“-Ai flores, ai flores do verde pino,/se sabedes novas do meu amigo!/Ai Deus, e u é”? (D. Dinis).
Eu ainda não tinha feito quinze anos e já começava, em 1997, mais um ano letivo no Colégio São José, o primeiro do Ensino Médio. Na véspera do início das aulas minha avó foi à reunião com o coordenador da classe, o professor Marcos, de português. Ele deu várias orientações sobre como a escola seria, o que podíamos, o que não deveríamos etc. e depois disse aos pais que, naquele ano, leríamos oito grandes clássicos da literatura luso-brasileira para a matéria dele; passou a lista. Eu já havia decidido cursar Letras na faculdade, mas ainda assim fiquei ressabiada com a novidade: será que eu daria conta?
A resposta foi “sim”. O tempo foi passando, o professor era, ou ao menos parecia enérgico, mas fui dando conta da literatura e da gramática. Até que chegou o dia da primeira prova. Ele a aplicou em separado para mim e para os demais, visto que, como eu não enxergava, quis que minha primeira prova fosse oral, na certa para medir o quanto eu sabia; e eu sabia bastante, mas o nervosismo das perguntas a serem respondidas no ato me deixou com 8,25. No entanto, foi bom, porque vencida essa resistência, Marcos conseguiu ver em mim a aluna promissora que eu tinha potencial para ser em suas matérias. Minhas notas não eram tão altas quanto eu gostaria – ele era minuciosíssimo nas correções – mas eram sempre boas.
Os meses foram se passando e ele havia se tornado um dos meus professores mais chegados, das minhas duas matérias preferidas. Meu aniversário de quinze anos caiu em um dia de aula sua. Vanessa, uma de minhas amigas já naquele tempo, foi pedir-lhe que cantassem os parabéns naquele momento, em que ele estava presente; tive uma grata surpresa, um momento de felicidade suprema. Era como se, enquanto a menina dava lugar à mulher que começava a surgir, a literatura fosse me adubando...
Às vezes, enquanto ele viajava pela literatura sem nada nas mãos, em largas passadas pela sala, como era de seu costume, sorriso largo estampado no rosto, e percebia que parecia não haver ninguém prestando atenção ao que dizia, vinha-se achegando e logo eu sentia aproximar-se o perfume que ele então usava. Naquela fileira havia quatro pares de ouvidos sempre atentos: os da Vanessa, os da Taís, os da Karina e os meus, e ele sabia disso: sentava-se na pontinha da minha mesa, virava-se de perfil para nós e continuava excursionando pela literatura, e nós o acompanhávamos. Eu já deixava, a cada aula sua, aquele lugarzinho guardado para quando ele quisesse se achegar...
Gostava de ser chamado de mestre e bem merecia sê-lo. Me recordo agora quantas e quantas vezes, eu tão menina, me chamou de “minha cara discípula”, com aquela sua formalidade tão característica! Hoje, mais do que antes, dimensiono a honra que era para mim receber dele esse epíteto. Pensando agora me vem à cabeça a singeleza com que declamava as cantigas medievais de amigo; a melancolia apaixonada com que recitava as cantigas de amor; a maneira como os personagens dos autos de Gil Vicente adquiriam vida com suas palavras; a sanha lutadora que punha nos versos dos Lusíadas de Camões; a jocosidade mordaz que emprestava aos versos de Bocage; a sacralidade sublime com que dizia os sonetos de Gregório de Matos, mesmo sendo ateu; o lirismo idílico que os versos árcades tinham nos seus lábios. A literatura se apoderava dele, ele era um templo das palavras que se tornaram arte ao longo dos séculos.
As aulas cessaram naquele ano mesmo, mas sempre mantivemos o contato. Ao fim do Ensino Médio a despedida foi difícil. Eu sentia, enquanto o estreitava timidamente naquele último dia, naqueles tempos em que a Internet ainda não havia, que perdia o mestre e o amigo. Mas não foi assim. Primeiro o telefone impediu isso, depois o e-mail e por fim o facebook. Ainda que virtualmente eu tinha aquela presença de volta, mais a do amigo agora do que a do mestre. Passaram-se os anos e a amizade se estreitava mais. Fiz Letras e ele ficou contente; fiz o Mestrado e ele estava lá na minha banca de defesa. Recusou-se a falar; disse que a emoção era tão violenta que não lhe permitiria expressar-se com palavras. Posteriormente me escreveu que eu era uma das alunas que mais lhe dava orgulho, porque academicamente o havia superado, havia chegado ao Mestrado, que ele não tinha feito. Porém, jamais senti que o superava; para mim ele era e continuaria, continuará sendo sempre o meu mestre, meu caro e querido mestre.
Quis o destino que eu não estivesse em Limeira quando recebi a mais temível das notícias: disseram-me que ele havia partido voluntariamente para uma das barcas de Gil Vicente. Fora por vontade própria para o lado de Dante, de Virgílio, de Camões...
Jamais esperei viver para escrever esta crônica do adeus a um dos meus mais profundos iniciadores naquela que se tornaria a vocação de minha vida: as letras; esta crônica que ele nunca poderá ler. E como gostava de ler as minhas crônicas!... Dizia que eu escrevia de forma lírica. É com o coração sinceramente dilacerado que faço essas profundas rememorações.
Marcos, meu caro mestre, meu querido amigo: que você finalmente tenha encontrado a paz que procurava; que cessem por completo os seus tormentos; que você tenha, muito mais do que o descanso do corpo, o refrigério da alma! E não se esqueça de que o que combinamos continua de pé: um dia nos vemos, felizes, na Barca da Glória!
“Ó Capitão! meu Capitão! Finda é a temível jornada,/Vencida cada tormenta, a busca foi laureada./O porto é ali, os sinos ouvi, exulta o povo inteiro,/Com o olhar na quilha estanque do vaso ousado e austero./Mas ó coração, coração!/O sangue mancha o navio,/No convés, meu Capitão/Vai caído, morto e frio.//Ó Capitão! meu Capitão! Ergue-te ao dobre dos sinos;/Por ti se agita o pendão e os clarins tocam teus hinos./Por ti buquês, guirlandas... Multidões as praias lotam,/Teu nome é o que elas clamam; para ti os olhos voltam,/Capitão, querido pai,/Dormes no braço macio.../É meu sonho que ao convés/Vais caído, morto e frio.//Ah! meu Capitão não fala, foi do lábio o sopro expulso,/Meu calor meu pai não sente, já não tem vontade ou pulso./Da nau ancorada e ilesa, a jornada é concluída./E lá vem ela em triunfo da viagem antes temida./Povo, exulta! Sino, dobra!/Mas meu passo é tão sombrio.../No convés meu Capitão/Vai caído, morto e frio”. (Walt Whitman).