domingo, 13 de setembro de 2015

O Submundo Da Torre Eifel

Diante de toda a desumana indignidade com a qual venho percebendo que estão sendo tratados os refugiados, predominantemente sírios, em sua busca desesperada por uma vida melhor no Velho Continente – que, com poucas ressalvas, parece querer ignorar sumariamente as dívidas históricas que um dia contraiu sem perguntar com quem -, republico hoje (13/09/15) esta crônica que escrevi faz alguns anos, quando pela primeira vez tive contato, ainda que superficial, com o drama dos refugiados que buscam a Europa. Reflitamos um pouco mais.

Nas últimas semanas, enlevada ainda por tudo de lindo que vi durante o tempo em que estive na Europa até mais ou menos quinze dias atrás, tenho escrito crônicas contando episódios que, literalmente, me maravilharam.

Porém, contrariamente àquilo que muitas vezes se imagina, vi, no Velho Continente, tão velho quanto a América que nós mesmos desconhecemos, muitos problemas que, a julgar pela imagem que se tem dos países mais abastados, seriam, erroneamente, problemas exclusivos dos países a que se denomina “em desenvolvimento”.

Quando eu ainda cursava o Ensino Médio, há nem tantos anos assim, a União Européia começava a dar fortes mostras de consolidação, que se expandiram com o passar do tempo. O que ouvíamos e líamos então era que, depois de um período de adaptação difícil dos países mais pobres do bloco às novas condições de integração econômica e social, haveria um equilíbrio bastante satisfatório. Porém, não foi isso o que constatei, passado mais ou menos um decênio, na maioria dos países que visitei: Portugal, a Espanha, a França e a Itália me puseram problemas bem brasileiros diante dos olhos – dois países mais pobres e dois mais abastados: mendicância, desemprego, venda de mercadorias piratas, salários-mínimos insuficientes, acampamentos miseráveis onde imigrantes ciganos levam vidas muito similares aquelas que costumamos ver retratadas nas nossas praças, viadutos e jornais. A diferença é que o uso de armas, brancas ou de fogo, ainda não acompanha as ações e reações desses deserdados do desenvolvimento; seu trunfo é a hagilidade coletiva, principalmente das crianças menores de idade, que, como aqui, serão presas por pouco tempo e logo estarão novamente nas ruas praticando o delito – único trabalho que conhecem. Não estou sendo sentimental, ao contrário do que se possa pensar. Segundo os nossos guias, elas chamam mesmo isso de trabalho, assim como os ciganos em geral, e este é sim o único “trabalho” que lhes cabe, e que nós, turistas e guias turísticos, tentamos evitar que ocorra a todo custo, afinal de contas, ninguém em sã consciência vai deixar-se roubar, não é?

Espanhóis e portugueses me atestaram com igual lamento as desastrosas conseqüências da adoção do Euro nessas realidades econômicas. Lá, como aqui, todos esses fragmentos cotidianos e depoimentos penalizam. Mas o episódio que me leva a escrever esta crônica foi um episódio que vivi na opulência iluminada da Torre Eifel.

O que mais chamava a atenção dos turistas que podiam olhar era como aquela construção é majestosa, grandiosa, como grandicíssima parte dos monumentos na França. O jogo de luzes que à noite torna a torre dourada, camuflando sua verdadeira coloração marrom diurna, parecia hipnotizà-los. Mas para mim, que via de outra maneira e achava tudo aquilo muito monótono, o que atraiu minha atenção foi a realidade circundante: imigrantes africanos, bastante altos, numerosos e extremamente simpáticos nos cercavam, apresentando mercadorias ilegais, que gerariam multas altíssimas, para eles e para nós, se a polícia aparecesse. Já havíamos sido alertados da presença deles e das potenciais conseqüências dessas compras se houvesse flagrante, mas chegar e estar de repente no meio deles nos faz sentir na 25 de Março. Os franceses, de modo geral, comunicam-se apenas em francês, falando inglês bem poucas vezes e nem sempre com fisionomias receptivas, ao menos pelo que presenciei; aqueles imigrantes, pelo contrário, falavam uma espécie de espanhol misturada com português, arranhada com os “erres” pronunciadíssimos do francês. Conheciam Pelé, o presidente Lula, sorriam e queriam nos fazer sentir em casa. E falariam outras línguas, se outros fossem os turistas a chegar para ver a torre e os outros monumentos. A presença deles era recorrente. Precisavam desesperadamente vender, mas nos tratavam com tanta hospitalidade para issso... Quem sabe, a hospitalidade que eles mesmos não receberam do país que os colonizou. Vejam-se as expulsões de ciganos da Romênia e Bulgária, acampados em território francês, que temos acompanhado há mais de um mês, e cujos acampamentos eu mesma vi à entrada de Paris, isso para não mencionar a proibição de símbolos religiosos em lugares públicos.

Não escrevo como quem se acha dona da verdade, só relato o que vi. Mas a única imagem que temos aqui antes de chegar a Paris é a de cidade-luz. E aqueles que regressam nunca falam sobre a França que se esconde nos porões da própria França; nunca contam sobre a Europa que se esconde nos porões da própria Europa.

Ter podido estar naqueles países foi a realização de um sonho acalentado há muito tempo. Para quem respira literatura, como eu, é indescritível poder estar no lugar a que se convencionou chamar de “o berço da Civilização Ocidental”. Mas hoje, gostaria de dividir com vocês esse outro lado. Não estou querendo dizer que não se deva ir a Europa. Eu mesma, se pudesse, voltaria, ainda há tantas coisas que não pude ver... Só gostaria de convidá-los a visitar a Europa, ou observar a Europa, lembrando que esta moeda também tem dois lados. Enfim, só queria dizer que viajar pela Europa e por dentro doBrasil são igualmente passíveis de revelar sublimidades que jamais imaginamos e indignidades das quais nem desconfiamos. Ou seja, em nenhum dos dois lados há unanimidades absolutas. Baudelaire costumava dizer que o homem contemporâneo precisaria aprender a “abrir alas à beleza da feiúra”. Depois dessa viagem, terminei de constatar que ainda precisamos ir um pouco além e abrir alas também à feiúra da beleza.


Limeira, quarta-feira, 29 de setembro de 2010.

[Texto publicado originalmente no blog jornalistas.blog.br, em 01/10/2010].

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Através Das Janelas Do Mundo



Desde criança sempre tive, por natureza, um carinho todo especial pelos estrangeiros. Logo que os ouvia falar línguas distintas da minha, eu já tinha a atenção atraída para eles, fossem de onde fossem, fosse qual fosse o idioma que falassem. Ouvi-los contar os costumes de seus países, suas recordações, suas experiências de vida sempre foi para mim motivo de júbilo atento; sempre foi para mim oportunidade escancarada de aprender alguma coisa nova. Toda vez que ouço um estrangeiro falar é como se, de par em par, devagarinho, ele me fosse abrindo uma janela do mundo...

Comecei a me dar conta desse fascínio quando, com uns dez anos, estudava em uma escola que recebeu três crianças que viviam em um circo que tinha chegado à nossa cidade; três brasileirinhos, mas que sabiam falar espanhol. Tinham dificuldades em várias disciplinas, acho que em grande medida devidas ao fato de passarem uma semana, dez dias em uma escola e logo já precisarem levantar acampamento e partir de novo. Mas falavam espanhol, principalmente o menino: baixinho, franzino, dono de uma vozinha aguda com sotaque de paulistano da Mooca, mas falava espanhol... Me recordo que a professora nos deixou fazer-lhes perguntas, todas as que quiséssemos e que eles quisessem responder, e eu só queria saber em que momento o Luís Antônio falaria alguma coisa em espanhol; esse era o nome dele. E acabou falando mesmo.

Depois disso eu tive amigos estrangeiros, professores estrangeiros, inclusive alguns desses mestres se tornaram grandes amigos. O marido da professora brasileira de italiano contava, alegre, como era a infância fria mas saudosa em Trento; meu professor bavarês de alemão contava, aterrado, do medo imenso que tinha do papai-noel; o professor chileno de espanhol descrevia, pensativo, as paisagens dos Andes; o professor britânico de inglês relatava, satisfeito, a rigidez benéfica das escolas de sua infância; a professora irlandesa de inglês dizia, irritada, como detestava as aulas de sapateado irlandês que a mãe a obrigava a fazer; a professora uruguaia de espanhol ainda hoje me fala, com ternura, das brincadeiras na escola e no casarão antigo da avó. Isso para ficar apenas no tema infância.

Além do mais, acho que viajar é o maior e melhor investimento que uma pessoa pode fazer em toda sua vida. Ficar impregnado do chão, dos ruídos, dos cheiros, das vozes, da aura de outros lugares do mundo que não o país onde a gente nasceu é uma dádiva que não tem preço e que não nos pode ser tirada jamais.

Tudo isso para encontrar um meio de dizer que hoje estou dilacerada. Dilacerada pela impotência. Dilacerada pela imagem do mmenino sírio de três anos morto afogado, com o rosto sufocado sobre a areia de uma praia na Turquia, que correu mundo nessses últimos dois dias. Dilacerada por pensar nesse pai que, torturado em Kobane pelo Isis, que não é estado e jamais soube o que é ser islâmico, tentou fugir com a família para o Canadá, para ficar junto do irmão, e teve o pedido de asilo negado; esse pai que pagou por duas vezes quantias absurdas para fazer com os atravessadores desumanos e inescrupulosos que traficam pessoas essa infausta rota do Mediterrâneo e foi boicotado; esse pai que conseguiu viajar com a mulher e dois filhos pequenos, finalmente, mas que viu sua vida despedaçada quando o atravessador pulou do barco na Turquia e os abandonou à própria sorte, ou antes, à própria falta de sorte. O barco virou; a mulher e os filhos lhe escaparam por entre os dedos a pouco mais de quarenta quilômetros da fronteira com a Grécia; apenas ele sobreviveu. Sobreviveu ao Isis para ter a família fria e grosseiramente abalroada por esses verdadeiros cemitérios submarinos que estão se tornando o Mediterrâneo, o Egeu, apenas duas das tantas rotas pelas quais esses imigrantes tentam desesperadamente escapulir à procura de um pouco de paz... Sírios, afegãos, etíopes, eritreus, haitianos, bolivianos e tantos outros para os quais o mundo parece não se importar em fechar os olhos. Agora o Canadá oferece a este pai abrigo; agora que seu único desejo é voltar à torturada e torturante Síria, para enterrar a própria família. E essa é apenas uma das grandes tragédias humanas do nosso tempo que chegam ao nosso conhecimento.

Pode parecer exagero, mas escrevo para não explodir, para não sufocar em aflição. O que estamos fazendo? Sim, estamos, os que estão perto e os que estão longe desse êxodo forçado, porque calar e omitir-se também é compactuar, também é ser cúmplice. Estamos multando, pondo grades nas janelas de trens, proibindo-os de circular, fazendo devoluções como se de mercadoria indesejada se tratasse, expremendo gente sobre gente em caminhões, vans, porões de barcos, até à literal asfixia; estamos construindo muros e cercas, estamos nos escondendo atrás da desculpa do “roubo” dos empregos... Ah, também tem aquela da ameaça islâmica à tradição cristã... Ora, façam-me o favor! Será que é tão difícil lembrar que somos todos humanos, de carne, osso e sangue? Que todos sentimos, que todos desejamos, que todos buscamos, que cada um de nós recebeu, do Deus em que acredita, se é que acredita, o privilégio de existir?

Pelo amor de Deus! Se cada estrangeiro é uma janela do mundo que se abre, o que estamos fazendo? Estilhaçando a pedradas inclementes uma por uma dessas janelas todas? Quando encontrei os primeiros refugiados africanos de que tive conhecimento, certa vez, em uma excursão, quando os vi vendendo lembranças na informalidade e correndo com as mercadorias às costas e a polícia em seus calcanhares, não pude e nem soube supor que eram apenas o começo dessa onda insana de indignidade que assola o mundo. Tantas coisas eu espreitei por aquelas janelinhas do mundo que eram esses negros altos, com jeitão todos de maratonistas quenianos, que muitas vezes me trataram melhor do que os moradores “originais” que conheci em alguns lugares... Espreitei tantas coisas, pensei que tinha visto tanto e vi em realidade tão pouco.

Já faz tempo que essa indiferença com a vida vem me incomodando, dia a dia, na tv, redes sociais etc., mas hoje esse incômodo beira as raias do desespero. Há pouco vi uma jornalista conclamando que cada um, onde estivesse, dentro de sua profissão, fizesse o que pudesse para pressionar o mundo por atitudes mais humanas e mais efetivas. Minha profissão são as palavras; minha vida são as palavras! Brasileiras e estrangeiras; todas as palavras. Então, humildemente, escrevo.

Escrevo e aproveito para agradecer: seu Lívio (in memoriam), Alejandro, Jose, Manuel, Paco, Pedro, Mario, Lucas, Luis, aos Antonios, Jesús, às Carmens que já conheci, Fernando, Liliana, Paloma, Monika, Axel, Steve, Emma, Veit, Elisa, Alicia, Reyes, Helena, Alexandra, Cristina, Raul, Beatriz, Sara, Ruben, Susana, Ana, Javier, Enrico... A todos vocês e a todos os estrangeiros, nomeados ou não aqui, que me abriram e abrirão um dia as janelas do mundo, porque jamais me cansarei de espreitar entre elas, obrigada por tudo, obrigada por tanto! Obrigada por me terem ensinado, acima de tudo, a ser mais gente!... Jamais os esquecerei por isso.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Dica De Leitura: O Romance De Tristão E Isolda

“Senhores, os bons trovadores de antanho, Béroul e Thomas, e monsenhor Eilhart e mestre Gottfried, narram este conto para todos os que amam, não
para os outros. Transmitem-vos por meu intermédio sua saudação. Cumprimentam os que são sonhadores e os que são felizes, os descontentes e os apaixonados,
os que estão alegres e os que estão perturbados, todos os amantes. Que possam encontrar aqui consolo contra a inconstância, contra a injustiça, contra
o despeito, contra a aflição, contra todos os males de amor”! (J. Bédier).


Contada e recontada muitas vezes, a lenda medieval do romance entre sir Tristão de Loonois e Isolda, a Loura, princesa irlandesa que viria a ser a rainha das Cornualhas – onde se passa a história -, tem seus primeiros registros poéticos escritos datados no século X, por vários trovadores anglo-franceses, sendo efetivamente desconhecida sua real autoria. Nessa época as línguas vernáculas europeias estavam em formação, vigorando os chamados romances, e as fronteiras entre os países ainda não estavam bem definidas, sendo muito comuns as guerras ensejadas por disputas territoriais entre os então vários reinados existentes.

A versão ora em questão foi composta pelo escritor, filólogo e estudioso da literatura francesa medieval Joseph Bédier (1864-1938), editada no Brasil pela Martins Fontes. A atmosfera medieval é mantida e mostrada de maneira relevante, a cada momento revelando os matizes das cantigas de amigo, que primeiro devem tê-la registrado, os cavaleiros com suas lorigas, elmos, lanças, espadas, clavas e flechas e as damas com seus vestidos finos e ricamente bordados e adornados de pedrarias são presença constante. Os servos, mensageiros e traidores fazem, também, por sua vez, a história desenrolar-se.

Ainda jovem, o cavaleiro Tristão é raptado por mercadores irlandeses e deixado nas praias das Cornualhas, terras do rei Marc, seu tio; no entanto, por bastante tempo, ambos desconhecem esse parentesco, embora se queiram com ternura infinita desde o primeiro momento em que se encontram. Certo dia chega o gigante Morholt, da Irlanda, para cobrar impostos ao rei Marc. Esse pagamento consistia em que lhe fossem entregues jovens do reino, a não ser que alguém o vencesse em combate. Todos os barões de Marc regeitam o combate, a não ser Tristão, que derrota o gigante, mas fica mortalmente ferido e pede ao tio que o deixe morrer ao mar, em uma nau sem velas, acompanhado apenas por sua harpa, segundo o costume antigo que se pode já depreender da leitura do épico anônimo Bewolf. Milagrosamente, o mar o conduz às terras irlandesas. Detentoras dos antigos conhecimentos celtas sobre magia e poções, perfeitamente familiares àqueles que sejam leitores vorazes das proezas ocorridas no universo mágico e místico de Avalon, Isolda, a loura, e a rainha, sua mãe, curam Tristão dos ferimentos e ele volta para o tio sem ser reconhecido como o assassino do Morholt.

O rei Marc deseja deixar todo seu reinado ao sobrinho. No entanto, quatro barões traidores, que se encarregarão de tecer intrigas durante o transcurso de todo o enredo, o induzem a casar-se. Marc, então, os informa de que se casará apenas com a dona do fio de cabelo de ouro que os pássaros lhe trouxeram. Lembrando-se de Isolda, a loura, Tristão, arriscando-se a ser reconhecido e morto, regressa à Irlanda para buscá-la, a fim de que se case com o rei. Porém, o destino os atraiçoa. A mãe de Isolda entrega a sua serva e companheira, Brangien, a fiel, um filtro que deve ser servido apenas a Isolda e ao rei Marc, na noite de núpcias, para que o bebam juntos, pois os que dele se servirem haverão de amar-se com todos os sentidos e pensamentos, na vida e na morte. Por engano, Isolda e Tristão o bebem juntos para aplacar o calor e, a partir desse momento, passam a amar-se com todos os seus sentidos e pensamentos e se entregam um ao outro desesperadamente, até o fim da viagem.

Chegados às Cornualhas, Isolda casa-se com o rei Marc, tornando-se a rainha de seu país, mas os amantes não podem deixar-se, até que são flagrados por ele que, amando Isolda verdadeiramente e ferido pela deslealdade das duas pessoas a quem mais queria no mundo, decide matá-los sem julgamento, na fogueira, embora Tristão jure jamais ter amado Isolda com amor culpável e vice-versa. Tristão consegue fugir e é salvo por Deus. Tomado pela cólera, Marc considera que a morte rápida é pouco para punir Isolda e decide entregá-la a seus leprosos, para que seja de todos eles. Ao ver a turba que a conduz, Tristão consegue matar seu captor, reaver a rainha e fugir com ela para a floresta densa, onde se escondem e se amam por muito tempo... Um amor, uma cabana...

Descobertos pelo rei, seu precioso sobrinho e a amada de seu coração são perdoados. Tristão entrega-lhe Isolda e parte, levando seu anel de jaspe verde e deixando-lhe seu leal cão, Husdent.

Forçada pelos barões, Isolda deve fazer o juramento do ferro em brasa e manda mensagem a Tristão para que venha em seu socorro vestido de peregrino. Chegados à charneca branca onde o juramento aconteceria, Isolda ordena que o peregrino miserável à margem do rio venha buscá-la e a tome nos braços, para chegar ao outro lado sem enlamear-se. Tristão a obedece. Então, diante dos reis Marc e Arthur, Isolda jura que nenhum homem jamais a teve nos braços, a não ser seu marido, Marc, e o peregrino miserável estendido na areia diante de todos os presentes. Proferindo esse juramento, toma o ferro em brasa e permanece com as mãos ilesas depois de soltá-lo. Os barões se convencem de sua inocência e Tristão parte para a Bretanha.

Lá chegando, vence uma guerra que já durava anos e recebe como recompensa a mão da filha do rei, Isolda, das brancas mãos. Julgando-se esquecido por Isolda, a loura, aceita o casamento, mas é incapaz de consumá-lo, uma vez que não consegue deixar de pensar na amada. Torturado, volta às Cornualhas e, encoberto por variados estratagemas, consegue rever Isolda, a loura, e amá-la pela última vez. Regressando à Bretanha, é ferido mortalmente em combate. Ao saber disso, Isolda, a loura, foge pelos mares para revê-lo e curá-lo. Contudo, consumida pela vingança, Isolda, das brancas mãos, diz a Tristão que a nau que retorna tem uma vela negra enfunada. Esse era o sinal combinado caso Isolda, a loura, não concordasse em vir vê-lo. Fulminado pelo desgosto, Tristão expira. Ao chegar e vê-lo morto, Isolda, a loura, cola-se a ele, e morre também, enquanto Isolda, das brancas mãos, se consome em agonia pelo mal que causara. Ao saber da desventura dos amantes, o rei Marc vai buscar seus corpos e os enterra separados por uma capela. No entanto, à noite, cresce do túmulo de Tristão um espinheiro verde que sobe pela igrejinha até descansar no túmulo de Isolda, a loura. Por três vezes é cortado e por três vezes renasce, cresce e volta para o regaço da rainha. Ao ter conhecimento disso, o rei Marc ordena que os amantes sejam deixados em paz.

O romance de Tristão e Isolda foi a fonte em que beberam vários autores e contadores de outras histórias de amor e morte, como Romeu e Julieta, de Shakespeare e a história real de Pedro, rei de Portugal e de Inês de Castro, coroada sua rainha depois de morta, perpetuada nos Lusíadas, de Camões. Muito mais do que o amor e a morte, os grandes dons que nos oferece o romance de Tristão e Isolda são a perseverança e a fé.

Dica De Leitura: Fábulas Italianas

traiçoeiro, algo perfeitamente compreensível, visto que, no tempo em que presumidamente se passaram as fábulas, a Europa se encontrava sob o domínio do Império Turco Otomano. Outro mister a que se prestam algumas dessas fábulas é a explicação pelo mito, como já faziam os antigos gregos.

Algo importante ainda a ser destacado são os componentes sagrado e profano, inerentes ao ser-italiano. Da mesma forma como estão presentes nessas fábulas elementos pagãos encontráveis de Norte a Sul da Europa, como fadas, bruxas, monstros, gigantes e ogros, o componente cristão também tem lugar na constituição da identidade italiana, de maneira simultânea, como já era de se esperar: na terra do Papa nasceram fábulas com personagens como Jesus, Maria, São João e São Pedro, tendo este último um lugar especial nas historietas: ora Pedro é irritadiço e gabola, ora dá demonstrações incontestes de fé.

A obra é recomendável principalmente aos leitores adultos que ainda sabem onde encontrar a criança que habita a cada um de nós.

quinta-feira, 12 de março de 2015

Esmeralda

“Caminos

De la ciudad moruna/tras las murallas viejas,/yo contemplo la tarde silenciosa/a solas con mi sombra y con mi pena./El río va corriendo/entre sombrías huertas/y grises olivares,/por los alegres campos de Baeza./Tienen la vides pámpanos dorados/sobre las rojas cepas./Guadalquivir, como un alfanje roto/y disperso,/reluce y espejea./Lejos, los montes duermen/envueltos en la niebla,/niebla de otoño, maternal; descansan las rudas moles de su ser de piedra/en ésta tibia tarde de Noviembre,/tarde piadosa, cárdena y violenta/El viento ha sacudido/los mustios olmos de la carretera,/levantando en rosados torbellinos/el polvo de la tierra./La luna está subiendo/amoratada, jadeante y llena./Los caminitos blancos/se cruzan y se alejan,/buscando los dispersos caseríos/del valle de la sierra./Caminos de los campos.../¡Ay, ya no puedo caminar con ella”! (Antonio Machado).


Desde bem pequena me lembro muito claramente de uma bonequinha trajada à espanhola, que meu avô havia trazido de viagem de algum lugar para minha mãe muitos anos antes e que sobrevivera até chegar às minhas mãos. Ela sempre me chamava a atenção: usava um vestido longo, de tecido grosso – mas não grosseiro -, pregueado, que era diferente dos vestidos de noiva, os únicos vestidos longos que eu conhecia então. Aquele era um vestido rodado e longo, com babados, mas cuja cor eu não saberia dizer, um detalhe para mim desimportante. A cabeça coberta pelo véu, brincos de pérolas nas orelhas, clássicos e ocidentais e, em contraste, uns olhos de cílios grandes que se moviam para cima e para baixo, conforme a boneca era manejada; provavelmente escuros. Só bem mais tarde descobri que aqueles olhos de cílios grandes eram os famosos olhos mouros, mouriscos ou árabes, de profunda perspicácia e mistério por trás dos tantos lenços e véus advindos do Oriente... E um rostinho delicado, perfeito, simétrico. Uma boneca em tudo distinta das tantas outras que eu tinha. Os sapatos, porém, se haviam perdido no tempo; já me lembro dela assim, descalça. Eu a tateava incansavelmente, mesmo sabendo que já conhecia cada detalhe. A cada dia de brincadeira aproveitava para revisitá-la um pouquinho; quem sabe não haveria ainda algo no traje da espanhola que eu não tinha notado antes... Quando perguntei o porquê de todo aquele estilo, digamos, exótico, minha bisavó respondeu simplesmente:

- É uma espanhola, fia!

Essa resposta não me aclarou nada, porém guardei-a. Foi o primeiro contato que me lembro de ter tido com a Espanha e os espanhóis. Aquela boneca, ostentando com arrojo e graça o vestido longo e rodado, as pérolas, os cílios grandes, o véu nos cabelos, tinha toda minha reverência; sempre pressenti um mundo diferente escondido por detrás dela. Eu a colocava em pé e as saias e babados tomavam o espaço diante de mim, majestosamente. Eu a movia e o vestido serpenteava no rastro dela. “Gosto disso”, eu pensava sonhadora... Curiosamente, nunca lhe dei um nome e não tenho notícia de que minha mãe tenha feito isso antes de mim.

O tempo passou e a espanholita ficou mais na memória do que no cotidiano, embora existisse ainda em algum armário. Mais ou menos aos treze anos eu já era uma leitora voraz. E foi assim, por meio dos livros, que a Espanha voltou à minha vida de maneira mais incisiva. Certo dia eu lia Ana Terra, um dos capítulos de O Tempo E O Vento, história em que o genial Érico Veríssimo conta a saga das famílias Terra e Cambará, dos séculos XVII ao XX e, com ela, como pano de fundo e determinante dos rumos das personagens, também a história do Brasil e principalmente da região que é hoje o nosso estado do Rio Grande do Sul. Entregue à fascinante vida da jovem, forte e bela Ana Terra, ambientada na região que futuramente seria o Rio Grande do Sul, mas no século XVII, de tantas disputas e guerras com os castelhanos, subitamente li o seguinte:

“ - Donde están los otros?
Ana mal reconheceu a voz do irmão quando ele respondeu, meio engasgado:
- Dentro de casa.
- Que salgan! Bamos!
- Vosmecê pode me dizer. . - começou Antônio.
- Perro súcio!
Ouviu-se um estampido lá fora. E em seguida Maneco disparou o mosquete. Pelo vão da porta o escravo atirou também. Ana rojou-se ao chão, de todo o comprimento, colou-se à terra, enquanto outros estrondos fendiam o ar e as balas esburacavam as paredes do rancho. De olhos fechados, Ana ouvia os gritos e os tiros, sentia cair-lhe poeira sobre o corpo, enterrava com desespero as unhas no chão. Santa Maria Mãe de Deus - pensava ela - rogai por nós pecadores... Da boca entreaberta saía-lhe com a respiração uma baba visguenta. De repente ela viu, mais com os ouvidos que com os olhos, que a parede da frente vinha abaixo. Um dos bandidos entrava no rancho a cavalo, distribuindo golpes de espada a torto e a direito. Ana sentiu tão perto o resfolegar do animal que escondeu a cabeça nas mãos e esperou agoniada que patas lhe esmagassem o crânio ou que espadas lhe varassem o corpo.
A gritaria continuava. Mãos fortes agarraram Ana Terra no ar, e puseram-na de pé. A mulher abriu os olhos: cresceram para ela faces tostadas, barbudas, lavadas em suor.
- Mira que guapa!
Um dos homens apertou-lhe os seios. E depois Ana viu uma cara de beiços carnudos, com dentes grandes e amarelados - e esses beiços, que cheiravam a cachaça e sarro de cigarro, se colaram brutalmente aos seus num beijo que foi quase uma mordida. Ana cuspiu com nojo e os homens desataram a rir.
Um suor gelado escorria-lhe pela testa, entrava-lhe nos olhos, fazendo-os arder e aumentando-lhe a confusão do que via: o pai e o irmão ensangüentados, caídos no chão, e aqueles bandidos que gritavam, entravam no rancho, quebravam móveis, arrastavam a arca, remexiam nas roupas, derrubavam a pontapés e golpes de facão as paredes que ainda estavam de pé. Mas não lhe deram tempo para olhar melhor. Começaram a sacudi-la e a perguntar:
- Donde está la plata?
La plata... la plata... la plata... Ana estava estonteada. Alguém lhe perguntava alguma coisa. Dois olhos sujos e riscados de sangue se aproximaram dos dela. Mãos lhe apertavam os braços. Donde está? Donde está? La plata, la plata... Ela sacudia a cabeça freneticamente, e a cabeça lhe doía, latejava, doía... La plata...” [...]

Paro de reproduzir aqui o trecho que por muitos meses permaneceu em minha mente, mesmo que eu me tenha dedicado a outros livros depois. Certamente o leitor imagina o que aconteceu onde havia uma mulher sozinha e vários homens cheios de más intenções praticadas e declaradas, exatamente o que ocorre, seja na realidade, seja nos livros. Furto-me, assim, a reproduzir o fim do capítulo, que, como mulher, me aflige. A mim, contudo, uma adolescente caseira que tinha em ler uma de suas maiores e melhores diversões, a Espanha agora trazia medo; tornava-se difícil enxergar que existisse lá algum homem diferente dos castelhanos que violaram Ana Terra, destruíram sua família, sua casinha e dilapidaram seus poucos bens. Sempre tive facilidade para aprender e identificar sonoramente idiomas, tanto quanto música. Sempre concebi as línguas estrangeiras como músicas perfeitamente distintas umas das outras, pelo menos aos meus ouvidos. Assim, depois da leitura de Ana Terra, ao ouvir a mais mínima palavra em espanhol, um arrepio gelado e desagradável me percorria o corpo todo em uma fração de segundo, era uma musicalidade de que comecei a não gostar.

Mas, graças a Deus, nem sempre as primeiras impressões, ou as até então mais marcantes são as que ficam. Um tempinho depois precisei ler o Dom Quixote, de Cervantes. Mesmo sabendo que o Quixote não era bonito, que já era mais velho e só fazia trapalhadas, embora sempre bem-intencionado, conforme eu lia, sentia vontade de ser a Dulcineia que ele jamais conseguira encontrar, de sair por aí galopando na garupa do cavaleiro da triste figura por toda a Espanha, ainda que o potente Rocinante não passasse de um magro e fraco pangaré.

Nessa época também eu já me virava bem no teclado. Meu avô-pai sempre teve uma relação estreita com os países de fala hispânica. Neto de espanhola e montando máquinas pela América Latina, falava espanhol fluentemente, guarani também, e acho que herdei dele o meu ouvido musical. Ele escolhia as músicas que queria que eu tocasse, muitas vezes de países que falam espanhol, e eu que me virasse pra tocar.

- Eu sei que você consegue, toca aí, vai! É tão bonito... - e assobiava a tal música que queria.

Escolhia músicas e mais músicas, sempre antigas. Ele cantarolava e eu tinha que executar. Verdade seja dita, eu sempre conseguia e ele ficava satisfeito, pensando, viajando, lembrando sabe Deus que tantas coisas... cantava, assobiava, estalava os dedos... Chegava mesmo a dar uns passinhos pela sala, fazendo tilintar o antigo relógio de metal no braço esquerdo e bater os chinelos...: Malagueña Salerosa, La Barca, El Reloj, Perfidia, Bésame Mucho, India, Adelita, La Chalana, tangos de Gardel - principalmente Por Una Cabeza e La Cumparsita... Dentre tantas outras que eu poderia enumerar. Eu ouvia também um cd de boleros que uma vez peguei em umas coisas do meu pai... Peguei e não devolvi mais; ele disse que não precisava. Hoje estou certa de que essa minha procura pelos sons, pelas harmonias, pelos ritmos para contentar meu avô ajudou definitivamente a desenvolver o ouvido musical que eu tinha. Tomei gosto pela coisa e comecei a tocar o que eu mesma achava bonito, caminhando em paralelo com os professores de música popular que tive ao longo da vida e ampliando sempre o repertório, inclusive o de música hispânica, já sem que ele pedisse. Tenho certeza de que isso me proporciona hoje poder dedicar-me às músicas clássicas que mais me agradam no piano, oferecendo-me uma maior segurança para me desenvolver naquilo que pedem as interpretações. A música e a musicalidade foram, portanto, o melhor e maior bem que meu avô me deixou e poderia ter deixado.

Mas foi na universidade que percebi que o espanhol e a Espanha se entranhavam de vez em mim. Estudando literatura cheguei a Eurico, O Presbítero, de Alexandre Herculano. Lá descobri Toledo – um dos últimos redutos mouros na Península Ibérica -, os sarracenos e a influência que tiveram naquela que um dia seria a Espanha, por 700 anos. Era dessa suceção de eventos, então, que vinham aquelas letras “l” tão bem pronunciadas, rigorosamente nítidas do espanhol, assim como algunas otras cositas... Soube, então, que era isso o que eu gostava na Espanha, esse ponto de intercecção entre o Ocidente e o Oriente, esse meio do caminho geográfico e cultural, essa melancolia árabe e muçulmana, semita, que cresceu e se desenvolveu forte, lado a lado com o que a Espanha tem robustamente de ocidental e cristão. A partir dali eu sentia que não podia mais escapar a isso, que sempre alguma coisinha espanhola faria parte de mim.

No último ano da faculdade uma amiga, Mônica, fez uma viagem ao Peru e Bolívia, me trouxe dois cds de música andina e uma samponha, toda enfeitadinha, artesanal, linda... E, surpresa das surpresas, uns três anos depois comecei a estudar espanhol com um professor chileno, vizinho da minha mãe, Alejandro; ainda não sei como comecei, quando percebi já tinha ido, estava lá. Meu avô me levava a cada semana, todo satisfeito; estava escrito no rosto dele como ficava contente em me levar às aulas de espanhol. Venci minhas últimas resistências íntimas e comecei a ouvir minha própria voz em espanhol, com aquela cadência nova, a um só tempo terna e forte, saída de recantos que nem eu mesma conhecia, sensação diferente... E definitivamente agradável, música que começava a se tornar familiar aos meus ouvidos. Aquele foi um ano intenso. Gramática, ortografia, muito cuidado com a escrita, apuro na fala e Alejandro me pegou pelo ponto fraco, literatura: aprendi muito com A Ciganinha, de Cervantes, El Cid, O Zorro, e outros livros menos conhecidos, todos lidos em espanhol. E essa minha aproximação com o idioma durou um ano. Até que chegou um dia em que meu avô foi falar espanhol, guarani e cantar moda de viola no céu... Tive um bloqueio fortíssimo. Tinha, então, um piano, mas não conseguia mais tocar; sentava-me diante dele e parecia que mutuamente nos repelíamos; minha mão pairava a dois, três centímetros das teclas sem coragem de tocar nelas; só a angústia havia. Vendi o piano. Passei cinco anos sem fazer soar uma nota sequer, o espanhol me visitava às vezes; lia, de vez em quando, uma coisa ou outra. Mas a Espanha continuava presente. Eu soube disso quando toquei, uma vez, uma estátua de um touro, subjugado, com o toureiro sobre seu dorso... Fiquei pensando: “Se esse bicho suspeitasse a força que tem”... Permaneci ali um tempo, alisando o touro de bronze, e alguma coisa despertou dentro de mim. Na mesma época assisti, ao vivo, a uma apresentação de flamenco, com bailarinos e músicos espanhóis... Impressiona a sincronia das pontas e calcanhares dos sapatos dos casais de bailarinos no assoalho com a energia das palmas, o violão, as castanholas, os tambores e as vozes vibrantes e cheias de fôlego para as vogais longas e lamentosas, tão típicas da música cigana e árabe, mais ou menos como os chamados para as orações que ecoam nas mesquitas ao redor do mundo, e refletidas com graça melancólica naquilo que a música espanhola tem de ocidental... Aliás, essa transição musical da Espanha entre os tons maiores e menores na mesma canção, às vezes na mesma frase musical é fascinante! Quando as bailarinas tocam castanholas e dançam, a impressão que se tem é a de que as castanholas conversam, perguntam e respondem, retrucam e treplicam. Havia uma das bailarinas, pareceu-me ser a mais experiente do grupo, que sempre gritava palavras de incentivo às outras: “¡Vamos”! “¡Dale”! etc., com voz sonora, palavras claras, rosto sorridente durante as invocações. Tudo isso somado à melancolia intensa e, a sua forma, alegre, da música cigana e às bem definidas expressões faciais para cada momento. O entrosamento de músicos e dançarinos é indescritível. Sem contar que não é preciso ver com os olhos para entender; encantador! Basta agora ouvir o som de castanholas para que o meu rosto se transfigure.

E como Deus sempre nos envia anjos da guarda sobre a terra, certo dia, em um passeio com Evandro, um amigo professor de piano erudito, e Wânia, que também o piano me trouxe, sua aluna e que depois veio a tornar-se uma amiga muito querida, fui interpelada pelos dois insistentemente para voltar a tocar, que eu ficaria feliz, que meu avô, onde estivesse, gostaria de ouvir, que eu me sentiria mais leve, mais alegre....

- Volta – me dizia Wânia vezes sem conta com aquela expressão calma e serelepe tão sua – A gente toca junto... Seria tão legal...

- É isso, emendava Evandro com cara de negociante que sabe que a operação vai ser bem-sucedida – volta, Ser! (um apelido carinhoso). – A gente troca piano com inglês, eu vou na sua casa, vamos, vai amarelar? – disparou de uma feita, provocante.

Não, não amarelei, voltei, graças a Deus voltei. Pedi para tocar música espanhola e fui atendida prontamente:

- Agora que você voltou, escolhe, toca o estilo que quiser – Evandro Garantia com um sorriso triunfante de orelha a orelha.

Promessa feita, promessa atendida. No segundo mês de aula comecei uma malagueña do espanhol Isaac Albéniz, que depois soube que era para alunos do sexto ano, mas então eu já a estava quase terminando de ler, celando minha reaproximação com o piano e, de alguma forma, com o idioma castelhano... e agora já tenho um tango também dele... E Evandro me permitiu realizar um sonho antigo: tocar vestida, completamente, de espanhola; me apresentou até a costureira que transformaria tudo isso em camadas e camadas farfalhantes de preto e vermelho... Fui atrevida o suficiente para pedir e ele, sem pestanejar, novamente, me atendeu. Minha avó-mãe Adalgisa afirma categoricamente que esse foi o encontro de dois malucos. Isso sem contar os amigos novos que ganhei. Tantos presentes o espanhol me trouxe... Desde então os arabescos andaluzes vêm se desenhando dia a dia em minha existência, proliferam-se a Espanha e o espanhol em cada acontecimento, em cada coisa. Sinto que esse universo se torna cada vez mais parte de mim, me constitui como uma identidade, como uma marca de cuja força, não sei por que obscuro motivo, eu ainda não me havia dado conta. Adotei de vez em quando a mantilha, lenços, o batom vermelho... Tudo pela arte, para ir entrando no clima... Pela arte e por mim mesma.

E como a vida não para de dar voltas, ano passado voltei a estudar espanhol. Desta vez com uma professora uruguaia, Alicia, ou simplesmente Ali, alguém que conheci casualmente num dia já distante e que vim encontrando e reencontrando ao longo dos anos em distintos lugares, por essas artimanhas ocultas das antigas parcas gregas que tecem e retecem o destino, até que nos reencontramos definitiva e imutavelmente, como professora e aluna. Hoje, no entanto, quando penso no rol dos meus amigos mais próximos, o nome e a figura de Ali logo aparecem, outro presente que ganhei aceitando o espanhol de volta de uma vez por todas. Agora, com uma delicadeza até então insuspeitada na forte língua espanhola, tornei-me, por escolha dela, carinhosamente, Yarita, como até hoje permaneço e tenho gosto em ser; um apelido que “pegou”, nas aulas de espanhol e fora delas. Em vários outros lugares e círculos por onde transito eu já sou Yarita. Diferentemente de quando me defrontei com Ana Terra, agora tenho até um apelido genuinamente espanhol e ele me soa bem nos ouvidos. Hoje, de uma vez por todas, a musicalidade do espanhol me é agradável e ninguém mais, na ficção ou na realidade, pode arrancá-la desse patamar. Já penso cada vez menos para usá-la dia a dia.

Uma tarde conversávamos despreocupadamente no facebook (sempre em espanhol) sobre como era bom tocar música espanhola e falar espanhol e eu comentava com Ali que gostaria de encontrar um nome para essa presença espanhola que me habitava em forma de música desde que voltei a tocar piano, um nome que definisse espiritualmente como me sinto quando toco, que preenchesse um pouco essa vontade íntima que passei a ter de ser espanhola de uns anos para cá; uma espécie de estado de espírito com nome espanhol. Ela quis saber se eu já havia pensado em algum. Respondi que Isabel, mas poderia ser confundido com um nome português; Carmen, mas já havia muitas Carmens, tanto na ficção quanto na realidade; Soledad, mas que esse nome me parecia muito triste; que então eu pensava chamar Esmeralda a essa força que me enchia de disposição e propósito, depois de tanto tempo sem tocar. Seria esse, para os amigos, despretenciosamente, o meu pseudônimo musical; Esmeralda.

- Esmeralda, nombre de piedra preciosa – me respondeu – ¡Me queda grande!

Para os que me conhecem e apreciam piano, que sabem dessa minha cruzada para poder voltar a tocar e da alegria que sinto por ter conseguido, sou agora, muitas vezes, com carinho, Esmeralda, com o “L” bem longo. No coral em que canto também já sou Esmerallllda desde que me viram tocar. E assim Esmeralda, no piano, vai desabrochando para o mundo e Yara, Yarita, também vai ficando contente por tabela. Me acompanham sempre, para ouvir, Paco de Lucia, Buena Vista Social Club, Gypse Kings...

Mais recentemente a história de Esmeralda ganhou um capítulo novo; novo e difícil. Minha avó fez comigo uma viagem e ficou seriamente enferma. Internada na unidade de cuidados intensivos, eu não podia entrar para vê-la. Impotente em um país longínquo e estranho, resolvi, assim, sair com o grupo para passear, para desanuviar os pensamentos, tentar esquecer o quanto fosse possível. Tínhamos uma guia espanhola, Reyes, e uma portuguesa, Helena, que fazia naquele momento a visita guiada do nosso grupo de brasileiros. Assim, foi permitido que Reyes estivesse comigo o tempo todo: me levou para tocar os monumentos, descrevia tudo com rigor de detalhes, me conduzia com cuidado, avisando de cada obstáculo, fez fotos e mais fotos minhas nos lugares em que eu as solicitava, me sugeria poses que pensava ficariam bonitas – e ficaram mesmo – tudo com muita prontidão, carinho, desvelo e em língua espanhola. Pratiquei o idioma, me distraí de minha impotência, consegui passar bem por aquele dia tenebroso e ganhei uma nova amiga. Uma vez mais, lá estava o espanhol me acalentando a alma naquele momento tão difícil, um dos mais difíceis de toda minha vida... E mais uma vez a face suave do forte idioma espanhol se mostrava a mim.

E hoje estou eu aqui diante do teclado do computador, com todas essas letras inquisitivas me olhando, rendida às lembranças, aos fatos, aos fragmentos, aos sentimentos todos que se acumularam ao longo dos anos; estive metamorfoseada por minha própria vontade em Esmeralda, tendo tocado música do Sul da Espanha ao piano há poucos dias, completamente trajada como a bonequinha espanhola de minha infância, com exceção dos cílios grandes. Batom e esmalte vermelhos, sapatos de flamenco, pente como os da Espanha nos cabelos, bem como a flor vermelha, o véu, claro, o véu... Tudo como imagino que deva ser, e a música espanhola saltando de mim para o piano antes inerte, em rajadas de plenitude. Pelos epítetos que recebi, creio que consegui o que queria, ser espanhola por um dia: “Frida Calo”; “Periguete de Albéniz”; “A própria Carmen”; “Rainha de Alhambra”. Imagino que meu avô gostaria de me ter visto daqui debaixo (porque de lá de cima aposto que viu). Como foi bom ser Esmeralda, ser espanhola por aquele tempo em que toquei Albéniz... Quanto arrebatamento, quanto êxtase! Que sensação boa de que tudo está no seu devido lugar... De que consegui finalmente “atar as duas pontas da vida”, a Yara de ontem e a Yarita de hoje, como almejou um dia Dom Casmurro...

E foi assim que, quase miraculosamente, os eventos se vieram construindo em minha vida, para que eu pudesse, de alguma forma, ter esse encontro com aquelas que sei que são as minhas raízes. Agora, só resta despedir-me dos leitores que me acompanharam nessa viagem geográfica e cronológica. E àqueles que nelas acreditam, que Nossa Senhora do Pilar e Santa Teresa Dávila os protejam e guardem... Amém!

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Uma Dádiva

Recentemente eu conversava com uma amiga muito querida, dessas com as quais a gente pode se dar ao raríssimo luxo de sentar para falar sobre as pequenas grandes coisas da vida, aquelas que têm tanto valor e às quais dificilmente alguém presta atenção. Conversávamos sobre as respostas de Deus, sobre como ele nos envia os sinais certos nos momentos em que precisamos saber qual o caminho a seguir. Comentei, então, sobre a história que segue, algo que realmente me aconteceu e que, certa vez, publiquei na forma da seguinte crônica, no blog de uns amigos onde eu costumava escrever. Levada por essa conversa e rememorando tal acontecimento, a um só tempo tão singelo e tão sublime, republico agora a crônica aqui neste espaço e a compartilho novamente com vocês. Aos que por acaso já a leram, espero que curtam reler. Aos que ainda não a leram, saibam e lembrem-se que Deus sempre tem uma resposta, e essa sempre é a resposta certa. Vou me lembrar disso também...

Dádiva: segundo o dicionário, palavra advinda da milenar e melodiosa língua latina, é aquilo que se dá espontaneamente a alguém, aquilo que se doa por livre vontade, sem que se espere algo em troca do presente. Pois bem, hoje pela manhã (9 de fevereiro) recebi um presente desses, e não foi de ninguém aqui da Terra não; foi mesmo de lá de cima... Eu explico.

Por causa desse calor intenso que estamos tendo, têm aparecido alguns insetos aqui em casa, que vão entrando pelas janelas abertas e se instalando pela casa toda, como acontece todos os anos por essa época e temperaturas por aqui. Dessa forma nos apareceu uma borboleta amarelo-acinzentada, de tamanho mediano, que ficou esvoaçando uns três dias por todos os lugares, quando menos se esperava, pousando nos livros, nos móveis, nas paredes, nas pessoas.

Observando-a pelos sons que emitia durante o vôo e conversando com minha avó, comentei que desejaria muito ver / tocar uma borboleta de verdade – não apenas uma reprodução em algum tipo de relevo -, já que nunca pude fazê-lo, contentando-me com contornos e descrições subjetivas, mas que, para que isso se realizasse, essa borboleta precisaria estar morta, uma vez que minha fobia por bichos e minha aflição pelo ruído daquelas asas não me permitiriam pegá-la, até mesmo sob risco de esfacelá-la com o mais mínimo movimento. Então, cogitamos que a saída para mim seria encontrar uma borboleta conservada, por exemplo, em algum museu; plano para um futuro talvez nem tão próximo. Assim pensando, intimamente pedi a Deus que um dia, se fosse possível e de seu agrado, me defrontasse com um desses insetos tão presentes no nosso imaginário; pedi, mesmo considerando a aparente insignificância e falta de nexo do pedido. Se era mesmo verdade que ele tudo via, tudo podia e tudo sabia, estando em todos os lugares, certamente iria me entender.

Com esses pensamentos, fui dar aulas ontem à tarde; tenho um espaço aqui em casa para isso. E de repente, durante a aula, eis que surge a famigerada borboleta – presença já de alguns dias -, e pousa no chão, ao lado da mesa. Não perto, mas ao lado. Terminei uma aula, comecei outra, terminei e me esqueci da borboleta, da conversa anterior com minha avó, de tudo enfim.

Hoje logo pela manhã, encontro minha avó na sala das aulas, sentada, bordando. Entro e ela me diz que a borboleta morrera, que estava lá, na mesma posição, desde ontem. Lamentei pelo fim da vida dela como sempre lamento pelo fim de qualquer vida, mas quase imediatamente pensei em pegá-la e comuniquei que o faria; eu não podia deixar essa oportunidade passar!... Nunca tivera uma igual, talvez jamais tivesse outra.

Me abaixei e toquei a borboleta. Fiquei surpresa ao primeiro contato. Ela estava ali: fina como uma folha do mais frágil papel, imóvel, delicada, com os pares de asas fechados. Tomei fôlego e coragem, coloquei-a cuidadosamente na palma da mão direita e me levantei, pousando-a sobre a mesa e abrindo suas asas com extrema cautela e a ajuda da minha avó, que logo confessou, também interessada, que nunca em sua vida havia visto uma borboleta assim de tão perto. O som era de uma folha seca, e também aquelas nervuras do corpo da borboleta me faziam lembrar uma grande folha dessas que caem das árvores e estalam quando a gente passa. Mas as asas abertas, para mim, lembravam uma flor recém-desabrochada, mesmo sabendo que, em verdade, a criatura já estava definitivamente morta. Asas abertas, minha avó me mostrou a borboleta em posição de vôo, o corpo estreito e comprido, as antenas... E assim eu a tinha, na palma da mão, a borboleta que, até o dia anterior, era só um singelo sonho distante mas que, no entanto, agora vinha ao meu encontro, em um dos locais mais meus em toda a casa.

Por isso hoje considero que recebi uma dádiva daquele que, de fato, pode, sabe, vê e se faz presente, conhecendo aquilo que temos, sentimos e somos de mais íntimo e nos atendendo na medida certa dos nossos merecimentos. Só me desgosta que a borboleta tenha precisado morrer para que eu tivesse um momento de revelação, de epifania, de vida que foi mais do que a própria vida. Porém, o mistério recebe este nome justamente porque não nos cabe compreendê-lo, mas tão-somente aceitá-lo. Sendo assim, aceito, agradeço e espero apenas, um dia, poder, de algum modo, oferecer a alguém uma dádiva semelhante a esta que hoje recebo.


Quinta, 10 de fevereiro de 2011

(Texto publicado originalmente em WWW.jornalistas.blog.br).

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

La Garganta Del Diablo

As referências de alguém que não está pautado nem orientado pelo sentido da visão são e estão em seu próprio corpo; começam a partir do corpo e terminam também nele. Assim, como explicar e como entender algo de proporções tão grandes e literalmente intocáveis, no sentido tátil, quanto as Cataratas do Iguaçu quando não se vê? Essa foi uma lacuna que se me defrontou uma vez, mas, contrariamente ao esperado, foi também brilhante e singelamente resolvida.

Todos a minha volta admiravam as quedas d’água e exclamavam coisas como: “Nossa, olha só”! “Que lindo”! “Quanta água”! Eu, por minha parte, ouvia aquele rugido colossal que parecia projetar-se das profundezas da terra e tentava imaginar um cenário que correspondesse às tantas exclamações que escutava. Até que o grupo separou-se e veio a proposta da Elizete, que eu já conhecia de outros carnavais:

- Quer que eu te leve lá na passarela? Assim, mesmo você não vendo as cachoeiras, vai sentir a água, aí vai imaginando...

Claro, aceitei imediatamente e fomos indo, ouvindo aquele fungar inominável das águas que, lançadas para cima e trazidas pelo vento, esparziam o meu corpo e cabelos naquela neblina revigorante e fresca... Até que chegamos frente a frente com a Garganta do Diabo. Parei diante dela, encostada à grade, deixando que a água me molhasse, contemplando aquele vazio inquietante e ruidoso lá embaixo... Agora aquelas tantas exclamações das pessoas começavam a fazer algum sentido. Assim ganhei as cataratas de presente pela primeira vez. Mas não foi essa a única representação que tive delas.

Para minha surpresa, Marcelo, o nosso guia lá de Foz do Iguaçu, sentando-se ao meu lado em um parque, perguntou, assim, de chofre:

- Me diz uma coisa... E você? O que ta achando das cataratas?... Na sua imaginação, como é isso?

- Amedrontador – respondi em uma palavra procurada durante algum tempo.

- Sim, de fato, é amedrontador – continuou ele – Mas, além disso, o que mais? Como você imagina, aí nas suas ideias, que sejam as cataratas?

Respondi que não era capaz de imaginar algo assim de proporções tão grandes. Para mmeu contentamento, ganhei as cataratas de presente pela segunda vez em tão curto espaço de tempo. Conto em um minuto como foi isso. Só peço licença para destacar aqui algumas proporções, informações, que permitirão aos demais leitores cegos desta crônica entender o porquê da minha dificuldade em imaginar o que Marcelo me perguntava. Conto como ele me presenteou daqui a pouco.

As Cataratas do Iguaçu demarcam, no rio Iguaçu – do tupi-guarani água grande – a fronteira natural entre o Brasil, em Foz do Iguaçu, no estado brasileiro do Paraná, e Puerto Iguazú, na província argentina de Misiones. São cerca de 275 quedas de água, sendo a mais impressionante delas a chamada Garganta do Diabo, exatamente na fronteira mencionada entre Brasil e Argentina, uma cachoeira com mais de 80 metros de altura. Historicamente, o primeiro europeu a avistar as cataratas do Iguaçu foi o conquistador espanhol Álvar Nuñez Cabeza de Vaca, por volta dos anos 1540. Escolhi, para intitular esta crônica, o nome desta queda mais importante, mas em espanhol, que para mim deixa a garganta mais diabólica do que em português... hahaa

Bem, agora posso continuar contando como o Marcelo conseguiu tornar concreta para mim a tão distante e inatingível Garganta do Diabo. Sentado ao meu lado, ele pediu licença e,tomando o meu antebraço esquerdo, posicionou-o na mesa a nossa frente de maneira horizontal, pedindo-me que abrisse os dedos daquela mão espalmada. Tocando a extensão do meu antebraço, começou:

- Imaginariamente, este aqui é o Rio Iguaçu.

Fazendo com os dedos uma massa compacta como quando gostaríamos de mostrar um número 4, continuou, tocando a letra “u” que se formava entre meu polegar e indicador:

- nos seus dedos estão as quedas das cataratas. Aqui no seu polegar estamos do lado brasileiro das cachoeiras. No seu indicador, passamos ao lado argentino. Aqui – disse, tocando a curva do “u” – é a Garganta do Diabo, que a gente vê de frente quando está no lado brasileiro das cataratas e de cima quando está no lado argentino, onde vemos toda essa água despencando sem parar – completou, indo e voltando com os quatro dedos na curva do “u” com rapidez, como a concretizar o fluxo frenético da água jorrante. – E, só para você saber – continuou, posicionando o meu braço direito a uma curta distância, verticalmente – Este aqui é o Rio Paraná.

Ah! Então era isso! As cataratas, claro que em proporção muitíssimo maior, eram assim... Era esse o fenômeno que toda a gente olhava abismada... Foi como se tivesse sido jogado um feixe intenso de luz sobre aquela irriquieta cortina d’água... E foi assim que, como eu disse, em um passe de mágica, ganhei as cataratas do Iguaçu de presente... Duas vezes!

- Obrigada, Elizete! Valeu, Marcelo! Onde havia um gigantesco ponto de interrogação vocês colocaram textura, cor, tamanho... O tipo da coisa que não tem preço.

domingo, 4 de janeiro de 2015

O Paraguai Além da Fronteira


“Sy (Madre)

Ahai nde resa/ha mitãnguéra oma’ẽ./Ahaí nde juru/ha mitãnguéra opuka./Ahai nde réra/ha mitãnguéra oñe’ẽ.
Dibujo tus ojos/y los niños miran./Dibujo tu boca/y los niños sonríen./Dibujo tu nombre/y los niños hablan”. (Cristian David Lopez).


A maior parte das pessoas, quando vai a Ciudad Del Este fazer compras, diz, de boca cheia, que foi ao Paraguai, que conheceu o Paraguai. Realmente, trata-se de território paraguaio, mas do ponto de vista de país e de povo, essa é uma redução em muito equivocada e bastante simplista.

Ao começarmos a atravessar a chamada Ponte da Amizade – primeiro dos sinais concretos dessa relação comercial estreita que inegavelmente existe entre Paraguai e Brasil -, já impressiona o fluxo intenso de pessoas e de tudo aquilo que anda sobre rodas, de grande porte e de porte pequeno. As instruções que se recebe são para permanecer dentro dos shoppings, para evitar as ruas. E, de fato, se dentro dos shoppings está um mundo – luxuoso, de temperatura agradável, espaçoso e calmo -, nas ruas se vê o oposto dele. Motos aos montes, um trânsito infernal, que para recordar o trânsito da Índia só faltam os camelos, elefantes e gado transitando pelas ruas. Todo o cuidado é literalmente pouco. E mais ainda quando não se vê; cruzar as ruas de Ciudad Del Este é verdadeiramente uma odisseia.

Você está concentrado no trânsito, em não ser atropelado por nenhuma das infinitas motos que surgem não sei de onde e vão para tantos lugares, nas calçadas tão difíceis quanto as do Brasil, quando de repente um vendedor ambulante chega te oferecendo cinco meias por não sei quantos reais. Você diz que não, obrigado, ele começa a aumentar as meias: seis, sete, oito, dez, doze... Quanto mais você diz que não, mais ele aumenta. Até que chega um ponto em que, sem exagerar, ele teria um lucro zero, mas não importa, aumenta que aumenta. Você sai andando naquela 25 de Março piorada e o vendedor segue lado a lado, aumenta que aumenta. Desvencilhar-se de um desses ambulantes paraguaios é uma tarefa difícil. E quando você consegue deixar um para trás, em menos de um minuto surge outro, ora criança, ora adulto e assim as coisas vão. Isso foi algo que me deixou com um pouco de medo, acho que já trazido aqui do Brasil, onde toda a desconfiança é pouca quando um estranho começa a andar com você lado a lado insistentemente pelas calçadas. Bem fundamentado ou não, o medo existiu, mas acho que o vender vinha antes de qualquer outra possível pretensão. Considero isso até compreensível. O comércio é o que literalmente dá vida, em todos os sentidos, à Ciudad Del Este. E, prioritariamente, comércio com brasileiros. Ao que parece, comerciar é uma tradição passada de pai para filho por força das circunstâncias; ou você vende ou você vende. (e agora, com o dólar nas alturas, o mais provável é que você não venda). Como turista é uma situação difícil, mas quando se avalia o lado humano das coisas, são atitudes perfeitamente compreensíveis.

Se olfativamente esse é um ambiente onde se sente de tudo, visualmente, pelo que me contaram, as ruas não são muito diferentes, se vê também de tudo. O tempo que passei lá foi pouco, bem curto, só o de transitar de um shopping a outro, mas cada flash desse cotidiano era um pequeno pedaço de um grande mosaico que ia se desenhando a cada passo.

Tudo isso, porém, é muito pouco para alguém poder dizer: “Estive no Paraguai”! Desculpe, caro leitor, se você um dia, indo somente a Ciudad Del Este, já fez essa afirmação, mas lamento, você, como eu, esteve no Paraguai e ao mesmo tempo lá não esteve. Se esteve apenas em Ciudad Del Este, você ouviu falar de ambulantes, de pirataria, de contrabando, de comércio, de sacoleiros, de multidão, de contas que, com poucos reais, resultam numa quantidade astronômica e confusa de zeros em guaranis, mas raramente algo além disso. Você não deve saber, por exemplo, como agora aprendi – né, Marcelo? -, que o Paraguai, além de vender, tem indústrias e não tem quase impostos. Que, pela parceria com o Brasil na construção da usina binacional de Itaipu, é autossuficiente na produção de energia elétrica. Não deve saber que quando se passa Ciudad Del Esste há todo um mundo completamente desconhecido a quem esteve apenas lá. Não deve saber que a capital, Assunção – ou Asunción para entrarmos mais no clima – é um dos polos culturais da América Latina... Pois é... E é mesmo. Normalmente, aqui no Brasil, poucas pessoas que vão ao Paraguai sabem dessas coisas. Aposto como você não deve ter ouvido nada de espanhol e pouco de guarani – as línguas oficiais do país. O português predomina, com pouco sotaque. Mas isso só lá, em Ciudad Del Este...

Como eu sei? Se já estive em outros lugares do Paraguai? A resposta é não, também não passei de Ciudad Del Este, mas tive um avô que adorava contar histórias aos netos já grandes; histórias reais, principalmente de viagens. E várias dessas viagens dele, montando máquinas, foram para o Paraguai, para Asunción. Assim eu conheci o Lago de Ipacaraí... Conheci a simplicidade das índias em suas casinhas rústicas, cozendo frugalmente e falando guarani, palavras e expressões que meu avô repetia reproduzindo com facilidade os sotaques, ensinava com paciência, a mim, única da família a quem ele contava detalhes dessas histórias. Palavras e expressões cheias de vogais e, por isso, adocicadas de uma doçura que as línguas latinas, com uma consoante ou mais para quase cada vogal, não carregam apesar da melodia. Com as histórias do meu avô conheci a harpa paraguaia, ouvi a mescla de espanhol e guarani nas músicas – em sua maioria lamentosas e muitas vezes em tons menores -, aprendi a diferenciar uma língua da outra, aprendi a gostar da Perla, a paraguaia, não essa aí do funk... Pelamor! Com as histórias do meu avô, quando pisei fora do primeiro shopping de Ciudad Del Este, eu soube que estava sim no Paraguai, mas não no Paraguai sobre o qual ele contava. Eu soube que estava em um Paraguai estereotipado, em uma cidadezinha comerciária de fronteira que é tomada para definir o contexto de todo um país que, embora pequeno, tem muito mais do que Ciudad Del Este para mostrar. Mas antes de mais nada, eu soube que, para conhecer o Paraguai a respeito do qual ele contava com tantos pormenores, a viagem que eu teria de fazer um dia seria completamente outra...