domingo, 4 de agosto de 2013
O Verso e O Reverso
Umas horas atrás estava assistindo na televisão ao caso de um rapaz que tinha um tumor no cérebro e precisava fazer uma cirurgia, cujo resultado poderia afetar a área da linguagem. Se bem entendi, os médicos primeiro o anestesiaram o suficiente para iniciar o procedimento, e depois o acordaram, para que um deles o estimulasse a falar, enquanto a outra, com a cabeça do jovem aberta, mapeava suas reações por meio de exames e decidia qual área do cérebro poderia ser operada sem afetar a habilidade da fala do rapaz. A cirurgia foi bem-sucedida tanto na retirada do tumor quanto em não afetar as habilidades linguísticas do jovem.
Os mesmos médicos diziam que um procedimento desses não seria possível há apenas dez anos. Assim, fiquei pensando como a medicina tem evoluído de uns tempos para cá!
E nessas reflexões me lembrei de uma outra conversa que tive uma vez, com o meu otorrino – Ricardo - e minha mãe, durante uma consulta.
Ricardo me perguntou se eu sabia, fazendo parte também do mundo das pessoas com deficiência, o porquê de muitos surdos serem tão resistentes a implantes cocleares, que poderiam fazê-los ouvir ou voltar a ouvir, se bem me lembro. Relatou-me que sente certo desapontamento com essa conduta, porque os médicos pesquisam tanto, na firme certeza de estarem fazendo um bem, que, nessas tais ocasiões, acaba não sendo aceito pelos beneficiários em potencial.
Respondi que não sabia exatamente o porquê, mas que eu igualmente não gostaria mais de voltar a ver, se me fosse possível agora. Recordo-me também da perplexidade de ambos com essa revelação repentina, que lhes deve ter parecido aterradora a julgar pelas reações:
- Por quê? – interpelou-me Ricardo novamente, talvez sentindo que, ainda que de uma forma torta, eu poderia responder a pergunta que ele tantas vezes se fizera.
E minha resposta, que para mim é absolutamente normal, parece que demorou a fazer algum sentido para os dois.
Sou cega há mais de trinta anos. Leio sempre livros e resenhas de livros de Oliver Sax; sei que os procedimentos que ele apresenta nem sempre têm os resultados esperados pelos pacientes, e o Dr. Sax acabou dedicando a vida a estudar os envolvimentos emocionais dos pacientes com suas novas situações. Ainda bem! Porque eu quis muito ver quando era criança e adolescente, mas depois de ter conhecimento desses apontamentos, fui perdendo a vontade e descobrindo que estou bem da forma como estou.
Por não ver, meus sentidos do tato, olfato, audição e paladar acabaram por desenvolver-se de modo a me fazer ter as mesmas percepções que todos têm por meio da visão através deles. Sei que a visão é o sentido que mais facilmente dispersa as pessoas. Portanto, suponhamos que eu me submeta a algum procedimento médico revolucionário e passe a enxergar, digamos, 10%. Sejamos realistas e práticos: conheço bastante gente com baixa visão; 10% nada significam no desempenho de grande parte das atividades cotidianas, isso para não mencionar as incomuns. Assim, além de não poder contar com a visão, eu ainda teria diminuído o desempenho de meus outros sentidos, por influência desses 10% de visão que “receberia”.
Desculpem a falta de modéstia, mas eu só aceitaria uma cirurgia como essas se me fosse garantido resultado positivo, 100% e colorido! Sei que estou pedindo demais, porque esse tipo de garantia ninguém dá, nem pode dar. Logo, desculpem os bem-intencionados que me desejam visão, elevando preces a Deus por isso a cada dia, mas me sinto bem da maneira como estou. E essa é a opinião de vários outros cegos que conheço e com quem convivo diariamente.
É claro que, no meu caso, há uma escolha. Ainda que não compreendida por muitos, é uma escolha possível e factível. O rapaz do programa a que assisti não podia escolher. Naquele caso, a cirurgia era tudo ou nada; graças a Deus, deu certo.
E graças a Deus, Ricardo compreendeu também minha posição, anunciando que era preciso respeitá-la, que era preciso respeitar cada pessoa em suas diferenças peculiares; talvez essa posição tenha até mesmo trazido um pouco de luz à reflexão sobre esse tema, que já o acompanha há tanto tempo. E fico feliz também porque o posicionamento dele acabou convencendo e aparentemente trazendo também algum conforto para minha mãe. Explicar e fazer compreender uma escolha como a que fiz sempre é uma tarefa difícil, ainda mais para os familiares, que de um modo ou de outro idealizam o contrário; que bom que consegui!
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Yara ,surpresa com sua revelação , mas você tomou esta decisão e o mínimo que espera é a nossa compreensão ; se não a entendemos pelo menos não a julguemos .Só não desacredite na evolução da medicina , guarde em você este sonho.
ResponderExcluirBjs querida . Carol
Vou deixar bem guardado lá no fundo, mas se esse dia não chegar, não vai ser o fim do meu mundo, não vou imitar a grande Maísa ao cantar "Meu Mundo Caiu". Foi isso o que eu quis dizer. Guardo o sonho, no entanto, faço isso muito mais por vocês do que propriamente por mim. Descobri que a gente não precisa ver pra ser feliz. E, sim, a compreensão dessa decisão por parte dos que me são caros é o que mais espero. Valeu! Bjsss
ResponderExcluirE afinal de contas, Carol, vamos lembrar que já passei dos trinta. A cada dia me aproximo mais da época em que tradicionalmente as pessoas começam a reclamar de vista cansada, e isso não tem cirurgia que resolva!!! rsrsrs Se a medicina demorar muito, a minha escolha vai ser a mais acertada mesmo... rsrsrsrs Bjsss - e faz logo a mala! hahahaha
ResponderExcluirPois é, Yara! Se nossos gestores públicos e até mesmo nós cidadãos pudéssemos compreender suas colocações até "às entranhas", talvez poderíamos dispensar maiores investimentos não só para a "cura da cegueira", mas também em novas tecnologias para facilitar o dia-a-dia daqueles que enxergam tão somente e incrivelmente pelos outros magníficos sentidos!
ResponderExcluirSou seu admirador e tenho orgulho de tê-la como integrante do Coral Vozes do Tatuibi, do qual sou eu o regente!
Abração
Maestro Rosivaldo Mena Peres
Valeu, Rosivaldo! Que bom receber sua visita no meu blog! E hoje à noite tô lá de volta no coral! Bjsss
ResponderExcluirE realmente, Rosivaldo, você tem toda a razão: para nós seria muitíssimo mais útil se os gigantescos investimentos públicos fossem em educação, não apenas educação escolar, mas educação social e ética, bem como em acessibilidade arquitetônica e principalmente atitudinal reais do que propriamente em cura da cegueira. Claro que há deficientes que buscam a cura, principalmente aqueles afetados depois de grandes, mas para os que já nasceram assim, posso te dizer que isso pouco ou nada importa.
ResponderExcluirSabe, que eu nunca tinha pensado por esse ângulo! Acho que essa convicção pode ajudar aos deficientes fazerem "do limão uma limonada"
ExcluirOpa, que escreveu foi o Rosivaldo! rsrsrsrs
ResponderExcluirAinda estou aprendendo a "mexer" no seu "brogui"
ResponderExcluirAh, tudo bem, também tô apanhando pra caramba ainda... rsrsrsrsrs
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