terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Na Minha Biblioteca...


“Um livro aberto é um cérebro que fala; fechado, um amigo que espera; esquecido, uma alma que perdoa; destruído, um coração que chora”. (RabindranathTagore).


Escuto da janela cair essa chuva abençoada pela qual tanto esperamos depois de uma estiagem histórica e tão longa. Escuto ao mesmo tempo em que me lembro de uma notícia que vi ontem em um jornal na televisão. Dizia que choveu tanto no Rio Grande do Sul que, em uma escola, várias salas ficaram alagadas, inclusive a biblioteca. Olhando, minha avó contava que os livros das prateleiras inferiores literalmente boiavam, desamparados. (desamparados é por minha conta). Essa imagem me lembrou uma outra, que me acompanha desde que me mudei da casa onde morava, da qual acho que só vou conseguir dar conta depois que me sentar e fizer exatamente o que estou fazendo agora: escrever.

Tive uma infância, em certa medida, solitária. Cresci rodeada de adultos. Brinquedos? Eu os tinha de todos os tipos, mas passei meio que à margem da etapa do esconde-esconde, do pega-pega, da queimada, de pular corda e subir em árvore, coisas que as crianças da minha idade ainda faziam. Isso tudo só periodicamente, quando meu irmão vinha me ver com os meus pais. As crianças da rua, conheci pouco. Me fizeram companhia desde cedo a música e os livros. Desde que me conheço por gente, estou cantando ou tocando alguma coisa.

Quando voltava da escola, terminava os deveres e não queria mais as bonecas ou a música, eu ia ler. Na época, a única maneira como um cego podia ler era o método Braille. Os livros gravados em fitas e cds, os eletrônicos baixados no computador, os livros digitais vieram todos bem depois do momento em que essa história começa. Por isso, eu tinha que reler muitas coisas, pois um livro novo em Braille era coisa rara. No início, eu só tinha aqueles que minha avó mesma havia datilografado em Braille, da escola. Alguns anos depois passei a adquirir, bem devagar, em instituições especializadas, clássicos da literatura em Braille, que eu devorava imediatamente e guardava na estante correndo. Me lembro de reclamar para minha avó que todo mundo podia ir à livraria ou à biblioteca, escolher o que quisesse; eu não, e mesmo assim as pessoas da minha idade não queriam saber de ler. Ela tentava apaziguar, mas sabia que aquilo me deixava uma fera! Minha bisavó, que estudou só até a chamada quarta série, costumava dizer que eu jamais arrancasse uma página de um livro, porque se eu fizesse isso, ele iria chorar. Guardei esse conselho comigo toda a vida, porque para mim, todo livro novo que chega é um novo ente que vai me acompanhar, a partir do momento em que somos apresentados, ao longo da caminhada.

Quando eu tinha uns quinze anos, me lembro de ter visto os primeiros livros gravados em fitas cassete. Eu emprestava os livros da biblioteca e lia que lia; depois vieram os cds e eu lia que lia... Aos dezoito fiz meu primeiro trabalho da faculdade no computador. Um novo mundo, o da tecnologia, me abria de vez as portas. A universidade demandava títulos muito específicos da área das letras, que eu não encontrava em Braille nem gravados em lugar nenhum. Então, pessoas do meu convívio, amigos, parentes, liam os livros impressos em tinta que eu comprava e gravavam, e eu escutava. E junta que junta livro... E assim foi durante muitos anos, minha biblioteca ia crescendo. E ainda mais cresceu depois dos livros eletrônicos e digitais.

Até que chegou um dia ainda não muito distante, em que minha vida sofreu uma grande reviravolta; eu precisava me mudar para um apartamento. Não haveria espaço para guardar os livros em Braille e as fitas; o piano, também, eu precisaria vender; e vendi, para alguém que eu sabia que cuidaria bem dele. Os livros foram dispensados em todos os lugares onde tentei doá-los, inclusive em uma escola para cegos. Aproximava-se o dia da mudança e eu tinha que dar um destino a tudo aquilo que havia juntado... Depois de relutar muito, aceitei de má vontade a ideia de que os meus livros se tornariam alguma coisa reciclada... Coloquei tudo na garagem e pedi que me dispensassem dos momentos finais; eu não queria vê-los indo para a caminhonete. Fui atendida, subi para o meu quarto. Eu me lembrava de tudo o que minha avó datilografou para mim, de todas as fitas que tinham sido gravadas, dos rostos conhecidos que tinham feito as leituras, de todo o tempo que tinham dedicado, de todos os livros impressos em Braille que eu tinha lido e guardado em casa, caso tivesse vontade de ler de novo. Me lembrava dos meus amigos cegos que hoje não querem mais ler Braille por causa dos computadores; me lembrava da grande quantidade que conheço de professores que trabalham com o ensino de cegos e já me disseram com todas as letras que o ensino do Braille não é mais importante, isso aqui mesmo, em Limeira. Me sentia como aquelas mães desesperadas, que têm os bebês às escondidas, enrolam em um pano e colocam no lixo... E ainda hoje, quando penso nos livros que tive que abandonar às próprias más-sortes, na chuva, no sol, na sujeira pelas quais devem ter passado, é assim que me sinto. Aquele dia foi um dos de maior impotência que já vivi.

Conservei os cds, os livros impressos em tinta. Hoje compro muito menos, mas é só assim, com esses dois formatos de livros, a passos lentíssimos, que minha biblioteca ainda cresce. Só aqui entre nós: de vez em quando vou à estante, pego um livro que sei que não vou poder ler agora, e sinto o cheirinho de papel... Mudei-me para o apartamento. O piano agora é digital. Os livros da infância, da adolescência e da juventude ficaram na lembrança. Já me peguei várias vezes pedindo a Deus para conseguir preservar a qualquer custo os livros que restaram e o piano, seja lá para onde eu novamente tenha que ir... Não sei como seria se eu tivesse que passar por isso de novo.

E ontem me deparo com aqueles livros todos na tv, nadando na chuva... Senti que finalmente era hora de escrever, de me libertar; que eu finalmente teria forças e saberia o que dizer... E que finalmente, talvez, depois de tanto tempo passado, os meus entes-livros poderiam me perdoar...

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