quarta-feira, 21 de agosto de 2013
Um Dia de Mona Lisa
Desta vez publico um texto inédito sobre minha experiência sensorial com a pintura, apesar da cegueira. Espero que gostem!
Sábado pela manhã. Dia ensolarado, preguiçoso, último dia na Terra em que se pensa em estudos,em ler, em raciocinar demais. Mas às vezes, quando se escolhe fazer uma Pós-Graduação, a gente não tem muito por onde fugir: os sábados são normalmente os dias premiados; e, também naquele dia, assim era.
Aula de Produção de Texto – especificamente, pretendíamos atacar a complicada distinção entre tipos e gêneros textuais, uma das mais intrincadas e palpitantes discussões da linguística contemporânea. Assunto que vinha e vem consumindo os principais nomes da área que conhecemos na faculdade e que, naquele dia, nos consumiria também.
E como professora, que tentaria nos conduzir pelos dionisíacos caminhos que ligam os tipos e os gêneros dos textos, orais e escritos para complicar mais um pouco, tínhamos a professora Elisabeth, que para nós, já há alguns anos, desde a Graduação, era simplesmente a Beth. Mas o apelido curto, carinhoso da forma como até hoje o evoco, teve, desde que a conheci, um bocado de temor para muitos dos alunos. A Beth, durante todo o tempo em que convivi com ela, sempre foi sim uma professora indiscutivelmente enérgica, dada a rompantes repentinos e devastadores, mas que logo passavam, como se tudo tivesse estado inabalavelmente calmo durante o tempo inteiro; assim, era preciso estar preparado para enfrentar a tempestade a qualquer momento, porque era certo que a calmaria viria em seguida.
Esta era a presença, que igualmente sabia ser delicada e terna com aqueles que dessa forma aprendessem a conhecê-la, que tínhamos conosco naquele dia.
Começaram então as apresentações das famosas transparências da Beth, e, abordando-se a tipologia das descrições, iniciaram-se também as aparições das diversas paródias de Monalisa, acompanhadas da figura original, claro. Os sorrisos e outras expressões faciais da classe apresentavam-se a cada paródia e permeavam as descrições feitas delas. Ah, as descrições... Elas é que me salvavam um pouco. Quando a gente persegue os acontecimentos só ouvindo, prestar atenção às descrições alheias e captar cada detalhe que normalmente passaria despercebido é fundamental.
Tudo estaria perfeito para o bom entendimento da sala e para os planos tão cuidadosamente preparados pela Beth, não fosse por um pequeno detalhe: eu nunca havia visto nada, simplesmente porque não vejo, real assim, diferente assim, normal, assim. Então, consequentemente, nunca havia visto a Monalisa e não tinha a mínima ideia de muita coisa do que estava sendo dito, tanto pela Beth, quanto pela classe, mas, persistente, continuei atenta até o fim das descrições de Monalisa; eu só admitiria que não sabia quase nada sobre isso no momento certo de admitir, que ainda demorou um pouco a chegar.
O pouco que eu sabia da pintura mais famosa de da Vinci, colhendo um detalhe aqui e outro ali com o passar dos anos, era que se tratava de uma mulher que tinha o que muitas pessoas chamam de um meio-sorriso, cabelos compridos repartidos ao meio e vestes simples, mas isso definitivamente era muito pouco para a quantidade de detalhes que as descrições pormenorizadas da Beth evocavam, acentuando para nós uma das finalidades primordiais desta tipologia textual. Na escola, ainda durante a adolescência, eu tinha uma colega que insistia em me chamar de Monalisa – dizia que era por causa dos meus cabelos – mas nunca liguei muito para isso. Me lembrei desse fato com saudades daqueles tempos e achando engraçado e fui deixando a aula fluir. Até que percebi que não haveria outra saída se não compartilhar socraticamente a minha quase ignorância sobre a Gioconda. Esperei um silêncio da sala e disparei:
- Beth, como é a Monalisa?
Só então todas as pessoas que estavam na sala se deram conta de que aquele quadro era praticamente desconhecido para mim, do mesmo modo como a grande maioria das pinturas. Esperei por uma descrição pormenorizada em palavras, por detalhes não sabidos: cores, a postura, o rosto... E, de certa forma, tive tudo isso, mas não foram palavras que me trouxeram a Monalisa, e sim gestos que, de início, me deixaram atônita; contentíssima, mas atônita.
Beth veio vindo na minha direção, enquanto eu sentia se aproximar o perfume suave que ela sempre usava, pensando:
- Ué, como será que ela pretende responder a minha pergunta? O que será que vai fazer?
Estávamos todas sentadas em cadeiras de plástico acompanhadas por mesas quadradas, cada uma com a sua. Beth se aproximou da minha diagonal superior direita e me disse, séria, para sentar com as costas retas na cadeira; obedeci. Então, ela pôs no lugar, com suavidade, os fios desalinhados dos meus cabelos de modo que ficassem repartidos ao meio como os da Monalisa, e com ambas as mãos, uma de cada lado, pegou no meu rosto com modos delicados e o fez virar um tantinho para a direita. Nesse momento entendi a forma que ela havia escolhido de responder a pergunta que fiz e descobri qual a minha parte nessa demonstração: congelar a imagem, conservar cada detalhe que os gestos dela meio que desenhavam usando de forma concreta o meu próprio corpo, para obter, no final, um pouco da imagem da Monalisa projetada em mim.
Então, acrescentando novos detalhes àquela imagem em formação, continuou a voz da Beth sob o silêncio paciente do restante das meninas, cruzando meus braços sobre o peito, um sobre o outro, de modo a colocar as palmas das minhas mãos apoiando as partes externas e laterais dos cotovelos opostos:
- Dá um sorriso.
Assim fiz, mas aquela experiência tão inusitada me deixava tão feliz com a descoberta que ia gradualmente se formando em mim, que aquilo que era para ser um sorriso enigmático acabou se revelando um sorriso de orelha a orelha, como se diz.
- Não! – disse Beth, séria, mas com nítida vontade de sorrir também.
- Você sorriu demais! A Monalisa não é assim. Ela tem um sorriso enigmático. – continuou a explicar, agora com seriedade completa na voz, como a relembrar cuidadosamente cada detalhe, a fim de me proporcionar a melhor concretização possível.
- Vamos ver se consigo te descrever com propriedade como é um sorriso enigmático: diminui, vai diminuindo até eu dizer que está bom.
Pensei em como seria difícil fazer aquilo, mas eu não desistiria nos retoques finais da projeção da pintura, afinal de contas, não é todo dia que alguém tem diante de si a oportunidade de personificar a Monalisa sem jamais tê-la visto, e, naquela hora, eu era a Gioconda! eu.
Tratei de conservar com afinco os outros detalhes conseguidos nos minutos anteriores e me concentrei. Me lembrei que as rosas eram assim: grandes, pujantes a seu modo quando ainda frescas, diminuíam de tamanho conforme a passagem dos dias; era aquilo então que eu teria de fazer com o meu próprio rosto: diminuir o meu sorriso sem apagá-lo por completo. E assim foi: Tratei de ir contraindo vagarosamente a musculatura da face até que sobrasse apenas um movimento dos cantos da boca, prestando minuciosa atenção aos músculos em retração para não enrijecê-los ou movê-los rápido demais, como quem toca uma melodiosa e melancólica sanfona que lentamente se fecha em suas notas longas e plangentes, e, sim, estava conseguindo, porque conforme aquele meu sorriso murchava, sendo porém ainda sorriso, fui ouvindo da Beth, paciente a minha frente, olhando e esperando:
- Isso! Assim! Um pouco mais! Quer dizer, um pouco menos! Ah, você entendeu. – disse ela sorrindo com ternura cuidadosa e ainda um pouco de prevenção, para não me contagiar e estragar a performance, eu acho. – Falta pouco. – completou.
- Aí! Assim! Isso! Yara, sinta bastante, guarde bem, este é o sorriso da Monalisa. – disse ela, agora sorrindo abertamente, satisfeita.
Contente, com expressão de “Missão cumprida!” no rosto, afastou-se para continuar a aula, suspensa por aqueles minutos, pois todas as alunas, naquele dia, foram gentis e silenciosas expectadoras e cúmplices da minha descoberta.
A minha descoberta! Naquele dia eu soubera o que tantos espectadores do mundo todo contemplam naquele pequeno quadro de da Vinci ou em suas tantas reproduções. E foi tanto o encantamento da descoberta, que fiquei com posição e sorriso enigmático de Monalisa até a aula acabar, o que durou ainda mais de uma hora, fazendo penetrar mais a cada minuto a Monalisa em mim. Eu sabia que muito dificilmente voltaria a ter uma oportunidade como aquela e queria aproveitar cada minuto...
Vários anos já se passaram desde então. Há não muito tempo, tive a oportunidade de relatar a Beth a importância dessa experiência para mim e de agradecê-la por isso. Quando eu disse que gostaria de agradecer por algo que ela havia feito por mim há muito tempo, Beth afirmou ter certeza de que eu estava falando da nossa experiência com a Monalisa.
- Percebi, no momento mesmo em que compunha os detalhes no seu corpo, o quanto aquilo estava sendo importante para você. – disse ela.
- Executei um procedimento comum de sala de aula, que deveria ser uma maneira de agir constitutiva de todos os educadores, mas percebi naquele momento que a importância desse procedimento repercutiria na sua vida. – reconheceu ela ainda uma vez durante os e-mails que trocamos sobre esse assunto.
E assim é.
É claro que não sou a Monalisa; aliás, ninguém realmente sabe quem ela é: se a esposa de um comerciante florentino, se o alterego de da Vinci, se a representação feminina de uma suposta paixão masculina do pintor. E este mistério já dura quase 500 anos. Mas o fato é que, de alguma forma, a Monalisa, seja ela quem for, está em mim, ganhou vida uma vez mais com a representação que involuntariamente protagonizei, e agora, vive novamente, nos registros que estes escritos hão de conservar.
Limeira, quinta-feira, 23 de setembro de 2010
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Boa Beth , e viva a Beth . Ela soube mesmo te fazer sentir a Monalisa . Super legal , inesquecível mesmo
ResponderExcluirEsqueci de dizer quem fez o comentário : Carol Bjs
ResponderExcluirhahahahahaha legal então! Bjs
ResponderExcluirP.S.: faz tempo que não sei da Beth, mas espero que esteja bem. Realmente essa lembrança é pra vida toda...
Texto escrito com riqueza de vocabulário e "otras cositas más"
ResponderExcluirParabéns, Yara! Muito orgulhoso de você. Abração. Maestro Rosivaldo
Valeu, Rosivaldo! Bom receber de novo sua visita aqui. Abraço!
ResponderExcluirFantástico!!! Aprendi muito com a Beth. Antes dela eu achei que sabia escrever, mas só mesmo as suas aulas (mesmo com lousa confusa) puderam me fazer crescer. Bons tempos, hein Yara???
ResponderExcluirParabéns pelo texto e pelo Blog.
Beijão.
Mirian Mello
Ótimos tempos! Tenho muitas saudades de tudo também. Agora, da lousa confusa eu fui poupada... hahahahahahaha Ponto pra mim!!! rsrsrsrsrs Que bom receber aqui no meu cantinho virtual a sua visita; espero que se repita! Bjsss
ResponderExcluirTA FICANDO XIQUE ESSA MINHA MENINA. OPS, ESSA LINDA MULHER! PARABENS FILHA, NAO PERCA O COSTUME MESMO. FAÇA O QUE VOCE GOSTA E SEJA FELIZ.
ResponderExcluirValeu! Bjsss
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