sábado, 13 de dezembro de 2014

Uma Folha Verde

“Sim, eu quero saber. Saber para melhor sentir. Sentir para melhor saber”. (Paul Cézanne).

(Já que a reencontrei há poucas semanas, dedico estes escritos à tia Cleidi, que fez parte desse momento sem jamais saber a importância que ele tinha ou teria. Os dedico também à Mariana, para quem esta história, um dia, foi quase tão importante quanto o foi para mim).


Essa história foi uma memória durante muito tempo. Hoje, elaborada, contada informalmente algumas poucas vezes, está pronta para ser escrita. Ou seria sua protagonista quem está pronta para contá-la?... Não importa. De qualquer maneira, foi assim:

Um dia de escola de criança, aparentemente como qualquer outro. Tão comum que a garotinha não sabia que, dentro de poucos minutos, sucederia algo, não necessariamente ruim, mas que mudaria para sempre o entendimento que ela tinha de si mesma. A melhor amiga, em pé, lhe ofereceu a mão, que ela aceitou como em todos os dias, e se foram as duas para o parquinho, aproveitar a melhor parte do dia quando a gente tem seis anos: o recreio. Se comeu? Deve ter comido, ela não se lembrava. Permaneceu registrado daquele dia apenas um único acontecimento.

Sentaram-se na areia todas as crianças juntas em algazarra, com os baldinhos e aqueles rastelos todos, pás, conchas... Como sempre, a amiga diligentemente postada ao seu lado direito. Embora tivessem a mesma idade, ela estava sempre alerta para o que a outra precisasse. Precisava ir a algum lugar na escola: vamos. Precisava encontrar a escova de dentes no meio das outras: aqui. Precisava pegar o lápis da cor certa no estojo para fazer a atividade como a professora pedia: é esse, ó... E o lápis certo estava ali, ao alcance da sua mão esquerda.

E, assim, a tarde transcorria com tranquilidade. De repente, a garotinha teve a atenção atraída por um diálogo vindo de crianças ali perto:

- Olha, uma folha...

- Nossa! Que bonita!

- Que grande!

- É, olha só, que verde legal!!!

Largou o baldinho e as ferramentas e levantou a cabeça intrigada, monologando consigo mesma: grande, ta bom. Bonita, tudo bem. Mas, verde legal?! O que seria isso, um verde legal?

Pediu para ver a folha, que veio passando de mão em mão até chegar à sua. Tocou cada pedacinho; não viu nada de diferente, nada de textura de verde. Cheirou; nada; cheiro de areia, cheiro de folha, mas nada de cheiro de verde. Pôs perto do ouvido e tudo continuava igual, vai ver que o verde não tinha som. Devolveu a folha a alguém e fez em voz alta a pergunta que mobilizava seus pensamentos às crianças que se assentavam ali perto:

- Que que é isso, verde legal?

- Verde... Bom... Ah, assim... É legal, sabe? Bonito... Ah, verde... Oras, Yara, verde é verde, e pronto, ué...

Claro; que verde era verde e pronto ela já sabia. Como percebeu que daquele mato não sairia mais coelho, resolveu deixar pra lá, perguntar a uma pessoa que soubesse... Uma pessoa grande. Voltou para a areia e o baldinho até terminar o intervalo.

Chegou de novo à classe, sentou-se, esperou pacientemente que a professora passasse as atividades. Quando recebeu a sua e percebeu que todos já começavam a trabalhar, enquanto pegava o papel das mãos da professora, criou coragem e foi dizendo meio reticente:

- Ô tia... Eu queria perguntar uma coisa...

- O quê? – respondeu a professora, a um só tempo terminando de distribuir os papéis às crianças ali da mesma mesinha e virando-se um pouco para olhar a meninazinha que falava com ela, como quem tem um olho no gato e outro no peixe. – Pode perguntar.

- Ah, não - respondeu a garotinha. – Vem aqui perto, por favor, eu queria perguntar uma coisa séria.

- Ta bom, então espera um pouquinho só que a tia já volta.

Ah, essa história de esperar um pouquinho só ela já conhecia, mas tudo bem; sempre acabava dando certo mesmo; E deu.

- Pronto – veio dizendo a professora enquanto se aproximava veloz – To aqui, só pra saber a coisa séria que você queria perguntar... Pode falar.

E como criança dificilmente faz rodeios, a garotinha virou a cabeça para a esquerda, de onde vinha o som da voz da professora, levantou-a um pouquinho como fazia quando queria falar com ela e disparou de uma vez só:

- Tia, o que que é verde???

- O quê? – perguntou a professora como quem se esforça para sintonizar uma frequência certa.

- É isso mesmo que eu quero saber, o que que é verde??? – repetiu a garotinha com vivacidade determinada – É isso, pronto, o que que é verde?

Para surpresa da menina instalada na cadeirinha baixa, a professora, jovem e antes jovial como sempre, apoiou uma mão na mesa e veio baixando o corpo, séria, até sentar-se no chão ao seu lado; tudo isso muito devagar... Para ganhar tempo, quem sabe. Primeiro a calça jeans roçava a sua pele; depois o cabelo da professora, grosso, longo, crespo, forte, veio chegando perto... Mais perto... Passando pelo seu próprio cabelo, depois pelo seu rosto, e, de repente, pronto, a professora estava sentada, ali, pequenininha, igual a ela.

- Yarinha... Bom... O verde... Olha... Sabe, a tia acha melhor você perguntar isso pra vó quando chegar em casa hoje... Tudo bem?

- Ah, ta bom... Tudo bem... Você não sabe responder, né? Eu sei... A Lu também não sabia... Mas eu achei que você sabia... Sabe, tem um monte de gente aqui que não sabe o que que é verde...

A professora levantou-se desconsertada, talvez pela pergunta que ouvira, ou quem sabe pela resposta assustadoramente compreensiva que depois recebera da criança, e, caminhando atabalhoadamente, foi sentar-se à sua mesa, vindo de vez em quando para verificar o andamento das atividades dos alunos e sempre demorando-se um pouco mais ao lado da garotinha que tão decididamente a interpelara; talvez procurando alguma palavra que não surgiu em nenhum momento naquele dia.

A menina, por seu turno, queria chegar logo à casa, afinal, não era qualquer pessoa grande que servia para responder sua pergunta: tinha que ser a vó, que para ela era mãe e sempre seria; tinha que ser a vó, que sempre sabia tudo. Se a professora tinha dito para perguntar para a vó, então tinha mesmo que ser ela, não tinha jeito.

Finalmente lhe disseram que a avó tinha chegado e que ela podia ir. Chegou à casa, jantou, conversou, esperou. Quando conseguiu ficar sozinha com a avó, procurou as palavras para fazer a pergunta que queria e que já por duas vezes tinha ficado sem resposta, mas acabou usando as mesmas anteriormente tentadas naquele dia:

- Mãe, o que que é verde?

A avó-mãe, que nunca lhe tinha escondido nada, começou, devagar, mas resolutamente:

- Verde?... Bom, filha, senta aqui. Olha, o verde é uma cor bem bonita, das folhas, das matas... Algumas horas o mar também é verde. Mas acontece que você não vai conseguir ver o verde como as pessoas fazem, porque elas fazem isso com os olhos e os seus não funcionam. Lembra que eu te contei aquela história que o médico te deixou muito tempo no bercinho? Então, quando você saiu de lá, os seus olhos já não estavam mais funcionando. Eles estão aí, sabe, mas não funcionam. Como quando você quebra um brinquedo, ele continua aí, mas não funciona mais.

A menina fez um sinal de positivo com a cabeça – Entendi.

- Mas olha – continuou a avó – agora que você já sabe que os seus olhos não funcionam, que já entende o que eu quero dizer quando conto isso, vai me prometer que não vai ficar triste e que vai responder todas as perguntas que te fizerem, como você sempre tem feito, porque assim você aprende com as perguntas das pessoas e elas aprendem com as suas respostas. Não deixa nunca de responder, ta bom? O que você não souber, depois me pergunta, mas não deixa nunca de responder.

A menina concordou que assim estava bem e saiu. Continuou sem saber o que era o tal do verde legal, e agora já tinha entendido que não iria mesmo saber. Se a avó não tinha palavras para lhe explicar o que perguntava, ninguém mais as teria. Entendeu que se não saberia o verde, também não saberia o amarelo, o azul nem nenhuma das outras cores. Cresceu e continua sem saber, mas não desistiu ainda de perguntar. Porém, agora, cada tentativa de resposta de alguém é um pouquinho mais de cor que ela consegue juntar. Agora, de cada cor já tem uma ideia; Agora é como se cada tentativa de cada pessoa deixasse cada cor um pouco mais colorida. Agora ela já sabe que nunca vai chegar ao fim da busca, mas sabe também que, até o último dia, vai continuar tentando.

Um comentário:

  1. Parabéns yara , achei linda . Continua sua busca para entender as cores . Bjsssssssssss. Carol

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