita, provocante.<br />
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Não, não amarelei, voltei, graças a Deus voltei. Pedi para tocar música espanhola e fui atendida prontamente:<br />
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- Agora que você voltou, escolhe, toca o estilo que quiser – Evandro Garantia com um sorriso triunfante de orelha a orelha.<br />
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Promessa feita, promessa atendida. No segundo mês de aula comecei uma malagueña do espanhol Isaac Albéniz, que depois soube que era para alunos do sexto ano, mas então eu já a estava quase terminando de ler, celando minha reaproximação com o piano e, de alguma forma, com o idioma castelhano... e agora já tenho um tango também dele... E Evandro me permitiu realizar um sonho antigo: tocar vestida, completamente, de espanhola; me apresentou até a costureira que transformaria tudo isso em camadas e camadas farfalhantes de preto e vermelho... Fui atrevida o suficiente para pedir e ele, sem pestanejar, novamente, me atendeu. Minha avó-mãe Adalgisa afirma categoricamente que esse foi o encontro de dois malucos. Isso sem contar os amigos novos que ganhei. Tantos presentes o espanhol me trouxe... Desde então os arabescos andaluzes vêm se desenhando dia a dia em minha existência, proliferam-se a Espanha e o espanhol em cada acontecimento, em cada coisa. Sinto que esse universo se torna cada vez mais parte de mim, me constitui como uma identidade, como uma marca de cuja força, não sei por que obscuro motivo, eu ainda não me havia dado conta. Adotei de vez em quando a mantilha, lenços, o batom vermelho... Tudo pela arte, para ir entrando no clima... Pela arte e por mim mesma.<br />
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E como a vida não para de dar voltas, ano passado voltei a estudar espanhol. Desta vez com uma professora uruguaia, Alicia, ou simplesmente Ali, alguém que conheci casualmente num dia já distante e que vim encontrando e reencontrando ao longo dos anos em distintos lugares, por essas artimanhas ocultas das antigas parcas gregas que tecem e retecem o destino, até que nos reencontramos definitiva e imutavelmente, como professora e aluna. Hoje, no entanto, quando penso no rol dos meus amigos mais próximos, o nome e a figura de Ali logo aparecem, outro presente que ganhei aceitando o espanhol de volta de uma vez por todas. Agora, com uma delicadeza até então insuspeitada na forte língua espanhola, tornei-me, por escolha dela, carinhosamente, Yarita, como até hoje permaneço e tenho gosto em ser; um apelido que “pegou”, nas aulas de espanhol e fora delas. Em vários outros lugares e círculos por onde transito eu já sou Yarita. Diferentemente de quando me defrontei com Ana Terra, agora tenho até um apelido genuinamente espanhol e ele me soa bem nos ouvidos. Hoje, de uma vez por todas, a musicalidade do espanhol me é agradável e ninguém mais, na ficção ou na realidade, pode arrancá-la desse patamar. Já penso cada vez menos para usá-la dia a dia.<br />
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Uma tarde conversávamos despreocupadamente no facebook (sempre em espanhol) sobre como era bom tocar música espanhola e falar espanhol e eu comentava com Ali que gostaria de encontrar um nome para essa presença espanhola que me habitava em forma de música desde que voltei a tocar piano, um nome que definisse espiritualmente como me sinto quando toco, que preenchesse um pouco essa vontade íntima que passei a ter de ser espanhola de uns anos para cá; uma espécie de estado de espírito com nome espanhol. Ela quis saber se eu já havia pensado em algum. Respondi que Isabel, mas poderia ser confundido com um nome português; Carmen, mas já havia muitas Carmens, tanto na ficção quanto na realidade; Soledad, mas que esse nome me parecia muito triste; que então eu pensava chamar Esmeralda a essa força que me enchia de disposição e propósito, depois de tanto tempo sem tocar. Seria esse, para os amigos, despretenciosamente, o meu pseudônimo musical; Esmeralda.<br />
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- Esmeralda, nombre de piedra preciosa – me respondeu – ¡Me queda grande!<br />
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Para os que me conhecem e apreciam piano, que sabem dessa minha cruzada para poder voltar a tocar e da alegria que sinto por ter conseguido, sou agora, muitas vezes, com carinho, Esmeralda, com o “L” bem longo. No coral em que canto também já sou Esmerallllda desde que me viram tocar. E assim Esmeralda, no piano, vai desabrochando para o mundo e Yara, Yarita, também vai ficando contente por tabela. Me acompanham sempre, para ouvir, Paco de Lucia, Buena Vista Social Club, Gypse Kings...<br />
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Mais recentemente a história de Esmeralda ganhou um capítulo novo; novo e difícil. Minha avó fez comigo uma viagem e ficou seriamente enferma. Internada na unidade de cuidados intensivos, eu não podia entrar para vê-la. Impotente em um país longínquo e estranho, resolvi, assim, sair com o grupo para passear, para desanuviar os pensamentos, tentar esquecer o quanto fosse possível. Tínhamos uma guia espanhola, Reyes, e uma portuguesa, Helena, que fazia naquele momento a visita guiada do nosso grupo de brasileiros. Assim, foi permitido que Reyes estivesse comigo o tempo todo: me levou para tocar os monumentos, descrevia tudo com rigor de detalhes, me conduzia com cuidado, avisando de cada obstáculo, fez fotos e mais fotos minhas nos lugares em que eu as solicitava, me sugeria poses que pensava ficariam bonitas – e ficaram mesmo – tudo com muita prontidão, carinho, desvelo e em língua espanhola. Pratiquei o idioma, me distraí de minha impotência, consegui passar bem por aquele dia tenebroso e ganhei uma nova amiga. Uma vez mais, lá estava o espanhol me acalentando a alma naquele momento tão difícil, um dos mais difíceis de toda minha vida... E mais uma vez a face suave do forte idioma espanhol se mostrava a mim.<br />
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E hoje estou eu aqui diante do teclado do computador, com todas essas letras inquisitivas me olhando, rendida às lembranças, aos fatos, aos fragmentos, aos sentimentos todos que se acumularam ao longo dos anos; estive metamorfoseada por minha própria vontade em Esmeralda, tendo tocado música do Sul da Espanha ao piano há poucos dias, completamente trajada como a bonequinha espanhola de minha infância, com exceção dos cílios grandes. Batom e esmalte vermelhos, sapatos de flamenco, pente como os da Espanha nos cabelos, bem como a flor vermelha, o véu, claro, o véu... Tudo como imagino que deva ser, e a música espanhola saltando de mim para o piano antes inerte, em rajadas de plenitude. Pelos epítetos que recebi, creio que consegui o que queria, ser espanhola por um dia: “Frida Calo”; “Periguete de Albéniz”; “A própria Carmen”; “Rainha de Alhambra”. Imagino que meu avô gostaria de me ter visto daqui debaixo (porque de lá de cima aposto que viu). Como foi bom ser Esmeralda, ser espanhola por aquele tempo em que toquei Albéniz... Quanto arrebatamento, quanto êxtase! Que sensação boa de que tudo está no seu devido lugar... De que consegui finalmente “atar as duas pontas da vida”, a Yara de ontem e a Yarita de hoje, como almejou um dia Dom Casmurro...<br />
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E foi assim que, quase miraculosamente, os eventos se vieram construindo em minha vida, para que eu pudesse, de alguma forma, ter esse encontro com aquelas que sei que são as minhas raízes. Agora, só resta despedir-me dos leitores que me acompanharam nessa viagem geográfica e cronológica. E àqueles que nelas acreditam, que Nossa Senhora do Pilar e Santa Teresa Dávila os protejam e guardem... Amém!<br />
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Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-50332201146406048232015-01-09T19:59:00.001-02:002015-01-09T19:59:34.340-02:00Uma DádivaRecentemente eu conversava com uma amiga muito querida, dessas com as quais a gente pode se dar ao raríssimo luxo de sentar para falar sobre as pequenas grandes coisas da vida, aquelas que têm tanto valor e às quais dificilmente alguém presta atenção. Conversávamos sobre as respostas de Deus, sobre como ele nos envia os sinais certos nos momentos em que precisamos saber qual o caminho a seguir. Comentei, então, sobre a história que segue, algo que realmente me aconteceu e que, certa vez, publiquei na forma da seguinte crônica, no blog de uns amigos onde eu costumava escrever. Levada por essa conversa e rememorando tal acontecimento, a um só tempo tão singelo e tão sublime, republico agora a crônica aqui neste espaço e a compartilho novamente com vocês. Aos que por acaso já a leram, espero que curtam reler. Aos que ainda não a leram, saibam e lembrem-se que Deus sempre tem uma resposta, e essa sempre é a resposta certa. Vou me lembrar disso também...<br />
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Dádiva: segundo o dicionário, palavra advinda da milenar e melodiosa língua latina, é aquilo que se dá espontaneamente a alguém, aquilo que se doa por livre vontade, sem que se espere algo em troca do presente. Pois bem, hoje pela manhã (9 de fevereiro) recebi um presente desses, e não foi de ninguém aqui da Terra não; foi mesmo de lá de cima... Eu explico.<br />
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Por causa desse calor intenso que estamos tendo, têm aparecido alguns insetos aqui em casa, que vão entrando pelas janelas abertas e se instalando pela casa toda, como acontece todos os anos por essa época e temperaturas por aqui. Dessa forma nos apareceu uma borboleta amarelo-acinzentada, de tamanho mediano, que ficou esvoaçando uns três dias por todos os lugares, quando menos se esperava, pousando nos livros, nos móveis, nas paredes, nas pessoas.<br />
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Observando-a pelos sons que emitia durante o vôo e conversando com minha avó, comentei que desejaria muito ver / tocar uma borboleta de verdade – não apenas uma reprodução em algum tipo de relevo -, já que nunca pude fazê-lo, contentando-me com contornos e descrições subjetivas, mas que, para que isso se realizasse, essa borboleta precisaria estar morta, uma vez que minha fobia por bichos e minha aflição pelo ruído daquelas asas não me permitiriam pegá-la, até mesmo sob risco de esfacelá-la com o mais mínimo movimento. Então, cogitamos que a saída para mim seria encontrar uma borboleta conservada, por exemplo, em algum museu; plano para um futuro talvez nem tão próximo. Assim pensando, intimamente pedi a Deus que um dia, se fosse possível e de seu agrado, me defrontasse com um desses insetos tão presentes no nosso imaginário; pedi, mesmo considerando a aparente insignificância e falta de nexo do pedido. Se era mesmo verdade que ele tudo via, tudo podia e tudo sabia, estando em todos os lugares, certamente iria me entender. <br />
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Com esses pensamentos, fui dar aulas ontem à tarde; tenho um espaço aqui em casa para isso. E de repente, durante a aula, eis que surge a famigerada borboleta – presença já de alguns dias -, e pousa no chão, ao lado da mesa. Não perto, mas ao lado. Terminei uma aula, comecei outra, terminei e me esqueci da borboleta, da conversa anterior com minha avó, de tudo enfim.<br />
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Hoje logo pela manhã, encontro minha avó na sala das aulas, sentada, bordando. Entro e ela me diz que a borboleta morrera, que estava lá, na mesma posição, desde ontem. Lamentei pelo fim da vida dela como sempre lamento pelo fim de qualquer vida, mas quase imediatamente pensei em pegá-la e comuniquei que o faria; eu não podia deixar essa oportunidade passar!... Nunca tivera uma igual, talvez jamais tivesse outra.<br />
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Me abaixei e toquei a borboleta. Fiquei surpresa ao primeiro contato. Ela estava ali: fina como uma folha do mais frágil papel, imóvel, delicada, com os pares de asas fechados. Tomei fôlego e coragem, coloquei-a cuidadosamente na palma da mão direita e me levantei, pousando-a sobre a mesa e abrindo suas asas com extrema cautela e a ajuda da minha avó, que logo confessou, também interessada, que nunca em sua vida havia visto uma borboleta assim de tão perto. O som era de uma folha seca, e também aquelas nervuras do corpo da borboleta me faziam lembrar uma grande folha dessas que caem das árvores e estalam quando a gente passa. Mas as asas abertas, para mim, lembravam uma flor recém-desabrochada, mesmo sabendo que, em verdade, a criatura já estava definitivamente morta. Asas abertas, minha avó me mostrou a borboleta em posição de vôo, o corpo estreito e comprido, as antenas... E assim eu a tinha, na palma da mão, a borboleta que, até o dia anterior, era só um singelo sonho distante mas que, no entanto, agora vinha ao meu encontro, em um dos locais mais meus em toda a casa.<br />
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Por isso hoje considero que recebi uma dádiva daquele que, de fato, pode, sabe, vê e se faz presente, conhecendo aquilo que temos, sentimos e somos de mais íntimo e nos atendendo na medida certa dos nossos merecimentos. Só me desgosta que a borboleta tenha precisado morrer para que eu tivesse um momento de revelação, de epifania, de vida que foi mais do que a própria vida. Porém, o mistério recebe este nome justamente porque não nos cabe compreendê-lo, mas tão-somente aceitá-lo. Sendo assim, aceito, agradeço e espero apenas, um dia, poder, de algum modo, oferecer a alguém uma dádiva semelhante a esta que hoje recebo. <br />
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Quinta, 10 de fevereiro de 2011<br />
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(Texto publicado originalmente em WWW.jornalistas.blog.br).<br />
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-33250780468904152072015-01-07T15:45:00.002-02:002015-01-07T15:45:38.194-02:00La Garganta Del DiabloAs referências de alguém que não está pautado nem orientado pelo sentido da visão são e estão em seu próprio corpo; começam a partir do corpo e terminam também nele. Assim, como explicar e como entender algo de proporções tão grandes e literalmente intocáveis, no sentido tátil, quanto as Cataratas do Iguaçu quando não se vê? Essa foi uma lacuna que se me defrontou uma vez, mas, contrariamente ao esperado, foi também brilhante e singelamente resolvida.<br />
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Todos a minha volta admiravam as quedas d’água e exclamavam coisas como: “Nossa, olha só”! “Que lindo”! “Quanta água”! Eu, por minha parte, ouvia aquele rugido colossal que parecia projetar-se das profundezas da terra e tentava imaginar um cenário que correspondesse às tantas exclamações que escutava. Até que o grupo separou-se e veio a proposta da Elizete, que eu já conhecia de outros carnavais:<br />
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- Quer que eu te leve lá na passarela? Assim, mesmo você não vendo as cachoeiras, vai sentir a água, aí vai imaginando... <br />
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Claro, aceitei imediatamente e fomos indo, ouvindo aquele fungar inominável das águas que, lançadas para cima e trazidas pelo vento, esparziam o meu corpo e cabelos naquela neblina revigorante e fresca... Até que chegamos frente a frente com a Garganta do Diabo. Parei diante dela, encostada à grade, deixando que a água me molhasse, contemplando aquele vazio inquietante e ruidoso lá embaixo... Agora aquelas tantas exclamações das pessoas começavam a fazer algum sentido. Assim ganhei as cataratas de presente pela primeira vez. Mas não foi essa a única representação que tive delas.<br />
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Para minha surpresa, Marcelo, o nosso guia lá de Foz do Iguaçu, sentando-se ao meu lado em um parque, perguntou, assim, de chofre:<br />
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- Me diz uma coisa... E você? O que ta achando das cataratas?... Na sua imaginação, como é isso?<br />
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- Amedrontador – respondi em uma palavra procurada durante algum tempo.<br />
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- Sim, de fato, é amedrontador – continuou ele – Mas, além disso, o que mais? Como você imagina, aí nas suas ideias, que sejam as cataratas?<br />
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Respondi que não era capaz de imaginar algo assim de proporções tão grandes. Para mmeu contentamento, ganhei as cataratas de presente pela segunda vez em tão curto espaço de tempo. Conto em um minuto como foi isso. Só peço licença para destacar aqui algumas proporções, informações, que permitirão aos demais leitores cegos desta crônica entender o porquê da minha dificuldade em imaginar o que Marcelo me perguntava. Conto como ele me presenteou daqui a pouco.<br />
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As Cataratas do Iguaçu demarcam, no rio Iguaçu – do tupi-guarani água grande – a fronteira natural entre o Brasil, em Foz do Iguaçu, no estado brasileiro do Paraná, e Puerto Iguazú, na província argentina de Misiones. São cerca de 275 quedas de água, sendo a mais impressionante delas a chamada Garganta do Diabo, exatamente na fronteira mencionada entre Brasil e Argentina, uma cachoeira com mais de 80 metros de altura. Historicamente, o primeiro europeu a avistar as cataratas do Iguaçu foi o conquistador espanhol Álvar Nuñez Cabeza de Vaca, por volta dos anos 1540. Escolhi, para intitular esta crônica, o nome desta queda mais importante, mas em espanhol, que para mim deixa a garganta mais diabólica do que em português... hahaa <br />
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Bem, agora posso continuar contando como o Marcelo conseguiu tornar concreta para mim a tão distante e inatingível Garganta do Diabo. Sentado ao meu lado, ele pediu licença e,tomando o meu antebraço esquerdo, posicionou-o na mesa a nossa frente de maneira horizontal, pedindo-me que abrisse os dedos daquela mão espalmada. Tocando a extensão do meu antebraço, começou: <br />
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- Imaginariamente, este aqui é o Rio Iguaçu.<br />
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Fazendo com os dedos uma massa compacta como quando gostaríamos de mostrar um número 4, continuou, tocando a letra “u” que se formava entre meu polegar e indicador:<br />
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- nos seus dedos estão as quedas das cataratas. Aqui no seu polegar estamos do lado brasileiro das cachoeiras. No seu indicador, passamos ao lado argentino. Aqui – disse, tocando a curva do “u” – é a Garganta do Diabo, que a gente vê de frente quando está no lado brasileiro das cataratas e de cima quando está no lado argentino, onde vemos toda essa água despencando sem parar – completou, indo e voltando com os quatro dedos na curva do “u” com rapidez, como a concretizar o fluxo frenético da água jorrante. – E, só para você saber – continuou, posicionando o meu braço direito a uma curta distância, verticalmente – Este aqui é o Rio Paraná.<br />
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Ah! Então era isso! As cataratas, claro que em proporção muitíssimo maior, eram assim... Era esse o fenômeno que toda a gente olhava abismada... Foi como se tivesse sido jogado um feixe intenso de luz sobre aquela irriquieta cortina d’água... E foi assim que, como eu disse, em um passe de mágica, ganhei as cataratas do Iguaçu de presente... Duas vezes!<br />
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- Obrigada, Elizete! Valeu, Marcelo! Onde havia um gigantesco ponto de interrogação vocês colocaram textura, cor, tamanho... O tipo da coisa que não tem preço.<br />
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-91698975118344317692015-01-04T21:53:00.000-02:002015-01-04T21:53:12.634-02:00O Paraguai Além da Fronteira<br />
“Sy (Madre)<br />
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Ahai nde resa/ha mitãnguéra oma’ẽ./Ahaí nde juru/ha mitãnguéra opuka./Ahai nde réra/ha mitãnguéra oñe’ẽ.<br />
Dibujo tus ojos/y los niños miran./Dibujo tu boca/y los niños sonríen./Dibujo tu nombre/y los niños hablan”. (Cristian David Lopez).<br />
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A maior parte das pessoas, quando vai a Ciudad Del Este fazer compras, diz, de boca cheia, que foi ao Paraguai, que conheceu o Paraguai. Realmente, trata-se de território paraguaio, mas do ponto de vista de país e de povo, essa é uma redução em muito equivocada e bastante simplista.<br />
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Ao começarmos a atravessar a chamada Ponte da Amizade – primeiro dos sinais concretos dessa relação comercial estreita que inegavelmente existe entre Paraguai e Brasil -, já impressiona o fluxo intenso de pessoas e de tudo aquilo que anda sobre rodas, de grande porte e de porte pequeno. As instruções que se recebe são para permanecer dentro dos shoppings, para evitar as ruas. E, de fato, se dentro dos shoppings está um mundo – luxuoso, de temperatura agradável, espaçoso e calmo -, nas ruas se vê o oposto dele. Motos aos montes, um trânsito infernal, que para recordar o trânsito da Índia só faltam os camelos, elefantes e gado transitando pelas ruas. Todo o cuidado é literalmente pouco. E mais ainda quando não se vê; cruzar as ruas de Ciudad Del Este é verdadeiramente uma odisseia. <br />
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Você está concentrado no trânsito, em não ser atropelado por nenhuma das infinitas motos que surgem não sei de onde e vão para tantos lugares, nas calçadas tão difíceis quanto as do Brasil, quando de repente um vendedor ambulante chega te oferecendo cinco meias por não sei quantos reais. Você diz que não, obrigado, ele começa a aumentar as meias: seis, sete, oito, dez, doze... Quanto mais você diz que não, mais ele aumenta. Até que chega um ponto em que, sem exagerar, ele teria um lucro zero, mas não importa, aumenta que aumenta. Você sai andando naquela 25 de Março piorada e o vendedor segue lado a lado, aumenta que aumenta. Desvencilhar-se de um desses ambulantes paraguaios é uma tarefa difícil. E quando você consegue deixar um para trás, em menos de um minuto surge outro, ora criança, ora adulto e assim as coisas vão. Isso foi algo que me deixou com um pouco de medo, acho que já trazido aqui do Brasil, onde toda a desconfiança é pouca quando um estranho começa a andar com você lado a lado insistentemente pelas calçadas. Bem fundamentado ou não, o medo existiu, mas acho que o vender vinha antes de qualquer outra possível pretensão. Considero isso até compreensível. O comércio é o que literalmente dá vida, em todos os sentidos, à Ciudad Del Este. E, prioritariamente, comércio com brasileiros. Ao que parece, comerciar é uma tradição passada de pai para filho por força das circunstâncias; ou você vende ou você vende. (e agora, com o dólar nas alturas, o mais provável é que você não venda). Como turista é uma situação difícil, mas quando se avalia o lado humano das coisas, são atitudes perfeitamente compreensíveis.<br />
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Se olfativamente esse é um ambiente onde se sente de tudo, visualmente, pelo que me contaram, as ruas não são muito diferentes, se vê também de tudo. O tempo que passei lá foi pouco, bem curto, só o de transitar de um shopping a outro, mas cada flash desse cotidiano era um pequeno pedaço de um grande mosaico que ia se desenhando a cada passo.<br />
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Tudo isso, porém, é muito pouco para alguém poder dizer: “Estive no Paraguai”! Desculpe, caro leitor, se você um dia, indo somente a Ciudad Del Este, já fez essa afirmação, mas lamento, você, como eu, esteve no Paraguai e ao mesmo tempo lá não esteve. Se esteve apenas em Ciudad Del Este, você ouviu falar de ambulantes, de pirataria, de contrabando, de comércio, de sacoleiros, de multidão, de contas que, com poucos reais, resultam numa quantidade astronômica e confusa de zeros em guaranis, mas raramente algo além disso. Você não deve saber, por exemplo, como agora aprendi – né, Marcelo? -, que o Paraguai, além de vender, tem indústrias e não tem quase impostos. Que, pela parceria com o Brasil na construção da usina binacional de Itaipu, é autossuficiente na produção de energia elétrica. Não deve saber que quando se passa Ciudad Del Esste há todo um mundo completamente desconhecido a quem esteve apenas lá. Não deve saber que a capital, Assunção – ou Asunción para entrarmos mais no clima – é um dos polos culturais da América Latina... Pois é... E é mesmo. Normalmente, aqui no Brasil, poucas pessoas que vão ao Paraguai sabem dessas coisas. Aposto como você não deve ter ouvido nada de espanhol e pouco de guarani – as línguas oficiais do país. O português predomina, com pouco sotaque. Mas isso só lá, em Ciudad Del Este...<br />
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Como eu sei? Se já estive em outros lugares do Paraguai? A resposta é não, também não passei de Ciudad Del Este, mas tive um avô que adorava contar histórias aos netos já grandes; histórias reais, principalmente de viagens. E várias dessas viagens dele, montando máquinas, foram para o Paraguai, para Asunción. Assim eu conheci o Lago de Ipacaraí... Conheci a simplicidade das índias em suas casinhas rústicas, cozendo frugalmente e falando guarani, palavras e expressões que meu avô repetia reproduzindo com facilidade os sotaques, ensinava com paciência, a mim, única da família a quem ele contava detalhes dessas histórias. Palavras e expressões cheias de vogais e, por isso, adocicadas de uma doçura que as línguas latinas, com uma consoante ou mais para quase cada vogal, não carregam apesar da melodia. Com as histórias do meu avô conheci a harpa paraguaia, ouvi a mescla de espanhol e guarani nas músicas – em sua maioria lamentosas e muitas vezes em tons menores -, aprendi a diferenciar uma língua da outra, aprendi a gostar da Perla, a paraguaia, não essa aí do funk... Pelamor! Com as histórias do meu avô, quando pisei fora do primeiro shopping de Ciudad Del Este, eu soube que estava sim no Paraguai, mas não no Paraguai sobre o qual ele contava. Eu soube que estava em um Paraguai estereotipado, em uma cidadezinha comerciária de fronteira que é tomada para definir o contexto de todo um país que, embora pequeno, tem muito mais do que Ciudad Del Este para mostrar. Mas antes de mais nada, eu soube que, para conhecer o Paraguai a respeito do qual ele contava com tantos pormenores, a viagem que eu teria de fazer um dia seria completamente outra...<br />
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-9274103582764454252014-12-23T15:52:00.003-02:002014-12-23T15:52:38.724-02:00Na Minha Biblioteca...<br />
“Um livro aberto é um cérebro que fala; fechado, um amigo que espera; esquecido, uma alma que perdoa; destruído, um coração que chora”. (RabindranathTagore).<br />
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Escuto da janela cair essa chuva abençoada pela qual tanto esperamos depois de uma estiagem histórica e tão longa. Escuto ao mesmo tempo em que me lembro de uma notícia que vi ontem em um jornal na televisão. Dizia que choveu tanto no Rio Grande do Sul que, em uma escola, várias salas ficaram alagadas, inclusive a biblioteca. Olhando, minha avó contava que os livros das prateleiras inferiores literalmente boiavam, desamparados. (desamparados é por minha conta). Essa imagem me lembrou uma outra, que me acompanha desde que me mudei da casa onde morava, da qual acho que só vou conseguir dar conta depois que me sentar e fizer exatamente o que estou fazendo agora: escrever. <br />
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Tive uma infância, em certa medida, solitária. Cresci rodeada de adultos. Brinquedos? Eu os tinha de todos os tipos, mas passei meio que à margem da etapa do esconde-esconde, do pega-pega, da queimada, de pular corda e subir em árvore, coisas que as crianças da minha idade ainda faziam. Isso tudo só periodicamente, quando meu irmão vinha me ver com os meus pais. As crianças da rua, conheci pouco. Me fizeram companhia desde cedo a música e os livros. Desde que me conheço por gente, estou cantando ou tocando alguma coisa.<br />
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Quando voltava da escola, terminava os deveres e não queria mais as bonecas ou a música, eu ia ler. Na época, a única maneira como um cego podia ler era o método Braille. Os livros gravados em fitas e cds, os eletrônicos baixados no computador, os livros digitais vieram todos bem depois do momento em que essa história começa. Por isso, eu tinha que reler muitas coisas, pois um livro novo em Braille era coisa rara. No início, eu só tinha aqueles que minha avó mesma havia datilografado em Braille, da escola. Alguns anos depois passei a adquirir, bem devagar, em instituições especializadas, clássicos da literatura em Braille, que eu devorava imediatamente e guardava na estante correndo. Me lembro de reclamar para minha avó que todo mundo podia ir à livraria ou à biblioteca, escolher o que quisesse; eu não, e mesmo assim as pessoas da minha idade não queriam saber de ler. Ela tentava apaziguar, mas sabia que aquilo me deixava uma fera! Minha bisavó, que estudou só até a chamada quarta série, costumava dizer que eu jamais arrancasse uma página de um livro, porque se eu fizesse isso, ele iria chorar. Guardei esse conselho comigo toda a vida, porque para mim, todo livro novo que chega é um novo ente que vai me acompanhar, a partir do momento em que somos apresentados, ao longo da caminhada.<br />
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Quando eu tinha uns quinze anos, me lembro de ter visto os primeiros livros gravados em fitas cassete. Eu emprestava os livros da biblioteca e lia que lia; depois vieram os cds e eu lia que lia... Aos dezoito fiz meu primeiro trabalho da faculdade no computador. Um novo mundo, o da tecnologia, me abria de vez as portas. A universidade demandava títulos muito específicos da área das letras, que eu não encontrava em Braille nem gravados em lugar nenhum. Então, pessoas do meu convívio, amigos, parentes, liam os livros impressos em tinta que eu comprava e gravavam, e eu escutava. E junta que junta livro... E assim foi durante muitos anos, minha biblioteca ia crescendo. E ainda mais cresceu depois dos livros eletrônicos e digitais.<br />
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Até que chegou um dia ainda não muito distante, em que minha vida sofreu uma grande reviravolta; eu precisava me mudar para um apartamento. Não haveria espaço para guardar os livros em Braille e as fitas; o piano, também, eu precisaria vender; e vendi, para alguém que eu sabia que cuidaria bem dele. Os livros foram dispensados em todos os lugares onde tentei doá-los, inclusive em uma escola para cegos. Aproximava-se o dia da mudança e eu tinha que dar um destino a tudo aquilo que havia juntado... Depois de relutar muito, aceitei de má vontade a ideia de que os meus livros se tornariam alguma coisa reciclada... Coloquei tudo na garagem e pedi que me dispensassem dos momentos finais; eu não queria vê-los indo para a caminhonete. Fui atendida, subi para o meu quarto. Eu me lembrava de tudo o que minha avó datilografou para mim, de todas as fitas que tinham sido gravadas, dos rostos conhecidos que tinham feito as leituras, de todo o tempo que tinham dedicado, de todos os livros impressos em Braille que eu tinha lido e guardado em casa, caso tivesse vontade de ler de novo. Me lembrava dos meus amigos cegos que hoje não querem mais ler Braille por causa dos computadores; me lembrava da grande quantidade que conheço de professores que trabalham com o ensino de cegos e já me disseram com todas as letras que o ensino do Braille não é mais importante, isso aqui mesmo, em Limeira. Me sentia como aquelas mães desesperadas, que têm os bebês às escondidas, enrolam em um pano e colocam no lixo... E ainda hoje, quando penso nos livros que tive que abandonar às próprias más-sortes, na chuva, no sol, na sujeira pelas quais devem ter passado, é assim que me sinto. Aquele dia foi um dos de maior impotência que já vivi.<br />
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Conservei os cds, os livros impressos em tinta. Hoje compro muito menos, mas é só assim, com esses dois formatos de livros, a passos lentíssimos, que minha biblioteca ainda cresce. Só aqui entre nós: de vez em quando vou à estante, pego um livro que sei que não vou poder ler agora, e sinto o cheirinho de papel... Mudei-me para o apartamento. O piano agora é digital. Os livros da infância, da adolescência e da juventude ficaram na lembrança. Já me peguei várias vezes pedindo a Deus para conseguir preservar a qualquer custo os livros que restaram e o piano, seja lá para onde eu novamente tenha que ir... Não sei como seria se eu tivesse que passar por isso de novo.<br />
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E ontem me deparo com aqueles livros todos na tv, nadando na chuva... Senti que finalmente era hora de escrever, de me libertar; que eu finalmente teria forças e saberia o que dizer... E que finalmente, talvez, depois de tanto tempo passado, os meus entes-livros poderiam me perdoar...<br />
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-52661176975041214682014-12-13T22:21:00.001-02:002014-12-13T22:21:10.183-02:00Uma Folha Verde“Sim, eu quero saber. Saber para melhor sentir. Sentir para melhor saber”. (Paul Cézanne).<br />
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(Já que a reencontrei há poucas semanas, dedico estes escritos à tia Cleidi, que fez parte desse momento sem jamais saber a importância que ele tinha ou teria. Os dedico também à Mariana, para quem esta história, um dia, foi quase tão importante quanto o foi para mim).<br />
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Essa história foi uma memória durante muito tempo. Hoje, elaborada, contada informalmente algumas poucas vezes, está pronta para ser escrita. Ou seria sua protagonista quem está pronta para contá-la?... Não importa. De qualquer maneira, foi assim:<br />
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Um dia de escola de criança, aparentemente como qualquer outro. Tão comum que a garotinha não sabia que, dentro de poucos minutos, sucederia algo, não necessariamente ruim, mas que mudaria para sempre o entendimento que ela tinha de si mesma. A melhor amiga, em pé, lhe ofereceu a mão, que ela aceitou como em todos os dias, e se foram as duas para o parquinho, aproveitar a melhor parte do dia quando a gente tem seis anos: o recreio. Se comeu? Deve ter comido, ela não se lembrava. Permaneceu registrado daquele dia apenas um único acontecimento.<br />
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Sentaram-se na areia todas as crianças juntas em algazarra, com os baldinhos e aqueles rastelos todos, pás, conchas... Como sempre, a amiga diligentemente postada ao seu lado direito. Embora tivessem a mesma idade, ela estava sempre alerta para o que a outra precisasse. Precisava ir a algum lugar na escola: vamos. Precisava encontrar a escova de dentes no meio das outras: aqui. Precisava pegar o lápis da cor certa no estojo para fazer a atividade como a professora pedia: é esse, ó... E o lápis certo estava ali, ao alcance da sua mão esquerda.<br />
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E, assim, a tarde transcorria com tranquilidade. De repente, a garotinha teve a atenção atraída por um diálogo vindo de crianças ali perto:<br />
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- Olha, uma folha...<br />
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- Nossa! Que bonita!<br />
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- Que grande!<br />
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- É, olha só, que verde legal!!!<br />
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Largou o baldinho e as ferramentas e levantou a cabeça intrigada, monologando consigo mesma: grande, ta bom. Bonita, tudo bem. Mas, verde legal?! O que seria isso, um verde legal?<br />
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Pediu para ver a folha, que veio passando de mão em mão até chegar à sua. Tocou cada pedacinho; não viu nada de diferente, nada de textura de verde. Cheirou; nada; cheiro de areia, cheiro de folha, mas nada de cheiro de verde. Pôs perto do ouvido e tudo continuava igual, vai ver que o verde não tinha som. Devolveu a folha a alguém e fez em voz alta a pergunta que mobilizava seus pensamentos às crianças que se assentavam ali perto:<br />
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- Que que é isso, verde legal?<br />
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- Verde... Bom... Ah, assim... É legal, sabe? Bonito... Ah, verde... Oras, Yara, verde é verde, e pronto, ué...<br />
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Claro; que verde era verde e pronto ela já sabia. Como percebeu que daquele mato não sairia mais coelho, resolveu deixar pra lá, perguntar a uma pessoa que soubesse... Uma pessoa grande. Voltou para a areia e o baldinho até terminar o intervalo.<br />
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Chegou de novo à classe, sentou-se, esperou pacientemente que a professora passasse as atividades. Quando recebeu a sua e percebeu que todos já começavam a trabalhar, enquanto pegava o papel das mãos da professora, criou coragem e foi dizendo meio reticente:<br />
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- Ô tia... Eu queria perguntar uma coisa...<br />
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- O quê? – respondeu a professora, a um só tempo terminando de distribuir os papéis às crianças ali da mesma mesinha e virando-se um pouco para olhar a meninazinha que falava com ela, como quem tem um olho no gato e outro no peixe. – Pode perguntar.<br />
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- Ah, não - respondeu a garotinha. – Vem aqui perto, por favor, eu queria perguntar uma coisa séria.<br />
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- Ta bom, então espera um pouquinho só que a tia já volta.<br />
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Ah, essa história de esperar um pouquinho só ela já conhecia, mas tudo bem; sempre acabava dando certo mesmo; E deu.<br />
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- Pronto – veio dizendo a professora enquanto se aproximava veloz – To aqui, só pra saber a coisa séria que você queria perguntar... Pode falar.<br />
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E como criança dificilmente faz rodeios, a garotinha virou a cabeça para a esquerda, de onde vinha o som da voz da professora, levantou-a um pouquinho como fazia quando queria falar com ela e disparou de uma vez só:<br />
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- Tia, o que que é verde???<br />
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- O quê? – perguntou a professora como quem se esforça para sintonizar uma frequência certa.<br />
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- É isso mesmo que eu quero saber, o que que é verde??? – repetiu a garotinha com vivacidade determinada – É isso, pronto, o que que é verde?<br />
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Para surpresa da menina instalada na cadeirinha baixa, a professora, jovem e antes jovial como sempre, apoiou uma mão na mesa e veio baixando o corpo, séria, até sentar-se no chão ao seu lado; tudo isso muito devagar... Para ganhar tempo, quem sabe. Primeiro a calça jeans roçava a sua pele; depois o cabelo da professora, grosso, longo, crespo, forte, veio chegando perto... Mais perto... Passando pelo seu próprio cabelo, depois pelo seu rosto, e, de repente, pronto, a professora estava sentada, ali, pequenininha, igual a ela.<br />
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- Yarinha... Bom... O verde... Olha... Sabe, a tia acha melhor você perguntar isso pra vó quando chegar em casa hoje... Tudo bem?<br />
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- Ah, ta bom... Tudo bem... Você não sabe responder, né? Eu sei... A Lu também não sabia... Mas eu achei que você sabia... Sabe, tem um monte de gente aqui que não sabe o que que é verde...<br />
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A professora levantou-se desconsertada, talvez pela pergunta que ouvira, ou quem sabe pela resposta assustadoramente compreensiva que depois recebera da criança, e, caminhando atabalhoadamente, foi sentar-se à sua mesa, vindo de vez em quando para verificar o andamento das atividades dos alunos e sempre demorando-se um pouco mais ao lado da garotinha que tão decididamente a interpelara; talvez procurando alguma palavra que não surgiu em nenhum momento naquele dia. <br />
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A menina, por seu turno, queria chegar logo à casa, afinal, não era qualquer pessoa grande que servia para responder sua pergunta: tinha que ser a vó, que para ela era mãe e sempre seria; tinha que ser a vó, que sempre sabia tudo. Se a professora tinha dito para perguntar para a vó, então tinha mesmo que ser ela, não tinha jeito.<br />
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Finalmente lhe disseram que a avó tinha chegado e que ela podia ir. Chegou à casa, jantou, conversou, esperou. Quando conseguiu ficar sozinha com a avó, procurou as palavras para fazer a pergunta que queria e que já por duas vezes tinha ficado sem resposta, mas acabou usando as mesmas anteriormente tentadas naquele dia:<br />
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- Mãe, o que que é verde?<br />
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A avó-mãe, que nunca lhe tinha escondido nada, começou, devagar, mas resolutamente:<br />
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- Verde?... Bom, filha, senta aqui. Olha, o verde é uma cor bem bonita, das folhas, das matas... Algumas horas o mar também é verde. Mas acontece que você não vai conseguir ver o verde como as pessoas fazem, porque elas fazem isso com os olhos e os seus não funcionam. Lembra que eu te contei aquela história que o médico te deixou muito tempo no bercinho? Então, quando você saiu de lá, os seus olhos já não estavam mais funcionando. Eles estão aí, sabe, mas não funcionam. Como quando você quebra um brinquedo, ele continua aí, mas não funciona mais.<br />
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A menina fez um sinal de positivo com a cabeça – Entendi.<br />
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- Mas olha – continuou a avó – agora que você já sabe que os seus olhos não funcionam, que já entende o que eu quero dizer quando conto isso, vai me prometer que não vai ficar triste e que vai responder todas as perguntas que te fizerem, como você sempre tem feito, porque assim você aprende com as perguntas das pessoas e elas aprendem com as suas respostas. Não deixa nunca de responder, ta bom? O que você não souber, depois me pergunta, mas não deixa nunca de responder.<br />
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A menina concordou que assim estava bem e saiu. Continuou sem saber o que era o tal do verde legal, e agora já tinha entendido que não iria mesmo saber. Se a avó não tinha palavras para lhe explicar o que perguntava, ninguém mais as teria. Entendeu que se não saberia o verde, também não saberia o amarelo, o azul nem nenhuma das outras cores. Cresceu e continua sem saber, mas não desistiu ainda de perguntar. Porém, agora, cada tentativa de resposta de alguém é um pouquinho mais de cor que ela consegue juntar. Agora, de cada cor já tem uma ideia; Agora é como se cada tentativa de cada pessoa deixasse cada cor um pouco mais colorida. Agora ela já sabe que nunca vai chegar ao fim da busca, mas sabe também que, até o último dia, vai continuar tentando. <br />
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Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-49144416178776397752014-11-18T00:23:00.000-02:002014-11-18T00:23:10.564-02:00Recuerdos Del Paisito: ¿Qué Uruguay Tiene De Brasil?<br />
Bem, ao que parece, esta é a última das últimas crônicas sobre o Uruguai. Começo a escrever, recordo o vivido e o relatado e constato que os dias no paisito já vão mesmo ficando longe... Só consegui mantê-los por perto até agora por causa das crônicas, sei disso. Mas chegada a hora da última delas, não há como não notar a passagem implacável do tempo. Consulto o caderninho de anotações; vejo que tudo, rigorosamente tudo foi contado.<br />
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Assim, para me despedir dos intrépidos brasileiros e uruguaios leitores desta série despretensiosa de crônicas, dedico-me a mostrar, afinal de contas, que traços o Uruguai guarda do Brasil; ao menos alguns deles, os que pude notar ao longo de uma semana. Porque há, sim, em muitas ocasiões, elementos que trazem de volta o Brasil aos brasileiros que passeiam ou mesmo moram no Uruguai.<br />
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Para começar, não é nada difícil ouvir o som do português brasileiro no Uruguai. Quase em todo lugar onde se chega, em muitas das esquinas que se dobra, se um brasileiro apurar o ouvido, muito certamente ouvirá o acento familiar de sua terra, principalmente nas áreas mais turísticas do país, agora que os brasileiros vêm cada vez mais descobrindo as belezas do Uruguai e a hospitalidade tranquila, cortês, discreta e sempre atenta dos uruguaios. Os ônibus de turismo, por exemplo, têm mais brasileiros do que qualquer outra coisa... Prova disso é que saí daqui de Limeira e, fazendo o citytour de Montevidéu, no segundo dia da viagem, conheci um casal de Brasileiros de Sampa, Alessandra e José Eduardo (acompanhados pela mãe dela, Ana). E tinha que ser naquele dia, naquela hora, porque depois do almoço partiram para Punta Del Este, tomando nossas viagens rumos bem diferentes, e não mais os vi. Contudo, apesar do pouco tempo, trocamos ideias, contatos e sempre estamos nos falando... Mundo pequeno...<br />
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Mas, como eu dizia, quando a gente diz que é brasileiro no Uruguai, na grande maioria das vezes, o interlocutor abre um sorriso e se abre por inteiro; conta o que conhece do Brasil; diz que já está acostumado à alegria ruidosa dos brasileiros; faz perguntas, quer saber, faz o máximo possível para aproximar-se do português se percebe que não é entendido em espanhol. Isso quando os uruguaios não falam o português mesmo, principalmente os gaúchos da fronteira ou aqueles que por alguma razão têm uma ligação estreita com o Brasil.<br />
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Outro traço brasileiro sempre presente no Uruguai é a música: da sertaneja à mpb, passando pelo chorinho e outros gêneros mais, o português brasileiro cantado está sempre saindo dos auto-falantes, assim como os ritmos quebradinhos e as melodias dissonantes tão típicas do Brasil. Inclusive, não poucas vezes ouvi uruguaios cantando em português. E isso tudo lá, bem longe do Norte, bem distante da fronteira com o Brasil. Cheguei mesmo a ouvir no rádio um anúncio de um show da Gal Costa que aconteceria em Montevidéu em poucos dias, cujos ingressos estavam sendo vendidos.<br />
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E como não poderia deixar de ser, a presença das novelas brasileiras se faz sentir fortemente no Uruguai. Dubladas em espanhol, claro, como fazemos com as mexicanas aqui, mas sempre há uma oportunidade para um brasileiro encontrar uma de suas novelas para assistir, se tiver um tempinho de passar pelos canais. E, claro, temas brasileiros também andam pelos noticiários. No meu caso, ouvi sobre a eleição presidencial, quando a candidata Marina Silva estava no auge de sua campanha e de sua popularidade.<br />
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Enfim, para todos os brasileiros com os quais cruzei no Uruguai por alguma razão, de passagem, a palavra que mais frequentemente resumia o país e o povo era satisfação. Quanto a mim, penso que a palavra que melhor os resume seja afetividade; palavra não, expressão. Afetividade cálida é a expressão que melhor os resume. E levada por essa afetividade, um dia, eu volto... Quem sabe?! Assim, para encurtar a despedida que não aprecio, termino a crônica e a série simplesmente com um “até breve”!<br />
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-62932736943193638342014-11-06T20:57:00.002-02:002014-11-07T11:12:14.036-02:00Recuerdos Del Paisito: Uruguay, Un Poco De SociopolíticaUma das coisas que notei com simpatia ao passar uma semana entre os uruguaios foi a maneira genuína como falam de seu país, como prezam seu chão, seu lugar no mundo. É claro que escrevo como uma observadora estrangeira, turista, que teve pouco tempo para poder ficar ao par das coisas, mas penso que não se trata nem do patriotismo exacerbado que muitas vezes parece caracterizar os estadunidenses, nem da falta de patriotismo que infelizmente acomete o Brasil, característica que só se modifica aqui quase que exclusivamente durante as copas do mundo. Esse papo de que o gigante acordou é balela; ele está, novamente e por tempo indefinido, no mesmo estado letárgico do qual saiu momentaneamente no ano passado. Recentemente li um artigo que definia o Uruguai como um país de grandeza discreta, e é asssim, discretamente, que os uruguaios descrevem as conquistas de seu país; discreta porém alegremente, com reconhecimento. Valorizam o que conseguiram, satisfeitos pela caminhada, mas sempre de olhos postos no futuro, criticamente, com a humildade que lhes é tão característica, sabendo que é preciso agir firmemente para que as recompensas venham e para que a maior quantidade possível de problemas possa ser evitada, no curto, médio e longo prazo.<br />
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Na crônica anterior a esta, em que abri alas ao general Artigas, foi possível perceber, examinando mais detidamente sua figura, como o Uruguai, desde seu início, caracterizou-se ou tentou caracterizar-se por uma postura integracionista de nação. Basta, para isso, recordar que artigas tinha seguidores de diversas proscedências, que muitas vezes professavam sua fé de maneira distinta uns dos outros e provinham de diferentes estratos sociais. Não estou aqui dizendo que isso tenha dado certo sempre, nada dá sempre certo, até por essa ser uma questão de pontos de vista. Mas a postura integracionista foi a opção escolhida pelos uruguaios várias vezes ao longo do caminho e parece ter sido exitosa em muitas ocasiões, como deve ter sido possível notar àqueles que me acompanharam até aqui.<br />
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Essa postura integracionista de nação pode ser constatada e confirmada por outros indícios além da figura do prócer da pátria uruguaia. Vejamos: o Uruguai é um país que não tem religião oficial prevista em constituição, embora uma parcela significativa de sua população remeta à tradição católica. Esses modos laicizantes proporcionam que a igreja não interfira decisivamente nas iniciativas civis do país. Disso resulta um debate democraticamente saudável, que trata a religião como uma das facetas a ser analisada nas situações, mas não de maneira predominante. Tal debate só está arraigado e definido tão fortemente na política uruguaia porque aparece já na vida cotidiana do país. Essa tendência pode ser percebida, por exemplo, quando em um romance como A Trégua, o consagrado escritor uruguaio Mario Benedetti mescla a suas reflexões políticas e/ou cotidianas um debate entre os dois protagonistas – namorados e com uma diferença grande de idade. Ambos, sentados na praia vazia, olham as ondas escuras e dialogam sobre a possibilidade ou não da existência de Deus: ele, racionalmente, defendendo que Deus não existe. Ela, sem precisar de comprovações para sua fé, sustentando que sim, ele existe e está em tudo e em cada coisa. Esse é um lance no relacionamento dos dois, mas trata-se de uma diferença que, embora exista dentro do casal e da obra literária em si, não é decisiva para o desfecho da trama. O livro se nos apresenta como uma microrrepresentação do próprio país.<br />
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Quanto à educação, no Uruguai ela é laica, além de obrigatória e gratuita, do ensino elementar ao superior, praticamente inexistindo o analfabetismo no país. E quando digo educação não me refiro a esse arremedo estatístico de escolarização global que temos, em que uma porcentagem imensa dos alunos é posta na escola graças a pífias recompensas monetárias governamentais e uma grandessíssima parte deles a frequenta sem aprender o que deve, nem da maneira como deve. O uruguaio é um povo politizado, consciente de seus deveres e direitos, crítico, desde o motorista ao empresário, e isso só se consegue com educação de qualidade.<br />
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Essa mentalidade crítica formada desde cedo e de maneira ampla e irrestrita entre a população do país deu lugar, desde logo na história, a posturas legais distintas que fazem do Uruguai um país de vanguarda. Em 1907, torna-se o primeiro país latino-americano a legalizar o divórcio, permitindo, ainda, que essa fosse uma iniciativa feminina já em 1913. Em 1932, passa a ser o segundo país a reconhecer o direito ao sufrágio feminino. No entanto, a aprovação e vigor de leis vanguardistas não significam que essas leis recebam 100% da aprovação dos uruguaios; aliás, em nome de uma real democracia, é muito bom que assim seja. Em 2013, torna-se o terceiro país latino-americano a permitir o aborto nas doze primeiras semanas de gravidez, apenas uma das medidas polêmicas aprovadas durante o governo do atual presidente, José Mujica, que lhe trouxeram críticas severas por parte de setores mais conservadores da sociedade. Também em 2013 o Uruguai se coloca como o segundo país sul-americano a aprovar o casamento igualitário, permitindo ainda o ingresso de homossexuais nas forças armadas. Retrocedendo um pouco na história, no princípio do século XX regula o consumo e venda do álcool, revertendo seus lucros à saúde pública, e em 2013 passa a ser o primeiro país do mundo a legalizar a produção, venda e distribuição da maconha sob o controle do Estado, medida que tem suscitado discussões calorosas no país.<br />
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O presidente Mujica goza de uma popularidade alta. Permite que pessoas socialmente menos favorecidas habitem o palácio onde deveria viver; usa apenas uma parte mínima de seu salário; vive em uma casa modesta e dirige um fusca azul. É conhecido por seu estilo austero de vida. Embora admirado por grande parte daqueles que governa, também há uruguaios que se perguntam por que seu mandatário adota esse estilo em que aos mais humildes é dado apenas o básico do básico; por que não se pode estender a eles também outras comodidades que, em nossos dias,são necessárias a um mínimo de conforto.<br />
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O fato é que, ao que tudo indica, José Mujica, que não pode reeleger-se, pois não existe esse mecanismo eleitoral nas leis uruguaias, conseguirá ajudar a eleger o candidato de seu partido – a coalisão de esquerda Frente Ampla. Trata-se do ex-presidente Tabaré Vázquez que, de acordo com as pesquisas, deverá voltar a governar seu país. Cabe salientar que, embora do mesmo partido, há diferenças visíveis entre os modos de governar de Mujica e Vázquez, o que, a se confirmar aquilo que predizem as pesquisas, deve preconizar mudanças em determinados rumos do país. No exato dia em que tivemos o segundo turno de nossas eleições presidenciais, os uruguaios votaram em primeiro turno para começar a decidir quem os governará pelos próximos cinco anos. Porém, as semelhanças param por aí. Enquanto aqui temos mais de trinta partidos políticos que parecem não atender a nenhuma outra ideologia que não seja a dos interesses próprios de cada candidato, estabelecendo coligações absurdas e alianças ideologicamente impensáveis às pessoas de algum senso, no Uruguai os partidos políticos são três, ideologicamente bem distintos, fenômeno que deveria verificar-se em qualquer país com intenções políticas realmente sérias. Lá, quando um candidato troca de partido, ele tem apenas duas opções: começar um novo partido do zero ou aposentar-se definitivamente da política. Evita-se, assim, esse troca-troca promíscuo de partidos que ocorre em certos lugares que nos são de alguma forma familiares.<br />
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Como em todos os países do mundo, governados pelos mais diferentes regimes, há pontos que os uruguaios gostariam de melhorar, de modificar, porque sempre vão haver e têm que haver; porque a estagnação é daninha em qualquer campo da vida. O que realmente me impressiona é saber que logo aqui, pertinho, há um lugar politicamente tão distinto, porque a vontade política é quase tudo quando se trata do bom governo de um país.<br />
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Bem à moda de Platão, termino este texto esboçando apenas um breve e despretensioso panorama, até porque a unanimidade dificilmente existe além do próprio vocábulo que a define. No entanto, dialogando platonicamente com os possíveis leitores desta crônica, deixo no ar uma pergunta: como um país pequeno, com pouca diversidade de fontes de renda, consegue fazer tanto, por exemplo, no que diz respeito à educação, isso para não mencionar outras áreas, enquanto que nós, um país de duzentos e poucos milhões de habitantes, farto em espaço e recursos capazes de fazer a economia girar, estatisticamente fazemos tanto e continuamos fazendo essencialmente tão pouco? A resposta pode ser dada mentalmente mesmo, pelos leitores aí do outro lado da telinha; um belo caso para se pensar... Eu, por minha parte, já tenho uma teoria; já vislumbro uma resposta.<br />
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-71993053214811203252014-10-31T01:05:00.001-02:002014-10-31T01:05:29.263-02:00Recuerdos Del Paisito: El General ArtigasTendo chegado ao fim a viagem propriamente dita, com os lugares, paisagens, peculiaridades, pessoas que conheci no Uruguai, quase tudo já devidamente descrito e bem-guardado, devo começar a me despedir. No entanto, esta não será uma despedida breve. Minhas últimas três crônicas serão bastante pessoais: duas sobre como se originou e vem desenvolvendo esse pequeno e aprazível país e a última sobre aquilo que percebi que o Uruguai tem de Brasil, porque é muito provável e possível, quase inevitável, que um brasileiro que vá até lá se sinta em casa.<br />
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Iniciando então o fechamento desta série sobre o “Paisito”, me cabe falar a respeito de um personagem tratado no Uruguai com solenidade a um só tempo terna e reverente, cuja história é um mosaico mesclado de Europa e Banda Oriental: o general Artigas, prócer da pátria. O Uruguai laico, liberal e vanguardista de hoje, em certa medida, deve muito às ideias, por que não dizer, revolucionárias de seu herói nacional.<br />
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José Gervasio Artigas nasceu em Montevidéu, em 1764, proveniente de uma fidalga família espanhola. Nesse tempo, as terras a Leste do Rio Uruguai – Banda Oriental -, eram disputadas pelos impérios espanhol e português, por conta dos imensos rebanhos de gado e cavalos selvagens existentes no pampa. Ao redor de Montevidéu alargava-se a vasta campanha plana e verdejante. Conta-se que, lá pelos catorze anos, Artigas deixou sua casa na cidadela, reaparecendo anos depois, liderando índios charruas, minuanos e guaranis, bem como desertores espanhóis e portugueses e escravos fugidos. Todos esses eram os seguidores multiétnicos com os quais passou a conviver, chamados, em espanhol, de gauchos, e de gaúchos em português. <br />
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Aos trinta e três anos entrou para o serviço da Coroa Espanhola. Naquele país, em 1808, consolidando seu plano de tomar posse da Europa, Napoleão Bonaparte invade a Espanha, depõe o rei Carlos IV e entrega o trono usurpado a seu irmão José Bonaparte, enquanto a família real portuguesa se instala no Brasil, fugindo a destino similar.O caos instaurado na Espanha abre brecha às lutas de independência de suas colônias na América. Os atuais Paraguai, Peru, Chile, Argentina, Uruguai e fatias do que hoje é o Rio Grande do Sul declaram independência em 1810, formando a Junta de Buenos Aires. O governo de Montevidéu declara lealdade à Espanha. <br />
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Em 1811 Artigas deserta do exército espanhol e se une aos revolucionários com seu próprio exército gaucho. De seu cavalo, o general reunia combatentes por onde passava. Combatentes e suas famílias. Aquela nação nômade que se formava seguia seu líder por onde quer que ele fosse. Trajando endumentária gaucha, o general de olhos esverdeados, expressão sisuda e rosto bronzeado de sol pregava a liberdade civil e religiosa e a cessão de terras aos índios. As formações espanholas, estabelecidas de maneira lenta e disciplinada, eram sorrateiramente atacadas e debeladas graças à ligeireza das montarias das tropas artiguistas. Ainda naquele ano Montevidéu fica prestes a ruir na batalha de Las Piedras. <br />
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Sem saída, o governo da cidadela busca a ajuda do reino de Portugal, seu antigo inimigo. Carlota Joaquina, princesa dos reinos de Brasil, Portugal e Algarves e filha do deposto rei espanhol Carlos IV, mais do que de pressa faz atender ao apelo do governo de Montevidéu, com a intenção oculta de anexar a Banda Oriental aos territórios portugueses. Artigas foge com cerca de 80% daquela que um dia seria a população uruguaia para a atual província argentina de Entre-Rios, conseguindo tomar Montevidéu em 1814. Encerrado o domínio espanhol na região do Prata, a Junta de Buenos Aires tenta anexar a Banda Oriental à União Argentina, sendo impedida pelo exército de Artigas, que, combatendo seus antigos aliados portenhos, passa a ser novamente caçado por espanhóis e portugueses, além dos argentinos. Esse cerco dura até 1821, quando Artigas exila-se no Paraguai, até sua morte em 1850. O território uruguaio é anexado aos reinos de Portugal, Brasil e Algarves sob o nome de Província Cisplatina e, após a independência do Brasil, torna-se parte desse império.<br />
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Porém, o ideal do novo país que teria lugar na antiga Banda Oriental já tinha sido semeado. Em 19 de abril de 1825, um grupo liderado por ex-seguidores de Artigas – já exilado -, dentre eles Fructuoso Rivera, Manuel Oribe e Juan Antonio Lavalleja, e conhecido como os Trinta E Três Orientais, chega à cidade de Florida. Não eram apenas orientais nem apenas trinta e três, mas esse número corresponde ao grau supremo da Maçonaria e é oficialmente aceito no país. Em 25 de agosto do mesmo ano a Assembleia Constituinte se reúne e declara a independência da República Oriental do Uruguai, depositando aos pés daquela que seria mais tarde chamada Virgem Dos Trinta E Três Orientais, além da bandeira tricolor com três listras horizontais: vermelha, azul e branca – cores já disseminadas nos tempos de Artigas -, os rumos do novo país do qual ela seria um dia padroeira. Em 1828 esse ato ganha o devido reconhecimento por parte de brasileiros e argentinos e a história uruguaia ganha novos rumos. <br />
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Quando estive detidamente diante do monumento erigido a Artigas, ventava forte e chovia gelado na antiga cidadela que se fez grande. Ainda assim, a atmosfera solene mas não pesada reinava na praça. Do alto de seu cavalo alto, era como se o velho gaucho nos observasse a todos. A água tornava o piso escorregadio e liso, mas ninguém resistiria à oportunidade de chegar um pouquinho mais perto do prócer, até porque a chuva de Montevidéu não devia ser, para ele, nenhuma novidade. Ninguém resistiria e, claro, eu também não resisti. <br />
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-72807532676082969862014-10-23T16:22:00.002-02:002014-10-23T16:22:23.528-02:00Recuerdos Del Paisito: Colonia Del SacramentoNeste estágio da viagem conhecemos lugares bastante distintos dos que havíamos visto até então. Viajando agora pelo Oeste do país se nos apresentou a produção de frutas, verduras, leite, mel... Estão presentes ali os vilarejos e em bem menor número são as árvores, visão oposta à que tivemos quando fomos rumo ao departamento de Maldonado. No entanto, chama a atenção a presença abundante, em determinado trecho do caminho, das palmeiras canarienses. <br />
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Trafegando pela estrada plana e serpenteante vamos descobrindo que está presente com grande força nessa região a influência dos Imigrantes. A chamada Guerra Grande (1839-1851), já visitada em uma crônica anterior, teve papel decisivo nessa história. Com o seu fim e o país em falência econômica generalizada, imigrantes europeus (suíços, piamonteses, espanhóis...) chegavam trazendo suas ferramentas e conhecimentos novos sobre a terra e o gado, que fizeram o Uruguai, já livre da guerra civil, começar novamente a prosperar. Era esse, em parte, o cenário que nos aguardava. Porém, a história do departamento de Colonia, onde logo chegamos, bem como de sua capital, a cidadezinha antiga de Colonia Del Sacramento, começa em um período bem mais anterior. E quando digo antiga não me refiro somente ao aspecto arquitetônico antigo do local; digo antiga também para explicitar que, em Colonia Del Sacramento, tudo recende a antiguidade, como se o tempo lá não passasse. <br />
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A cidade então chamada Colônia Do Santíssimo Sacramento, na época uma possessão portuguesa em meio às terras da coroa espanhola, foi a primeira cidade do país que hoje se denomina República Oriental do Uruguai. Então temos lá a primeira igreja do Uruguai, o primeiro colégio do Uruguai e assim por diante. Fundada em 1680 por Manuel Lobo – governador da Capitania Real do Rio de Janeiro -, a intenção portuguesa com o estabelecimento desta cidade dentro dos domínios espanhóis era, além do componente bélico, minerar e traficar por intermédio do Rio da Prata. Durante quase cem anos Colonia Del Sacramento foi tomada pelas armas pelos espanhóis, recuperada diplomaticamente pelos portugueses, retomada pelas armas pelos espanhóis etc., etc., etc., assim sucessivamente. Em 1777, torna-se definitivamente possessão espanhola, como preconizou o Tratado de Badajoz. Essa alternância luso-espanhola no poder deixou uma herança visível: as casas espanholas, de traços retilíneos como os de um tabuleiro de xadrez, se misturam às portuguesas, que seguem o relevo do lugar. Esse desenho peculiar, aliado às ruas de pedras portuguesas, à semelhança da cidade brasileira de Paraty, ajudam a dar-lhe o ar de tempos antigos. <br />
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E novamente em Colonia Del Sacramento, na década de 70 do século XX, o impulso econômico argentino se fez sentir no Uruguai, como já retratado em outras ocasiões aqui mesmo nestas crônicas. Até então, passado o furor da disputa pelo poder entre espanhóis e portugueses e afastadas de vez ambas as metrópoles com a independência do país e das demais colônias luso-espanholas, a cidade, depois da desativação do complexo turístico de Real de San Carlos – com a proibição nacional das touradas em 1912, foi se tornando uma localidade perigosa e desvalorizada, conhecida como el bajo. Situada a apenas 45 quilômetros de Buenos Aires, começou a ser gradualmente recuperada pelos argentinos por meio do turismo. Em 1995 foi declarada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.<br />
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Em Colonia Del Sacramento me aconteceu algo inusitado. Feito o passeio pela cidade, almoçamos. Então eu quis voltar à basílica, rezar com mais tranquilidade e comprar algumas lembranças. A questão era: onde está a igreja mesmo? E anda que anda e nada de igreja. O tempo corria impiedoso, tínhamos quinze minutos antes que o ônibus partisse no horário combinado. Íamos desistir quando ouvi um sino. Estaquei onde estava, apontei a direção com a mão direita e disse à minha amiga: “Aqui”! Sem que ela tivesse certeza visual de que íamos na direção correta, seguimos o som do sino; tínhamos pouco tempo e não muita escolha. E, depois de um pouco de tempo de quase-corrida, efetivamente, lá estava a igreja. Foi uma emoção diferente entrar com os uruguaios celebrando a missa, cantando. Aquelas preces em espanhol me inundaram por completo e entendi que haveria tempo para tudo. Deus havia feito soar o sino na hora exata. Nos permitiu chegar à igreja guiadas pelo som. Ao abrir-se a porta, os uruguaios cantavam em prece e novamente lá estava Deus. Então, sim, haveria tempo para tudo, porque no tempo de Deus há tempo para tudo. <br />
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Sempre fui fascinada por cidades que recordam outros tempos a partir do momento em que pela primeira vez nelas se pisa: Rotemburgo, Pompeia, Siena, Toledo, Araxá, Paraty... Colonia Del Sacramento é também uma delas. Não sei, nesses lugares me sinto em casa, como se houvesse algo de mim perdido em um tempo distante. Em cidades que têm tal atmosfera essa certeza sempre me visita e em Colonia Del Sacramento não foi diferente. Saí com a sensação de ter estado mais uma vez, em alma, em casa.<br />
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-29337620254838172692014-10-12T00:33:00.001-03:002014-10-12T00:33:09.599-03:00Recuerdos Del Paisito: Punta Del Este“Entre agua y aire brilla/el puente curvo/entre verde y azul las curvaturas/de cemento, dos senos y dos simas/con la unidad desnuda/ de una mujer o una fortaleza/sostenida por letras de hormigón/que escribe en las páginas del río”. (Pablo Neruda – 1904-1973). “Entre água e ar brilha/a ponte curva/entre verde e azul as curvaturas/de cimento, dois seios e dois abismos/com a unidade nua/de uma mulher ou uma fortaleza/sustentada por letras de concreto/que escreve nas páginas do rio”. (tradução livre, 11/10/2014). <br />
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A cidade uruguaia de Punta del Este, em sua origem, foi uma antiga vila de pescadores chamada Ituzaingó, vocábulo guarani que significa “cascata abundante”. Tratava-se de um porto pesqueiro, sendo também comum a caça aos leões marinhos.<br />
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Em momentos anteriores foi possível relatar alguma animosidade envolvendo uruguaios e argentinos, como, de certo modo, é natural entre países vizinhos que protagonizaram disputas historicamente. No entanto, em algumas oportunidades, no que diz respeito a impulsionar a economia por meio do turismo, a participação Argentina foi e é importante no Uruguai, como, por exemplo, no início do século XX, quando se fundou Piriápolis, conforme já narrado. No caso de Punta del Este não foi diferente. Nos anos 40 do século passado, também a presença dos argentinos teve um papel relevante na consolidação desta cidade como importante polo turístico uruguaio. <br />
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Atualmente Punta del Este, o balneário mais famoso do Uruguai, que figura entre os dez mais luxuosos do mundo e tem praias tanto fluviais - graças ao Rio da Prata - como oceânicas - já que é ali na Punta de Salinas que começa o Oceano Atlântico -, recebe cerca de dois milhões de turistas por ano, sendo este o seguimento econômico mais forte no local, o que faz dela uma cidade cara, onde se pode chegar a gastar, por exemplo, três vezes mais para comer do que normalmente no restante do país, inclusive na capital, Montevidéu. Na maioria das vezes, certamente, os turistas estão preparados para suportar esses gastos e o atendimento os compensa louvavelmente; contudo, trata-se de um aspecto que não pode deixar de ser destacado. A alta temporada na cidade, claro, acontece no verão, mas sempre há alguém curioso para conhecer a Praia Mansa e a Praia Brava. Passeando, além dos altos edifícios na parte central, se podem observar as casas de veraneio, limpas e bem cuidadas por caseiros e outras pessoas responsáveis pelos trabalhos domésticos, o que ajuda a garantir emprego aos moradores locais durante o restante do ano. Essas casas e mansões de veraneio do tamanho de quarteirões têm nomes e a maior parte delas não possui muros ou cercas. Curiosamente, a mais cara pertence a um empresário brasileiro e é hermeticamente fechada, o que não deixa de refletir a preocupação com a segurança, que tanto nos atormenta aqui no Brasil. A construção civil, assim, é também um setor econômico em alta em Punta, além do turismo; um setor que alavanca não apenas essa cidade, mas também suas cidades-satélites, onde os trabalhadores que executam as construções vêm residir. <br />
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Um projeto arquitetônico que acabou por tornar-se um frequentado ponto turístico do lugar são as pontes de La Barra, criadas pelo engenheiro civil uruguaio Lionel Viera (1913-1975) e inauguradas em 1965. Seu acentuado formato ondular, descrito no poema que inicia este texto, produz nos passageiros dos veículos uma sensação semelhante à que se tem em um desses brinquedos de parque de diversões. Por uma das pontes ondulares se vai, pela outra, ainda mais ondulada, se volta, com igual sensação, na direção contrária. Me lembrei de meu irmão, Thiago. Quando éramos pequenos e viajávamos de carro com os nossos avós, sempre pedíamos para o vô passar rápido pelas lombadas, pra gente sentir aquele friozinho na barriga... Foi assim, mas um pouco mais intenso, nas pontes de La Barra, em que alguns passageiros do ônibus emitiram gritinhos prazerosos, enquanto outros soltaram exclamações mais assustadas; lembrança doce. <br />
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O monumento símbolo de Punta del Este, além, certamente, do farol, que já caiu três vezes mas agora vai bem, obrigada, é uma escultura localizada na Praia Brava e conhecida como “Los Dedos”. Foi uma obra esculpida em apenas seis dias, pelo artista chileno Mario Irarrázabal (1940), que concorria a um concurso e o venceu com essa escultura. Alguns dizem que aquela mão simboliza o homem emergindo para a vida; outros garantem que o monumento retoma a prudência que se deve ter diante do mar. O que é possível afirmar realmente é que não se pode pensar em Punta del Este sem recordar a imagem daquela grande mão esculpida brotando da areia. É uma pena que, infelizmente, como aqui, também haja pichadores no Uruguai, e esses “artistas às avessas” se tenham encarregado de pichar até mesmo a mão que simboliza a cidade... Dizer o quê? Nada; mudar de assunto é melhor. <br />
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A maior parte dos turistas ficou maravilhada pela visão do requintado cassino Conrad. Eu, por meu turno, prefiro a emoção de passar pelas pontes ou a mão brotando da areia, que faz a gente se sentir tão pequeno ali, em pé, diante dela, sentindo a dureza firme do concreto, ouvindo o vento e a vastidão do mar. A arte sempre me faz pensar em quanta singularidade cabe nesse nosso “Mundo mundo vasto mundo”, que Drummond há tempos assinalou. Essa é a lembrança mais suave, e ao mesmo tempo forte e imediata, que trago e vou sempre levar de Punta. Toda a opulência restante, deixo para que a admirem aqueles que têm olhos de ver, assim como deixo também um conselho que tem muito a ver com o “carpe diem” dos antigos romanos: “Se podes olhar, vê; se podes ver, repara”. (José Saramago - 1922-2010).<br />
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-74793530674549169022014-10-05T18:16:00.002-03:002014-11-03T12:12:54.100-02:00Recuerdos Del Paisito: Casa Pueblo<br />
"O Sol é meu amigo mais antigo”. Assim se expressou o pintor, ceramista, muralista, escultor, compositor, escritor, arquiteto, produtor de cinema e empresário uruguaio Carlos Páez Vilaró (1923-2014). Difícil é apresentar tanta versatilidade em pouco espaço. Ir à península de Punta Ballena é, obrigatoriamente, mergulhar na obra do genial Vilaró. Punta Ballena é o berço da Casa Pueblo, um complexo que inclui um museu e uma galeria de arte com as obras do artista, um hotel, um restaurante e um café. E o que mais impressiona é saber que Vilaró construiu Casa Pueblo com as próprias mãos e a ajuda de pescadores e demais moradores dos arredores.<br />
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Conforme nos aproximávamos de ônibus, me lembro que minha avó e Carol olhavam pela janela, observando incrédulas materializar-se diante de seus olhos a concretude da península, essa porção de terra cercada de água por três dos lados que elas tanto tinham desenhado para os alunos no quadro-negro por mais de trinta anos, mas que nunca antes haviam visto fora dos livros. Foi emocionante vê-las fazendo essa descoberta ali, diante de mim.<br />
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Quando chegamos à Casa Pueblo fazia aquele típico friozinho uruguaio, mas o sol, símbolo do lugar, marcava presença. Casa Pueblo é conhecida mundialmente como uma “escultura habitável”, assim denominada por seu criador e construtor. Segundo o próprio Vilaró: "construi-a como se tratasse de uma escultura habitável, sem planejar antecipadamente, seguindo principalmente o meu entusiasmo. Quando o governo municipal me pediu, há pouco tempo, a planta do projeto - que eu não tinha - um amigo arquiteto teve que passar um mês estudando a maneira de decifrá-la”. O casarão branco de arredondados traços mediterrâneos abriga e expõe as obras do artista por todos os cantos e levou 35 anos para ser construído – o início data de 1958. Quando Casa Pueblo começou a tornar-se labiríntica, Vilaró decidiu espalhar por ela placas com os nomes dos amigos, como se de ruas se tratasse. Um desses amigos foi o nosso poetinha, Vinicius de Moraes (1913-1980). Foi inspirado em Casa Pueblo e para as filhas de Vilaró que Vinicius compôs os célebres versos: “Era uma casa muito engraçada”... Alguns outros desses amigos famosos eram simplesmente Jorge Amado (1912-2001), Pablo Picasso (1881-1973) e Salvador Dali (1904-1989).<br />
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Não se pode deixar de destacar, infelizmente, que o acesso de pessoas com deficiências, principalmente motoras, não é fácil, bem como o dos idosos, dada a proliferação de degraus e escadas dispostos de forma não regular e a inexistência de corrimãos propriamente ditos, exceto em alguns trechos de caminho. No entanto, se houver oportunidade e meios, trata-se de um passeio imperdível.<br />
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Na obra de Vilaró como um todo ressalta-se fortemente o cotidiano, primeiro, dos afro-uruguaios, com destaque para o candombe, manifestação musical uruguaia já tratada em uma crônica anterior. O artista aprofundou posteriormente seus estudos sobre a cultura africana no Brasil e em outros países latino-americanos com forte presença afro-descendente, tais como o Haiti, bem como em países da própria África subsaariana. Outras temáticas recorrentes em sua obra são o sol – claro -, a lua, as mulheres.<br />
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É certo que todo artista produz rodeado e influenciado por aquilo que vivencia. No caso de Vilaró, essa ligação vida-arte é bastante estreita e notória. Se o sol simboliza Casa Pueblo e é seu amigo mais antigo, a lua recorda e retoma outro episódio marcante de sua vida pessoal. Em 1972 um de seus filhos, Carlos Miguel, integrava um time uruguaio de rugby, os Old Christians. O avião da Força Aérea Uruguaia que transportava o time chocou-se contra uma montanha entre o Chile e a Argentina, na Cordilheira dos Andes. Dos 45 passageiros, 16 sobreviveram, numa inacreditável e, por que não, milagrosa luta pela vida. Um desses sobreviventes era o filho de Vilaró, que o artista nunca desistiu de procurar, mesmo com as autoridades colocando em xeque a existência de sobreviventes depois de mais de dois meses nos inóspitos Andes. Essa procura incansável foi transformada por Vilaró em Livro: Entre Meu Filho E Eu, A Lua. A tocante foto do reencontro dos dois, que ilustra a capa, já é um forte indício de tudo quanto o livro encerra.<br />
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Todos os dias ao entardecer os turistas são presenteados com um poema em prosa escrito por Vilaró e declamado por sua voz calma e comovida, com a beleza e suavidade tranquila de seu sotaque uruguaio, que reverbera pelos auto-falantes enquanto o sol se põe em Casa Pueblo. ( http://www.youtube.com/watch?v=HDdKf4a9zcg ) A essa cerimônia não assisti, mas a leitura reveladora do poema dá uma breve ideia do espetáculo que dia após dia se desenrolou diante dos sensíveis olhos do artista e que continua a oferecer-se voluntariamente aos frequentadores vespertinos da Casa Pueblo. Despeço-me de vocês hoje deixando, além da declamação do poema pelo próprio Vilaró no link acima, logo abaixo, o poema original em espanhol e, imediatamente após, uma tradução livre que fiz, para ver se conseguia administrar o impacto de ter sido apresentada ao sol pela agudeza terna e singela de Carlos Páez Vilaró. Divirtam-se, deleitem-se, meditem.:<br />
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"CEREMONIA DEL SOL <br />
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Hola Sol …! Otra vez sin anunciarte llegas a visitarnos. Otra vez en tu larga caminata desde el comienzo de la vida. Hola Sol…! Con tu panza cargada de oro hirviendo para repartirlo generoso por villas y caseríos, capillas campesinas, valles, bosques, ríos o pueblitos olvidados. Hola Sol…! Nadie ignora que perteneces a todos, pero que prefieres dar tu calor a los más necesitados, los que precisan de tu luz para iluminar sus casitas de chapa, los que reciben de tí la energía para afrontar el trabajo, los que piden a Dios que nunca les faltes, para enriquecer sus plantíos, y lograr sus cosechas. Es que vos, Sol, sos el pan dorado de la mesa de los pobres. Desde mis terrazas te veo llegar cada tarde como un aro de fuego rodando a través de los años, puntual, infaltable, animando mi filosofía desde el día que soñé con levantar Casapueblo y puse entre las rocas mi primer ladrillo. Recuerdo que era un día inflamado de tormenta, el mar había sustituido el azul por un color grisáceo empavonado, en el horizonte un velero escorado afinaba el rumbo para saltear la tempestad, el cielo se llenaba de graznidos de cuervos en huida, la sierra se peinaba con la ventolera alborotando a la comadreja y al conejo. Pero de golpe como un anuncio sobrenatural el cielo se perforó y apareciste vos. Eras un sol nítido y redondo, perfecto y delineado, puesto sobre el escenario de mi iniciación con la fuerza sagrada de un vitreaux de iglesia. Desde ese instante sentí que Dios habitaba en ti, que en tu fragua derretía la fe y que por medio de tus rayos la transmitía por todos los sitios donde transitabas. Los mismos brazos de oro que al desperezarte iluminan el cielo, al estirarse a los costados entibian las sierras, o apuntando hacia abajo laminan el mar. Hola Sol…! Cómo me gustaría haber compartido tu largo trayecto regalando luz, porque a tu paso acariciaste la vida de mil pueblos, compartiste sus alegrías y tristezas, conociste la guerra y la paz, impulsaste la oración y el trabajo, acompañaste la libertad e hiciste menos dura la oscuridad de los presidios. A tu paso sol, se adormecen los lagartos, despiertan los girasoles y los gallos cacarean. Se relamen los gatos vagabundos, los perros guitarrean, y el topo se encandila al salir de la cueva. A tu paso sol, hay sudor en la frente del obrero y en los cuerpos de las mujeres cobrizas que alcanzan el cántaro de la favela. Con tus latidos conmueves el mar, das música a la siembra, la usina y el mercado. A tu paso corrieron en estampida búfalos y antílopes, desperezó el león, se asombró la jirafa, se deslizó la serpiente y voló la mariposa. A tu paso cantó la calandria, despegó el aguilucho, despertó el murciélago y emigró el albatros. Hola Sol…! Gracias por volver a animar mi vida de artista. Porque hiciste menos sola mi soledad. Es que me he acostumbrado a tu compañía y si no te tengo, te busco por donde quiera que estés. Por eso te reencontré en la Polinesia, cuando te coronaron rey de los archipiélagos de nácar y los arrecifes dentellados de coral, o también en Africa, cuando dabas impulso a sus revoluciones libertarias y te reflejabas en el espejo de sus escudos tribales para inyectarles coraje. Te estoy mirando y veo que no has cambiado, que sos el mismo sol que reverenciaron los aztecas, el mismo de mi peregrinaje pintando por América, el que envolvió la Amazonia misteriosa y secreta, el que me alumbró los caminos al Machupichu sagrado del Perú, el de los valles patagónicos o los territorios del Sioux o del comanche. El mismo sol que me llevó a Borneo, Sumatra, Bali, las islas musicales o los quemantes arenales del Sahara. A diferencia del relámpago que apenas proyecta en la noche latigazos de luz, desde tu reinado planetario, tus destellos continúan activos, permanentes. Alguna vez la travesura de las nubes oculta tu esplendor, pero cuando ello ocurre, sabemos que estás ahí, jugando a las escondidas. Otras veces, en cambio, te vemos sonreír cuando las golondrinas o las gaviotas te usan de papel para escribir las frases de su vuelo. Gracias Sol, por invadir la intimidad de mi atardecer y zambullirte en mis aguas. Ahora serás la luz de los peces y su secreto universo submarino. También de los fantasmas que habitan en el vientre de los barcos hundidos en trágicos naufragios. Gracias Sol…! Por regalarnos esta ceremonia amarilla. Gracias por dejar mis paredes blancas impregnadas de tu fosforescencia. Entre ventoleras y borrascas, cruzando ciclones y tempestades, lluvias o tornados, pudiste llegar hasta aquí para irte silenciosamente frente a nuestros ojos. Porque tu misión es partir a iluminar otros sitios. Labradores, estibadores, pescadores te esperan en otras regiones donde la noche desaparecerá con tu llegada. Y como respondiendo a un timbre mágico despertarás las ciudades, irás junto a los niños a la escuela, pondrás en vuelo la felicidad de los pájaros, llamarás a misa. A tu llegada, se animará el andamio con sus obreros, cantarán los pregoneros en las ferias, la orilla del río se llenará de lavanderas y entrará la alegría por la banderola de los hospitales. Chau Sol…! Cuando en un instante te vayas del todo, morirá la tarde. La nostalgia se apoderará de mí y la oscuridad entrará en Casapueblo. La oscuridad, con su apetito insaciable penetrando por debajo de mis puertas, a través de las ventanas o por cuanta rendija encuentre para filtrarse en mi atelier, abriéndole cancha a las mariposas nocturnas. Chau Sol…! Te quiero mucho! Cuando era niño quería alcanzarte con mi barrilete. Ahora que soy viejo, sólo me resigno a saludarte mientras la tarde bosteza por tu boca de mimbre. Chau Sol…! Gracias por provocarnos una lágrima, al pensar que iluminaste también la vida de nuestros abuelos, de nuestros padres y la de todos los seres queridos que ya no están junto a nosotros, pero que te siguen disfrutando desde otra altura. Adiós Sol…! Mañana te espero otra vez. Casapueblo es tu casa, por eso todos la llaman la casa del sol. El sol de mi vida de artista. El sol de mi soledad. Es que me siento millonario en soles, que guardo en la alcancía del horizonte”.<br />
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(Carlos Páez Vilaró, Uruguai, 1923-2014)<br />
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“Cerimônia do Sol<br />
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Olá Sol! Outra vez sem anunciar-te chegas a visitar-nos. Outra vez em teu grande passeio desde o começo da vida. Olá Sol! Com teu ventre carregado de ouro fervente para reparti-lo generoso por vilas e casarios, capelas campesinas, vales, bosques, rios ou cidadezinhas esquecidas. Olá Sol! Ninguém ignora que pertences a todos, mas que preferes dar teu calor aos mais necessitados, os que precisam de tua luz para iluminar suas casinhas de lata, os que recebem de ti a energia para enfrentar o trabalho, os que pedem a Deus que nunca lhes faltes, para enriquecer seus plantios e propiciar suas colheitas. Porque tu, Sol, és o pão dourado da mesa dos pobres. De meus terraços te vejo chegar a cada tarde como um aro de fogo rodando através dos anos, pontual, infalível, animando minha filosofia desde o dia em que sonhei levantar Casa Pueblo e pus entre as rochas meu primeiro tijolo. Lembro-me que era um dia inflamado de tormenta, o mar havia substituído o azul por uma cor acinzentada apavorante, no horizonte um veleiro ancorado preparava-se para saltar a tempestade, o céu se enchia de grasnidos de corvos em fuga, a cerra se penteava com o vendaval alvoroçando a doninha e o coelho. Mas de golpe como um anúncio sobrenatural o céu se perfurou e tu apareceste. Eras um sol nítido e redondo, perfeito e delineado, posto sobre o cenário de minha iniciação com a força sagrada de um vitral de igreja. Desde esse instante senti que Deus habitava em ti, que em tua forja derretia a fé e que por meio de teus raios a transmitia por todos os lugares por onde transitavas. Os mesmos braços de ouro que ao espreguiçar-te iluminam o céu, ao estirar-se às costas entibiam as cerras, ou apontando para baixo laminam o mar. Olá Sol! Como eu gostaria de haver comnpartilhado teu grande trajeto presenteando luz, porque por onde passaste acariciaste a vida de mil povos, compartilhaste suas alegrias e tristezas, conheceste a guerra e a paz, impulsionaste a oração e o trabalho, acompanhaste a liberdade e fizeste menos dura a obscuridade dos presídios; por onde passas Sol, adormecem os lagartos, despertam os girassóis e os galos cacarejam; se lambem os gatos vagabundos, os cachorros latem e a toupeira se deslumbra ao sair da toca. Por onde passas Sol, há suor na testa do operário e nos corpos das mulheres acobreadas que agarram o cântaro da favela. Com teu pulsar comoves o mar, dás vida à semeadura, à usina e ao mercado. Por onde passaste correram precipitadamente búfalos e antílopes, espreguiçou-se o leão, assombrou-se a girafa, deslizou a serpente e voou a mariposa. Por onde passaste cantou a cotovia, decolou a aguiazinha, despertou o morcego e emigrou o albatroz. Olá Sol! Obrigado por voltar a animar minha vida de artista. Porque fizeste menos solitária minha solidão. É que me acostumei à tua companhia e se não te tenho, te busco por onde quer que estejas. Por isso te reencontrei na Polinésia, quando te coroaram rei dos arquipélagos de nácar e dos arrecifes denteados de coral, ou na África, quando davas impulso a suas revoluções libertárias e te refletias no espelho de seus escudos tribais para injetar-lhes coragem. Te estou olhando e vejo que não mudaste, que és o mesmo sol que reverenciaram os astecas, o mesmo de minha peregrinação pintando pela América, o que envolveu a Amazônia misteriosa e secreta, o que me iluminou os caminhos ao Machupichu sagrado do Peru, aos vales patagônicos ou os territórios do Sioux ou do Comanche. O mesmo sol que me levou a Bornéu, Sumatra, Bali, às ilhas musicais ou aos areais queimantes do Saara. Diferente do relâmpago que apenas projeta na noite chicotadas de luz, de teu reinado planetário, teu resplendor continua ativo, permanente. Às vezes alguma travessura das nuvens oculta teu esplendor, mas quando isso ocorre, sabemos que estás aí, brincando às escondidas. Outras vezes, no entanto, te vemos sorrir quando as andorinhas ou as gaivotas te usam de papel para escrever as frases de seu voo. Obrigado, Sol, por invadir a intimidade de meu entardecer e mergulhar-te em minhas águas. Agora serás a luz dos peixes e de seu secreto universo submarino. Também dos fantasmas que habitam o ventre dos barcos afundados em trágicos naufrágios. Obrigado Sol! Por presentearnos com esta cerimônia amarela. Por deixar minhas paredes brancas impregnadas de tua fosforescência. Entre vendavais e borrascas, cruzando ciclones e tempestades, chuvas ou tornados, pudeste chegar até aqui para ir-te silenciosamente diante de nossos olhos. Porque tua missão é partir a iluminar outros lugares. Lavradores, estivadores, pescadores te esperam em outras regiões onde a noite desaparecerá com tua chegada. E como respondendo a um timbre mágico despertarás as cidades, irás junto aos meninos à escola, porás em voo a felicidade dos pássaros, chamarás para a missa. À tua chegada se animará o andaime com seus operários, cantarão os pregoeiros nas feiras, a margem do rio se encherá de lavadeiras e entrará a alegria pela bandeirola dos hospitais. Tchau Sol! Quando em um instante te fores de todo, morrerá a tarde. A nostalgia se apoderará de mim e a obscuridade entrará na Casa Pueblo. A obscuridade, com seu apetite insaciável penetrando por debaixo de minhas portas, através das janelas ou por quantas aberturas encontre para filtrar-se em meu atelier, dando passagem às mariposas noturnas. Tchau Sol! Te amo muito! Quando eu era menino, queria alcançar-te com o meu barrilete. Agora que sou velho, só resigno-me a saudar-te, enquanto a tarde boceja por tua boca de vime. Tchau Sol! Obrigado por provocar-nos uma lágrima, ao pensar que iluminaste também a vida de nossos avós, de nossos pais e a de todos os seres queridos que já não estão junto a nós, mas que te seguem desfrutando de outra altura. Adeus Sol! Amanhã te espero outra vez. Casa Pueblo é a tua casa, por isso todos a chamam casa do sol. O sol de minha vida de artista. O sol de minha solidão. É que me sinto milionário de sóis, que guardo no cofre do horizonte”.<br />
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(tradução livre, 02/10/2014)<br />
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Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-87241357514458825972014-09-25T21:19:00.002-03:002014-09-26T13:02:47.316-03:00Recuerdos Del Paisito: Piriápolis"a Piria se lo puede hallar en todo cuanto su férrea voluntad creó. Fue un hombre que tuvo un sueño, lo hizo real y vive en él". (Loreley Lazo, poetisa uruguaia)<br />
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E finalmente hoje vamos a um lugar diferente. Do ambiente urbano, embora tranquilo e convidativo da capital Montevidéu, passaremos às estradas asfaltadas, planas, bem demarcadas e sinalizadas do Leste do país, com seus pinheirais e eucaliptos, coqueiros e palmeiras, até chegar a outro departamento, o de Maldonado. Ali o relevo não é mais plano e a região continua a ser cortada pelo Rio da Prata, até que se chega à Punta de Salinas, onde começa o Oceano Atlântico.<br />
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Aqui e ali, pela estrada, insinuam-se em meio à mata pequenas vilas sem asfalto, algumas casinhas, em sua maioria brancas, para de novo a paisagem ser tomada pelo verde. Esse jogo de revela-esconde das poucas casinhas brancas em meio à paisagem permaneceu por todo o caminho até Piriápolis, que já foi o balneário mais famoso do Uruguai.<br />
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É claro que o objetivo principal dos turistas, enquanto viajávamos, era Punta del Este, sempre aguardada. Fomos comunicados, no entanto, de que, no meio do caminho, passaríamos por Piriápolis para apreciar a vista. Aí fiquei pensando: o que eu poderia contar sobre Piriápolis, onde estive por uns vinte minutos e aonde os turistas que me acompanharam foram para apreciar a vista?... Cabia a mim descobrir o que era importante lá além da bela vista.<br />
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Então, algo que não pode deixar de ser contado é a história de seu fundador, Francisco Piria, que, afinal de contas, dá nome à cidade – Piriápolis, cidade de Piria. Só pensar “Quem foi esse uruguaio que fundou a própria cidade”? Já é algo que inspira a escrever. Assim, vamos a ele. <br />
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Filho de imigrantes genoveses, Francisco Piria nasceu em Montevidéu em 1847. Em idade escolar foi levado à Itália por um tio monge, que o colocaria em contato com os conhecimentos filosóficos sobre a alquimia, que teriam grande influência em sua vida e cuja simbólica pode ser vista e constatada em tudo quanto criou e desenvolveu. Além de ter fundado a cidade balneária de Piriápolis, chamada sugestivamente de “cidade do porvir”, é responsável pela existência de várias dezenas de bairros na capital uruguaia. A atual sede da Suprema Corte do país foi sua residência em Montevidéu, mandada construir por ele, cravada em pleno centro histórico da cidade, pertinho de onde eu me havia hospedado.<br />
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Tudo isso se deve à destacada atuação de Piria como empresário: desde logo tornou-se um homem de negócios, de tino extraordinário. Comprava terras, para depois dividi-las e vendê-las. “Convidava” amigos a se hospedarem na cidade, em grande parte argentinos, e depois fazia as propostas de venda, que se acabavam concretizando. E Piriápolis, cujo desenvolvimento foi baseado desde sempre no turismo, acabou por consolidar-se. <br />
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Contudo, eram apenas duas as pessoas de confiança de Piria que poderiam tocar esse projeto adiante depois de sua morte, que se deu em 1933: um de seus filhos, Pancho, e um amigo, Carlos Bonavita. Bonavita ceifaria a vida a Pancho após um desentendimento, e a si próprio logo depois, não muito tempo após o falecimento de Piria. Na ausência de seu fundador e de seus dois continuadores naturais, o Estado se apropriou da cidade, que perdeu seu status de balneário mais famoso do Uruguai para a vizinha Punta del Este. Entretanto, Piriápolis prossegue, ainda bastante famosa, com o ápice de sua temporada no verão.O turismo interno é bastante importante, embora latino-americanos em geral e mais recentemente europeus a estejam descobrindo. <br />
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Chegamos ao alto do Morro do Inglês, mais conhecido como Cerro San Antonio, por causa da capelinha depositária de uma imagem imponente do santo casamenteiro que está em seu cume. Enquanto meus companheiros de viagem apreciavam a vista, depois de tiradas algumas fotos, claaaaro, aproveitei para rezar; não pelas coisas do coração, que essas vão ser como tiverem que ser, mas pelos que estavam lá e pelos que ficaram aqui. <br />
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Por um capricho da natureza, a vista da Baía de Piriápolis lá de cima do Cerro San Antonio lembra um coração. Digo o óbvio, mas isso acabou por cativar os turistas todos. As fotos que fiz, guardo todas. Ilusões não tenho muitas. A ciência progride rápido, mas o tempo também está passando rápido e estou perdendo progressivamente a coragem e a vontade de me arriscar ante as investidas destemidas da medicina, a não ser que tenha mais garantias do que suposições. Contudo, as fotos me esperarão sempre. Quem sabe eu também não termino cativada pela Baía de Piriápolis um dia desses... Hoje não vivo mais para poder ver um dia, mas essa também não é uma possibilidade que eu descarto por completo; que seja o que tiver que ser.<br />
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-71762756377843916652014-09-21T19:51:00.002-03:002014-09-21T22:08:40.772-03:00Recuerdos Del Paisito: Museo La Casa Del Gobierno20 de setembro, no Brasil, é o Dia do Gaúcho, por ser, primeiramente, o aniversário da Revolução Farroupilha (1835-1845), o mais longo conflito civil de nossa história, permeada que foi por tantos conflitos civis.<br />
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Ultimamente, tenho escrito bastante sobre o Uruguai. Uma das crônicas que planejei escrever a respeito daquele país tem como tema um museu que fui conhecer em Montevidéu, que dá destaque aos presidentes uruguaios, o primeiro deles que teve, por certo período de tempo, uma ligação estreita com o líder da nossa Revolução Farroupilha – Bento Gonçalves da Silva (1788-1847). Já que passamos, então, recentemente pelo Dia do Gaúcho, e já que também os uruguaios são gaúchos, assim como os argentinos, vamos a esta crônica um pouquinho antes do previsto.<br />
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Sempre que viajo, procuro privilegiar neste tempo o aspecto cultural. Assim, houve um dia em que decidimos sair para procurar em Montevidéu um programa cultural para fazer. A viagem quase chegava ao fim e ainda não havíamos conhecido a chuvinha gelada e o vento forte, tão típicos da cidade e tão propalados. Pois bem, justamente no dia em que decidimos sair a pé e sem capa nem sombrinha eles chegaram. A chuvinha gelada e um pouco apertada, tomei com prazer, recordando os tempos de infância, de férias em Pirassununga, em que eu reencontrava meu irmão e podíamos brincar juntos, na chuva, na casa da vó... Putz, como era bom brincar na chuva!!!<br />
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E foi debaixo daquela chuva trigelada que descobrimos o museu. Procurávamos pelo Teatro Solis, que ficava na mesma quadra. Dentro de uma loja havia uma uruguaia de olhos atentos, que nos viu e veio ao nosso encontro, tomando chuva também. Ela indicou o Teatro Solis e mostrou o prédio do museu, ali, diante de nós, sugerindo que fôssemos visitá-lo; fomos. Olharíamos o teatro de perto depois.<br />
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O Museo La Casa Del Gobierno era dedicado a todos os presidentes uruguaios. Nos foi possível ver retratos dos presidentes, quadros, medalhas, armas, coches, mobília, relógios, imagens reais e/ou fictícias do cotidiano dos uruguaios ao longo do tempo... Alguns presidentes tinham suas salas próprias; outros, talvez sobre os quais o museu tivesse menos itens, compartilhavam salas. Há um circuito que se pode fazer, começando pela sala do primeiro presidente, Fructuoso Rivera, e terminando pelos dias atuais. Um breve giro pela história do Uruguai em aproximadamente duas horas, com folga, olhando tudo sem pressa.<br />
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Dois dos presidentes que têm mais destaque no museu, que possuem suas salas próprias, são José Fructuoso Rivera (1784-1854) e Manuel Oribe (1792-1857), respectivamente primeiro e segundo presidentes da República Oriental do Uruguai. (Imaginem só, toquei, parte por parte, o coche oficial do presidente Rivera... Ah, a visita prometia...) Esta crônica pretende apresentá-los melhor, levando em conta a importância histórica que têm, de certa forma até os nossos dias, para a política do país. Explico-me.<br />
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A região onde fica o Uruguai foi alvo de disputas constantes. Antes da independência do país, portugueses e espanhóis a disputaram inúmeras vezes. Acontece que chegou um tempo em que a maior parte das próprias colônias portuguesas e espanholas se tornou independente. Depois da independência do Uruguai, declarada em 1830, essa região continuou a ser disputada, mas pela Confederação Argentina e o Império do Brasil, também já independentes, estando ora sob a influência de um desses países, ora sob a influência do outro.<br />
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Em 1836 a jovem República Oriental do Uruguai viu dois de seus governantes constitucionais se enfrentarem na batalha de Carpintería. Parte dos combatentes era liderada por seu primeiro presidente, Fructuoso Rivera, e usava braçadeiras vermelhas; a outra parte dos contendores era liderada por seu então presidente, Manuel Oribe (que havia sido ministro da guerra de Fructuoso Rivera), e usava braçadeiras brancas. Terminada a batalha com a vitória dos blancos, estabeleceram-se os partidos que, liderados respectivamente por Rivera e Oribe – seus fundadores -, bipolarizariam a política do país a partir de então: o Partido Colorado (liberal) e o Partido Blanco (conservador). Esse bipartidarismo só seria rompido depois da ditadura militar uruguaia, já no século XXI, com a eleição de Tabaré Vasquez, da coalisão denominada Frente Ampla, autorizada a existir legalmente com a redemocratização do país. Por isso Rivera e Oribe me parecem ter importância até os dias atuais na história política do Uruguai, visto que os partidos que fundaram ainda existem, com determinadas modificações.<br />
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Bom, e os gaúchos? O presidente Rivera (pró-Brasil), no poder novamente no Uruguai enquanto se desenrolava a Revolução Farroupilha, opta por auxiliar Bento Gonçalves, presidente da República Rio-Grandense e seu antigo inimigo político. Esse auxílio dura até 1843, Quando a chamada Guerra Grande, já em curso há quatro anos, é definitivamente transferida a Montevidéu, sitiando-se a cidade e acirrando-se de vez os enfrentamentos entre blancos e colorados, que só terminariam em 1851, com a vitória dos colorados e a ruína econômica completa do país.<br />
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O presidente Oribe (pró-Argentina)se rende às tropas brasileiras em 1851, com o fim da Guerra Grande – transformada em conflito internacional e só encerrada após muitas intervenções externas -, abandonando a vida política no ano seguinte, depois de tantos intensos combates com os colorados. Informações oficiosas me deram conta de que Manuel Oribe era bonitão e se parecia bastante com o nosso imperador Dom Pedro I, embora não tivesse o mesmo “olhar 43” do brasileiro. Hahahhaa Divertido...<br />
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Após visitar todos os outros presidentes uruguaios, deixamos o museu com a cabeça fervilhando de tanta história em um período tão curto de tempo. E quando estávamos na calçada fronteira ao Teatro Solis, o vento gelado de Montevidéu veio nos receber no auge de sua força. Lendo assim parece um exagero, mas a câmera fotográfica em punho, que mirava o teatro, teve de esperar. A força do vento exigia concentração e cuidado, para podermos permanecer nos mesmos lugares onde estávamos. A chuva caía ainda e o vento fustigava com ímpeto. Me preocupei, claro, mas ao mesmo tempo pensei que, presente de última hora, eu não deixaria Montevidéu sem conhecer a chuva e o vento tão afamados. Meu cabelo solto e comprido de brasileira desprevenida me espanava com força o rosto, voando descontrolado em todas as direções. Pensei: “Ah, depois eu enxugo, desembaraço, faço o que tiver de fazer; a cada momento o seu momento”.<br />
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-18003483195223420622014-09-18T16:03:00.003-03:002014-09-18T16:03:58.267-03:00Recuerdos Del Paisito: Los UruguayosA todo povo sempre são atribuídas algumas características, ora positivas ora negativas, que vão “desenhando” a imagem com a qual os estrangeiros acabam ficando sobre esse povo. Aos brasileiros, por exemplo, no lado positivo, graças a Deus, são atribuídas alegria, cordialidade, musicalidade... Quanto às nossas características negativas, como diria uma personagem de uma série de comédia da televisão, “Prefiro não comentar”. Não por falta do que dizer, mas porque este não seja o momento apropriado. Vamos deixar isso pra lá. Estou escrevendo esta crônica para falar, e bem, dos uruguaios; então, vamos a eles.<br />
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Logo que entramos neste ano, ganhei lááá de cima um presente. Um presente-pessoa a quem eu já conhecia, ainda que pouco, há bastante tempo, mas que entrou definitivamente na minha vida como professora de espanhol (uruguaia, vamos dizer para ir costurando direitinho as coisas aqui neste texto). Contudo, hoje, quando revisito este presente a cada semana, é a amiga a quem eu primeiro vejo. Depois, bem devagar, é que vou me lembrando que bem junto da amiga está a professora de espanhol. Antes de conhecer seu país, eu pensava que determinadas características que a faziam admirável aos meus olhos eram dela. Bom, é claro que são, mas depois de ter ido ao Uruguai, percebi que essas características que estreitaram os nossos laços de amizade são dela, porque já a acompanham há muito tempo, vindas de seu próprio povo. o que vou dizer, então, dos uruguaios, a partir daqui, se aplica a ela, inerentemente, porque estar no Uruguai é estar diante dela e vice-versa, numa harmonia perfeita. <br />
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Zelo atento – Estávamos lá, três turistas despreocupadas na Praça Cagancha, pleno centro de Montevidéu, tirando fotos; anoitecia. Uma moça perguntou se queríamos que ela tirasse uma foto das três; queríamos, claro. Ela fez a foto enquanto, com o outro olho, observava um rapaz que parecia estar sob o efeito de alguma droga. Nos devolveu as câmeras, olhou para o rapaz, olhou de volta para nós e aconselhou: “Guardem-nas bem; vocês sabem como são as drogas”. Quando terminamos de guardá-las ela se foi. Um uruguaio sairá de onde estiver, parará o que estiver fazendo para vir ao seu encontro se achar que há alguma boa orientação que ele possa lhe dar. Vivenciamos isso algumas vezes.<br />
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Sensibilidade - Quando estava na Casa Pueblo, em Punta Ballena, eu quis escolher um azulejo decorado com uma obra de Carlos Páez Vilaró. (Falo mais detidamente sobre a Casa Pueblo e sobre Vilaró outro dia). A vendedora dos azulejos notou minha indecisão, aproximou-se mais, eu percebia que me olhava com interesse genuíno. Hesitou um segundo, procurando palavras como quem vai fazer uma revelação, e disse, com cuidado: “Sabe, a lua está bonita; muito bonita, e é uma das figuras mais representativas na obra de Vilaró. Recorda um período muito intenso em que sua vida e sua produção artística se mesclaram profundamente”. Claro, ela se referia ao acidente em que o artista quase perdeu o filho nos Andes mas nunca deixou de procurá-lo, pois sentia que estava vivo, apesar do descrédito das autoridades que já se anunciava; acidente e procura que viraram livro de sua autoria: Entre Meu Filho E Eu, A Lua. Ela me deixou livre para escolher, mas havia me convencido e a lua de Vilaró veio morar no Brasil. Aliás, muitos vendedores brasileiros deveriam aprender com os uruguaios que as coisas não se empurram para os clientes; as coisas são vendidas, mas quem escolhe sempre precisa ser quem compra. Sempre fomos deixadas à vontade; recebíamos sugestões, detalhes, mas também sempre dávamos a palavra final, e essa palavra era respeitada em todas as ocasiões, fosse ela “sim” ou “não”. <br />
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Mas tive depois uma prova literalmente bonita de como são esse zelo atento e essa sensibilidade dos uruguaios. Me refiro a uma cena marcante que presenciei na feira a que fomos no Parque Rodó. Logo que chegamos tivemos a atenção atraída por um senhor que vendia artesanato em madeira. Nos detivemos diante de alguns porta-chaves: havia peixes, sóis, desenhos mais abstratos. Ele pegava cuidadosamente cada uma das peças, limpava-as detidamente com uma escovinha, retirando cada grão de poeira, como se estivesse acariciando delicadamente a alguém muito amado e a colocava no lugar correspondente, para passar à seguinte. Achei tão lindo aquele agir que o artesão tinha para com as suas peças... Perguntei se podia tocá-las e a resposta foi positiva, sorridente e imediata. Enquanto eu ia tocando ele me explicava, com naturalidade absoluta, que “recortava” todos os pedacinhos da madeira da maneira como queria e depois “armava” os desenhos. As explicações, calmas e nas quais tinha evidente prazer, eram as mesmas que daria a qualquer passante. O vendedor das peças de madeira me olhava sem aqueles enormes olhos interrogadores e perplexos que de tempos em tempos me acompanham aqui. Será possível perceber que muitas das experiências descritas neste texto se passaram por causa de um dedinho de prosa. Para os uruguaios, tranquilos como costumam ser, sempre há tempo para conversar, seja entre si, seja com os estrangeiros.<br />
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Aliás, no Uruguai ninguém me interrogou nada perplexamente com os olhos; eles apenas me olharam, constataram e seguiram em frente. Um dia, deixamos minha avó, cansada, no hotel e fomos procurar o jantar; procurar o jantar numa casa de chá. Eu queria saber o tamanho de um doce para levar para ela. A moça à minha frente imediatamente juntou os dedos das duas mãos, com total desembaraço, fez o desenho. Colocou-o debaixo das minhas mãos para que eu o tocasse, acompanhando-o com uma descrição do exterior, do recheio, da receita, de tudo, detalhes que eu nem precisei pedir. Levei o doce, claro, impressionada com a espontaneidade e prontidão dela. <br />
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Afetividade cálida – no hotel onde ficamos havia um recepcionista muito simpático: ele cumprimentava, abria a porta do elevador e assim a mantinha até que todas entrássemos, respondia as perguntas sempre com alguma informação complementar, não hesitava em ir pessoalmente ver o que acontecia se necessário, falava portunhol, comigo falava espanhol e não economizava no vocabulário, gostava de me testar; fazia o que podia por todos os hóspedes. Ele realmente se desdobrava; era notório que apreciava muito aquilo que fazia. Assim, sempre que chegávamos ou saíamos, a torcida era para encontrar o Edimundo no balcão.<br />
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Amabilidade solícita – Quando chegávamos a algum lugar e precisávamos descer do ônibus, Elisa, a guia turística, ou Luiz, o motorista, estavam sempre à porta para me estender a mão, indicando o fim dos degraus e a direção a ser tomada. Tudo feito como se fosse parte do cotidiano deles todos os dias. Na maior parte das vezes, quem estava era Elisa, que adicionalmente me conduzia à calçada com hagilidade e ficava comigo esperando até que minha avó e Carol chegassem. No segundo dia de viagem, quando chegamos, ela havia tido a delicadeza de nos guardar os acentos da frente. Percebi também que, no dia anterior, havia dois falantes de inglês, que ela pôs na fileira contígua à sua. Algumas vezes a notei olhando-os com atenção, como a certificar-se de que não tinham dúvidas e de que ela podia prosseguir.<br />
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Gentileza a toda prova – Sempre que fazíamos algum pedido, qualquer que fosse, as respostas recorrentes eram: “Sim”, “claro”, “por favor”... E quando agradecíamos por algo, a resposta mais recorrente não era “de nada”; era “não, por favor”!, como a salientar que não havia necessidade nenhuma de agradecer.<br />
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Sobriedade alegre – Na feira comprei uma echarpe. Bonita, mas mesclava tons de preto, cinza, marrom, para mim pouco habituais. Foi o único dia em que saí sem aquele acessório indispensável no ventinho frio da cidade. O vendedor a pôs sobre minha blusa rosa e disse que ficava muito bem; se mostrou encantado com o meu espanhol. Parecia que redobrava sua alegria por estar falando com uma brasileira em espanhol. “Os brasileiros estão acostumados a usar muitas cores. Gostamos disso, embora o comum para nós sejam as cores mais clássicas. Com esse seu rosa vai ficar muito bom”! E ficou mesmo.<br />
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E as crianças uruguaias, como são? Bom, essas são todas iguais, existem as quietinhas e as espoletas em qualquer lugar do mundo. Sentada no parque, eu ouvia de uma mãe que passava: “para, você já me falou isso duzentas vezes”! De outra eu escutava: “Dá a mão”! E uma terceira trouxe aos meus ouvidos um “Vem aqui”! exasperado. Aí, quando você começa a entender as broncas que as mães dão nos filhos, passa também a acreditar, mesmo, que o seu desempenho na língua estrangeira está ficando realmente bom!<br />
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Enfim, voltei, e não só eu, agradavelmente impressionada e de certa maneira marcada pela suavidade alegre dos uruguaios.<br />
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-49686853859819902542014-09-13T20:34:00.000-03:002014-09-13T20:34:10.431-03:00Recuerdos Del Paisito: La Música<br />
Assim que pus os pés no Uruguai pensei que escutaria muita música tradicional do país, mas isso não aconteceu tão imediatamente. Contudo, essa parte da conversa fica para uma crônica posterior. O que posso dizer é que, há uns dois anos mais ou menos, uma amiga pianista me disse: “Você precisa ir ao Uruguai, ouvir a musicalidade de lá e como é linda a predominância do piano em relação aos outros instrumentos, escutando tudo ser executado ali, na sua frente. É algo maravilhoso para nós, que tocamos”. Posteriormente, outros eventos foram se sucedendo e me encaminhando ao Uruguai, até que consegui concretizar isso. <br />
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Em busca, então, de conhecer a tão proclamada musicalidade uruguaia, fui a um espetáculo só para isso, em uma casa de shows muito bonita, El Milongón. A noite de música foi dividida em três blocos que, sucedendo-se de maneira bem definida, deram um panorama geral e de certo modo cronológico de como se formou e desenvolveu a musicalidade uruguaia, representados os seus momentos por grupos distintos de músicos e dançarinos, que traziam ao palco o que havia de melhor na manifestação musical específica a que se dedicavam. Vou descrever aqui cada um desses blocos, com um pouco do que ouvi, mas também, como não poderia deixar de ser, com algumas impressões próprias. Só advirto desde já que, para mim, fez falta no show a parte da milonga.<br />
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Iniciamos pelo componente folclórico, introduzidos à musicalidade gaúcha. Os gaúchos tocavam tambores, animicamente, recordando algo de influência indígena na musicalidade platina. Tocavam e dançavam, acompanhando com movimentos enérgicos, sincronizados, muito sonoros e bem ritmados de pés e palmas a cadência ancestral e bem marcada dos tambores. As coreografias mostravam, ora, as rivalidades entre os homens, provocando-se mutuamente, Ora ilustravam suas disputas pelas mulheres. <br />
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Em um segundo momento, ainda dentro da musicalidade gaúcha, o violão passou a entoar uma melodia melancólica, em tons menores, que para os meus ouvidos era uma guarânia ou algo parecido. Não sei dizer por que, mas desde que me conheço por gente, quando ouço os primeiros acordes lamentosos de alguma guarânia, me vem à mente algo de luar, de noite enluarada... Deve ser alguma lembrança infantil muito vaga, alguma história, um momento qualquer, que jamais vou identificar. A única coisa que sei é que, uma vez mais, essa lembrança veio me visitar, no Milongón.<br />
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Sucedendo-se à música gaúcha, foi chamado ao palco, com sua dramaticidade imponente, o señor Tango. Surgido a ambas as margens do Prata,em Rosário, Buenos Aires e Montevidéu, primeiramente foi ritmo restrito às zonas e cabarés, executado pelo violão e instrumentos de sopro. Incorporado o bandulión, de origem alemã, essa música dolente derivada da habanera cubana e do tango espanhol ganhou um toque de glamur, sem perder a sensualidade voluptuosa que primeiro a caracterizou.<br />
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Os tangos sempre me acompanharam. Meu avô me trouxe desde cedo essa influência, herdada de suas andanças platinas, quando montava máquinas. Foi emocionante demais ouvir aqueles tangos que ele cantarolava estalando os dedos e batendo os chinelos, cujos movimentos faziam tilintar a pulseira metálica do relógio, os tangos com os quais eu cresci, sendo tocados ali, no palco, a poucos passos de mim; ouvir o bandulión sendo aberto e fechado, enchendo-se e esvaziando-se o fole; ouvir ser libertada do piano aquela torrente de notas melodiosas, brilhantes e luzidias, enquanto os acordes, ora cheios, graves e possantes, ora suaves e discretos, esboçavam marcadamente dramas, saudades, amores, fracassos... E Elisa, a minha amiga pianista do começo desta crônica, tinha razão, em absoluto. O paraíso dos pianistas amantes do tango e da milonga, sem efeitos especiais, ali, na raça, é Montevidéu!<br />
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Para fechar a noite, uma manifestação musical uruguaia pouco conhecida dos brasileiros, o candombe. Manifestação originada como meio de comunicação, com a chegada dos escravos bantús ao Uruguai (da mesma região africana da qual foram trazidos escravos ao Brasil), o candombe é executado em conjunto por três tambores distintos: tambor chico, tambor repique e tambor piano, cada um com seu timbre particular, cuja junção, agrupadamente, se denomina cuerda. No Milongón assistimos à comparsa campeã do último carnaval uruguaio. O candombero que cantava, acompanhado pelos tamborileros e estimulando-os também a tocar, era parecidíssimo com o nosso Jair Rodrigues, em fisionomia, voz e expressões. As letras que cantava eram de uma jocosidade graciosa. Quando tocavam apenas os tambores, organizados em sua métrica nem sempre constante, recordavam algo dos tambores da Bahia. Quando passavam a ser acompanhados pelos acordes do piano, a musicalidade do candombe ganhava um toque caribenho.<br />
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E assim, nesse dia, consegui o que eu primeiro buscava: terminar a viagem me sentindo transbordante de Uruguai!<br />
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-32825744577653481812014-09-11T15:11:00.003-03:002014-09-11T15:11:23.680-03:00Recuerdos Del Paisito: La CulinariaPara definir em poucas palavras, no que diz respeito ao paladar, o Uruguai é um país onde, inegavelmente, se come bem; muito bem. Em se tratando dos pratos principais, a culinária uruguaia é composta predominantemente por receitas à base de carne de vaca, o que não surpreende, visto que o país tem 3,5 milhões de habitantes e cerca de 12 milhões de cabeças de gado. Contudo, cordeiro, frango e peixe também tèm lugar garantido, já que são por volta de 10 milhões as ovelhas e que o país, a Oeste, é banhado pelo Rio Uruguai, a Sudoeste está o estuário do Rio da Prata e a Sudeste o Oceano Atlântico. As batatas, principalmente fritas, também estão sempre presentes como acompanhamento, assim como as saladas. <br />
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O prato mais representativo da culinária do país é a parrillada, uma verdadeira tentação para os carnívoros de plantão: em uma grelha vertical com alguma inclinação, a parrilla, as carnes vão sendo assadas e esse processo pode ser observado. Normalmente estão presentes a carne, claro, o frango, a salsicha, a linguiça, a morcilla e também rins, que recebem o nome de chinchulín. O costume é que se consumam as carnes menos bem-passadas, mas isso pode ser conversado, bem como a troca de um item por um pouco mais de outro. No meu caso, troquei o chinchulín por mais carne; faltou coragem...<br />
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Algo que achei muito saboroso foi o chivito, um sanduíche que, em sua versão mais comum, leva pão de hambúrguer, carne, alface, tomate, queijo, ovo e maionese e vem acompanhado por uma porção de batatas fritas. Mas há outras versões com recheios variados. A maciez da carne é uma peculiaridade que poucas vezes vi aqui dessa forma. Me disseram que, pelo fato de o país ser predominantemente plano, o gado não precisa despender tanto esforço físico, estando, assim, mais relaxado, refletindo-se isso na textura da carne. Os brasileiros que me acompanhavam costumavam dizer que a sensação de cortar a carne no Uruguai era muito parecida com a sensação de cortar um pedaço de queijo. Para mim, que não sou carnívora por excelência e comi chivitos clássicos até não poder mais, a explicação faz todo o sentido. O sabor da carne uruguaia também é algo difícil de descrever, na melhor acepção da palavra. Creio que o chivito é um dos pratos dos quais mais vou sentir falta... Hummmm!!!<br />
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Ainda na seção sanduíches, o cachorro-quente, pancho no Uruguai, é bom também, embora menor e com menos ingredientes do que os que costumo ver aqui. Simples, mas classifico esse como um daqueles casos em que menos é mais: pão, salsicha, batata-palha, catchup, mostarda, maionese... Para mim, que pertenço à geração sanduíche-coca-cola, era algo impossível de perder.<br />
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Outro capítulo na culinária do Uruguai são as massas, sempre muito boas. Dada a grande presença de imigrantes no Uruguai desde o início de sua existência independente como país, creio, olhando os cardápios, que uma das maiores presenças imigrantes lá seja de italianos, porque é grande a quantidade e variedade de receitas de massa. Nem comento muito... Ai ai!!...<br />
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Uma curiosidade que segue uma tendência mundial depois das mais recentes descobertas científicas sobre os malefícios do sódio em excessso: está regulamentado por lei o não uso do sal, inclusive com campanhas publicitárias incentivando os uruguaios a diminuir ou cortar seu consumo. No entanto, os saleiros estão sempre à mesa, para suprir a falta que esse condimento faz a algumas pessoas.<br />
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Em se falando de bebidas, o mate, bebida por excelência dos gaúchos, ou melhor, dos gauchos, é consumido com a mesma espontaneidade e casualidade com que o cafezinho é consumido no Brasil. Estejam os uruguaios onde estiverem, façam o que fizerem, o mate os acompanha sempre. Nos mercados, é grande a profusão de marcas de erva-mate; muitas são as cuias, as bombas... De repente, você está passando por algum lugar na cidade e vê lá um quiosque onde se pode ferver a água, adquirir erva-mate, cuia, bomba, tudo o que seja necessário para que perdure sempre esse verdadeiro ritual de congraçamento entre o gaúcho e o mate. <br />
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E por falar em café... Bom, esse é um tópico difícil. Café no Uruguai é uma questão de sorte. Nos primeiros dias tive pouca; café aguado, fraco para o paladar brasileiro. Então comecei a estar mais atenta e descobri que, para tomar um bom café no Uruguai, é preciso ter o olfato sempre alerta. Se você chegar a um lugar e for recebido pelo aroma de café antes que qualquer pessoa note sua presença, então, vá em frente; satisfação garantida. Outra satisfação garantida naquele friozinho persistente é o chocolate quente; esse, imperdível em todos os lugares.<br />
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Uma bebida que merece destaque no Uruguai depois do mate é o vinho. Não sou o que se pode chamar de uma bebedora contumaz, mas assim mesmo creio estar fazendo uma boa indicação, não só pelo fato de que um dos passeios possíveis de ser feito é pela rota uruguaia do vinho, mas também por outro ponto curioso: em qualquer lugar onde houvesse um rádio ligado, um ouvinte atento poderia perceber a presença constante de propagandas de vinhos, de vinículas, de lugares que personalizam vinhos...O vinho que experimentei é o medio y medio, bebida típica uruguaia muito servida para acompanhar as carnes. Não sei como é feita a mistura, mas ela tem 50% de vinho e 50% de champanhe, uma combinação que resulta em um sabor particular, agradável ao paladar; por isso o nome da bebida: meio e meio. Muuuuuito bom!!! <br />
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E, por fim, os doces... Ah, os doces!... Difícil escolher qual é melhor do que o outro. Alfajores de todos os tipos: com doce-de-leite, com geleia, recobertos por chocolate ou não, com coco... Enfim, complicado saber qual o melhor. Muito gostosos também os suspiros, que aprendemos a conhecer como merengues, a mesma excelência valendo para o amendoim-doce. E os churros??? Essa é para quem cresceu assistindo ao Chaves: no quiosque, me senti como a turma do Chaves comendo churros: com chocolate (e não esse chocolate extremamente adocicado que temos aqui), com doce-de-leite e, acreditem se quiserem, mais comuns do que se imagina, sem recheio. Fiquei pasmada com a quantidade de pessoas que pedia churros sem recheio.<br />
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Deixei por último o croissant ou media luna, pelo fato de ela ser um dos pratos uruguaios presentes tanto entre as comidas salgadas como entre as sobremesas. Recheada com presunto e queijo, coberta por açúcar ou simplesmente sem recheio nem cobertura, era bastante comum ver alguém com uma media luna na mão, inclusive nós.<br />
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Ufa! Do que experimentamos, creio que não me esqueci de nada. Para quem estiver lendo, bom apetite!<br />
Anonymoushttp://www.blogger.com/profile/03802785044341450960noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-3584319556240107104.post-32456920585453936412014-09-08T02:52:00.001-03:002014-09-08T02:52:22.797-03:00Recuerdos Del Paisito: Las RamblasMontevidéu tem 25 quilômetros de orla, oito praias de água doce, sim, doce! Trata-se do estuário gelado do Rio da Prata. E quando digo gelado, falo de um gelado que não muitas vezes conhecemos aqui no Brasil quando vamos à praia. Durante toda a viagem ouvi muito sobre como são bonitos os prédios na orla, como ela é bem-cuidada, como é seguro estar lá etc. etc. etc.. Contudo, as recordações que guardo da praia em Montevidéu são bastante particulares.<br />
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Fazia um dia, ou melhor, uma tarde bonita quando chegamos, um pouco depois do almoço, aquele friozinho com sol que eu havia aprendido a conhecer no Uruguai. Terminei de descer a escada e pisei a areia, fofa! Sempre gostei de brincar na areia fofa da praia; comecei instantaneamente a recordar minha infância, de tantas idas à praia com a família, principalmente com os meus avós. Meu avô me punha numa área livre da praia e dizia: “Corre”! E eu corria, ia, voltava... Sabia que a partir do momento em que ele me dizia isso, nada iria me atrapalhar; todo o cuidado já havia sido tomado. Era uma sensação incrível de liberdade, de poder estar sozinha e andar sozinha, algo que na cidade eu raramente experimento.<br />
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Quando pisei a praia de areia fofa em Montevidéu, essa recordação imediatamente me veio à cabeça. O vento no rosto era semelhante, embora um pouco mais frio, espanando não com tanta gentileza os meus cabelos em todas as direções sem que eu me preocupasse, tudo como antes. Essas coisas todas eu pensei, mas não disse. Claro que também não corri, mas não resisti a dar umas belas patinadas na areia!...<br />
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Uma amiga me dizia enquanto andávamos: “Olha, uma duna! Duas! Três”! E eu ali, toda encapotada, de botas, pensando: “Que coisa mais chata a gente estar tão coberta da cabeça aos pés na praia"... Mas não havia outro jeito. Eu pensava nisso, já sabendo de antemão que não resistiria à vontade de pôr pelo menos a mão na água, que certamente estaria fria e na qual não havia ninguém, mas que eu não deixaria de experimentar.<br />
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Andamos em frente, pela areia fina, fofa, branca e luminosa, pensando que, se não havia sal, como ela podia brilhar tão intensamente daquele jeito?... Comecei a ouvir o barulho da água se aproximando e tive a certeza de que eu não me comportaria tão bem por muito mais tempo. O salto da bota tocou a areia que começava a ficar molhada e consistente e continuamos alguns poucos passos. Me abaixei, toquei o chão que a água apenas roçava e mal se fazia sentir mesclada à areia e percebi que aquilo, para mim, não seria suficiente. Deixei uma sacola com alguns objetos, dizendo à minha amiga que já voltava. Fingindo que não ouvia a censura nas palavras dela, caminhei sozinha mais alguns passos para dentro do Rio-Mar da Prata, não muitos.<br />
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Ali já havia um pouco mais de água. Me contentei, resignada, e abaixei, segurando com uma mão a bolsinha com alguns pertences pessoais e tocando a água com a outra. Uma onda veio e revolveu a areia, afundando os meus saltos e me desestabilizando um pouco. Ergui firme a bolsinha e pensei: “Bom, o máximo que pode acontecer é eu levar um tombo de frente nessa água gelada e voltar molhada pro hotel; ta valendo”! No entanto, nada aconteceu. A onda voltou ao mar e devolveu a areia ao lugar onde estava antes, libertando os meus pés. Me abaixei com mais interesse e segurança, tocando irremediavelmente a água e tive uma grata surpresa: uma conchinha.<br />
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Nossa, sempre me surpreendi com as conchas; agora eu tinha na mão uma conchinha de Montevidéu... Que máximo! Comecei a esperar que as ondas escuras, calmas e geladas trouxessem outras conchas e a lavar aquelas que recolhia, todas brancas ou quase brancas e todas pequenas, do mesmo tamanho.... Sempre a vastidão do mar me trouxe um sentimento de interrogação. Eu tocava a água que sentia densa e gelada, recolhia e lavava as conchinhas e percebia de novo aquele velho sentimento crescer, ouvindo o barulho manso das ondas.<br />
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Mas infelizmente era preciso ir. Me levantei, girei nos passos e comecei a fazer o caminho de volta, recolhendo, no entanto, conchinhas da areia, que batíamos e se limpavam facilmente, iguaizinhas às que vieram do mar. Creio que devo ter passado naquela praia cerca de meia hora. Porém, nunca pensei que em metade de uma hora coubessem tantas sensações, tantos sentimentos, enfim, tantas coisas. Mas quando sabemos que estamos em um lugar ao qual possivelmente só iremos uma única vez, tudo se potencializa e intensifica.<br />
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Subi as escadas para sair e foi como se o tempo, esquecido de passar, voltasse a correr. Os carros e pedestres, o som do espanhol tranquilo que ia e vinha como o mar me lembraram que a vida continuava lá fora. Então segui sem me voltar, me preparando para o novo, que certamente viria depois...<br />
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