domingo, 5 de outubro de 2014

Recuerdos Del Paisito: Casa Pueblo


"O Sol é meu amigo mais antigo”. Assim se expressou o pintor, ceramista, muralista, escultor, compositor, escritor, arquiteto, produtor de cinema e empresário uruguaio Carlos Páez Vilaró (1923-2014). Difícil é apresentar tanta versatilidade em pouco espaço. Ir à península de Punta Ballena é, obrigatoriamente, mergulhar na obra do genial Vilaró. Punta Ballena é o berço da Casa Pueblo, um complexo que inclui um museu e uma galeria de arte com as obras do artista, um hotel, um restaurante e um café. E o que mais impressiona é saber que Vilaró construiu Casa Pueblo com as próprias mãos e a ajuda de pescadores e demais moradores dos arredores.

Conforme nos aproximávamos de ônibus, me lembro que minha avó e Carol olhavam pela janela, observando incrédulas materializar-se diante de seus olhos a concretude da península, essa porção de terra cercada de água por três dos lados que elas tanto tinham desenhado para os alunos no quadro-negro por mais de trinta anos, mas que nunca antes haviam visto fora dos livros. Foi emocionante vê-las fazendo essa descoberta ali, diante de mim.

Quando chegamos à Casa Pueblo fazia aquele típico friozinho uruguaio, mas o sol, símbolo do lugar, marcava presença. Casa Pueblo é conhecida mundialmente como uma “escultura habitável”, assim denominada por seu criador e construtor. Segundo o próprio Vilaró: "construi-a como se tratasse de uma escultura habitável, sem planejar antecipadamente, seguindo principalmente o meu entusiasmo. Quando o governo municipal me pediu, há pouco tempo, a planta do projeto - que eu não tinha - um amigo arquiteto teve que passar um mês estudando a maneira de decifrá-la”. O casarão branco de arredondados traços mediterrâneos abriga e expõe as obras do artista por todos os cantos e levou 35 anos para ser construído – o início data de 1958. Quando Casa Pueblo começou a tornar-se labiríntica, Vilaró decidiu espalhar por ela placas com os nomes dos amigos, como se de ruas se tratasse. Um desses amigos foi o nosso poetinha, Vinicius de Moraes (1913-1980). Foi inspirado em Casa Pueblo e para as filhas de Vilaró que Vinicius compôs os célebres versos: “Era uma casa muito engraçada”... Alguns outros desses amigos famosos eram simplesmente Jorge Amado (1912-2001), Pablo Picasso (1881-1973) e Salvador Dali (1904-1989).

Não se pode deixar de destacar, infelizmente, que o acesso de pessoas com deficiências, principalmente motoras, não é fácil, bem como o dos idosos, dada a proliferação de degraus e escadas dispostos de forma não regular e a inexistência de corrimãos propriamente ditos, exceto em alguns trechos de caminho. No entanto, se houver oportunidade e meios, trata-se de um passeio imperdível.

Na obra de Vilaró como um todo ressalta-se fortemente o cotidiano, primeiro, dos afro-uruguaios, com destaque para o candombe, manifestação musical uruguaia já tratada em uma crônica anterior. O artista aprofundou posteriormente seus estudos sobre a cultura africana no Brasil e em outros países latino-americanos com forte presença afro-descendente, tais como o Haiti, bem como em países da própria África subsaariana. Outras temáticas recorrentes em sua obra são o sol – claro -, a lua, as mulheres.

É certo que todo artista produz rodeado e influenciado por aquilo que vivencia. No caso de Vilaró, essa ligação vida-arte é bastante estreita e notória. Se o sol simboliza Casa Pueblo e é seu amigo mais antigo, a lua recorda e retoma outro episódio marcante de sua vida pessoal. Em 1972 um de seus filhos, Carlos Miguel, integrava um time uruguaio de rugby, os Old Christians. O avião da Força Aérea Uruguaia que transportava o time chocou-se contra uma montanha entre o Chile e a Argentina, na Cordilheira dos Andes. Dos 45 passageiros, 16 sobreviveram, numa inacreditável e, por que não, milagrosa luta pela vida. Um desses sobreviventes era o filho de Vilaró, que o artista nunca desistiu de procurar, mesmo com as autoridades colocando em xeque a existência de sobreviventes depois de mais de dois meses nos inóspitos Andes. Essa procura incansável foi transformada por Vilaró em Livro: Entre Meu Filho E Eu, A Lua. A tocante foto do reencontro dos dois, que ilustra a capa, já é um forte indício de tudo quanto o livro encerra.

Todos os dias ao entardecer os turistas são presenteados com um poema em prosa escrito por Vilaró e declamado por sua voz calma e comovida, com a beleza e suavidade tranquila de seu sotaque uruguaio, que reverbera pelos auto-falantes enquanto o sol se põe em Casa Pueblo. ( http://www.youtube.com/watch?v=HDdKf4a9zcg ) A essa cerimônia não assisti, mas a leitura reveladora do poema dá uma breve ideia do espetáculo que dia após dia se desenrolou diante dos sensíveis olhos do artista e que continua a oferecer-se voluntariamente aos frequentadores vespertinos da Casa Pueblo. Despeço-me de vocês hoje deixando, além da declamação do poema pelo próprio Vilaró no link acima, logo abaixo, o poema original em espanhol e, imediatamente após, uma tradução livre que fiz, para ver se conseguia administrar o impacto de ter sido apresentada ao sol pela agudeza terna e singela de Carlos Páez Vilaró. Divirtam-se, deleitem-se, meditem.:

"CEREMONIA DEL SOL

Hola Sol …! Otra vez sin anunciarte llegas a visitarnos. Otra vez en tu larga caminata desde el comienzo de la vida. Hola Sol…! Con tu panza cargada de oro hirviendo para repartirlo generoso por villas y caseríos, capillas campesinas, valles, bosques, ríos o pueblitos olvidados. Hola Sol…! Nadie ignora que perteneces a todos, pero que prefieres dar tu calor a los más necesitados, los que precisan de tu luz para iluminar sus casitas de chapa, los que reciben de tí la energía para afrontar el trabajo, los que piden a Dios que nunca les faltes, para enriquecer sus plantíos, y lograr sus cosechas. Es que vos, Sol, sos el pan dorado de la mesa de los pobres. Desde mis terrazas te veo llegar cada tarde como un aro de fuego rodando a través de los años, puntual, infaltable, animando mi filosofía desde el día que soñé con levantar Casapueblo y puse entre las rocas mi primer ladrillo. Recuerdo que era un día inflamado de tormenta, el mar había sustituido el azul por un color grisáceo empavonado, en el horizonte un velero escorado afinaba el rumbo para saltear la tempestad, el cielo se llenaba de graznidos de cuervos en huida, la sierra se peinaba con la ventolera alborotando a la comadreja y al conejo. Pero de golpe como un anuncio sobrenatural el cielo se perforó y apareciste vos. Eras un sol nítido y redondo, perfecto y delineado, puesto sobre el escenario de mi iniciación con la fuerza sagrada de un vitreaux de iglesia. Desde ese instante sentí que Dios habitaba en ti, que en tu fragua derretía la fe y que por medio de tus rayos la transmitía por todos los sitios donde transitabas. Los mismos brazos de oro que al desperezarte iluminan el cielo, al estirarse a los costados entibian las sierras, o apuntando hacia abajo laminan el mar. Hola Sol…! Cómo me gustaría haber compartido tu largo trayecto regalando luz, porque a tu paso acariciaste la vida de mil pueblos, compartiste sus alegrías y tristezas, conociste la guerra y la paz, impulsaste la oración y el trabajo, acompañaste la libertad e hiciste menos dura la oscuridad de los presidios. A tu paso sol, se adormecen los lagartos, despiertan los girasoles y los gallos cacarean. Se relamen los gatos vagabundos, los perros guitarrean, y el topo se encandila al salir de la cueva. A tu paso sol, hay sudor en la frente del obrero y en los cuerpos de las mujeres cobrizas que alcanzan el cántaro de la favela. Con tus latidos conmueves el mar, das música a la siembra, la usina y el mercado. A tu paso corrieron en estampida búfalos y antílopes, desperezó el león, se asombró la jirafa, se deslizó la serpiente y voló la mariposa. A tu paso cantó la calandria, despegó el aguilucho, despertó el murciélago y emigró el albatros. Hola Sol…! Gracias por volver a animar mi vida de artista. Porque hiciste menos sola mi soledad. Es que me he acostumbrado a tu compañía y si no te tengo, te busco por donde quiera que estés. Por eso te reencontré en la Polinesia, cuando te coronaron rey de los archipiélagos de nácar y los arrecifes dentellados de coral, o también en Africa, cuando dabas impulso a sus revoluciones libertarias y te reflejabas en el espejo de sus escudos tribales para inyectarles coraje. Te estoy mirando y veo que no has cambiado, que sos el mismo sol que reverenciaron los aztecas, el mismo de mi peregrinaje pintando por América, el que envolvió la Amazonia misteriosa y secreta, el que me alumbró los caminos al Machupichu sagrado del Perú, el de los valles patagónicos o los territorios del Sioux o del comanche. El mismo sol que me llevó a Borneo, Sumatra, Bali, las islas musicales o los quemantes arenales del Sahara. A diferencia del relámpago que apenas proyecta en la noche latigazos de luz, desde tu reinado planetario, tus destellos continúan activos, permanentes. Alguna vez la travesura de las nubes oculta tu esplendor, pero cuando ello ocurre, sabemos que estás ahí, jugando a las escondidas. Otras veces, en cambio, te vemos sonreír cuando las golondrinas o las gaviotas te usan de papel para escribir las frases de su vuelo. Gracias Sol, por invadir la intimidad de mi atardecer y zambullirte en mis aguas. Ahora serás la luz de los peces y su secreto universo submarino. También de los fantasmas que habitan en el vientre de los barcos hundidos en trágicos naufragios. Gracias Sol…! Por regalarnos esta ceremonia amarilla. Gracias por dejar mis paredes blancas impregnadas de tu fosforescencia. Entre ventoleras y borrascas, cruzando ciclones y tempestades, lluvias o tornados, pudiste llegar hasta aquí para irte silenciosamente frente a nuestros ojos. Porque tu misión es partir a iluminar otros sitios. Labradores, estibadores, pescadores te esperan en otras regiones donde la noche desaparecerá con tu llegada. Y como respondiendo a un timbre mágico despertarás las ciudades, irás junto a los niños a la escuela, pondrás en vuelo la felicidad de los pájaros, llamarás a misa. A tu llegada, se animará el andamio con sus obreros, cantarán los pregoneros en las ferias, la orilla del río se llenará de lavanderas y entrará la alegría por la banderola de los hospitales. Chau Sol…! Cuando en un instante te vayas del todo, morirá la tarde. La nostalgia se apoderará de mí y la oscuridad entrará en Casapueblo. La oscuridad, con su apetito insaciable penetrando por debajo de mis puertas, a través de las ventanas o por cuanta rendija encuentre para filtrarse en mi atelier, abriéndole cancha a las mariposas nocturnas. Chau Sol…! Te quiero mucho! Cuando era niño quería alcanzarte con mi barrilete. Ahora que soy viejo, sólo me resigno a saludarte mientras la tarde bosteza por tu boca de mimbre. Chau Sol…! Gracias por provocarnos una lágrima, al pensar que iluminaste también la vida de nuestros abuelos, de nuestros padres y la de todos los seres queridos que ya no están junto a nosotros, pero que te siguen disfrutando desde otra altura. Adiós Sol…! Mañana te espero otra vez. Casapueblo es tu casa, por eso todos la llaman la casa del sol. El sol de mi vida de artista. El sol de mi soledad. Es que me siento millonario en soles, que guardo en la alcancía del horizonte”.

(Carlos Páez Vilaró, Uruguai, 1923-2014)

“Cerimônia do Sol

Olá Sol! Outra vez sem anunciar-te chegas a visitar-nos. Outra vez em teu grande passeio desde o começo da vida. Olá Sol! Com teu ventre carregado de ouro fervente para reparti-lo generoso por vilas e casarios, capelas campesinas, vales, bosques, rios ou cidadezinhas esquecidas. Olá Sol! Ninguém ignora que pertences a todos, mas que preferes dar teu calor aos mais necessitados, os que precisam de tua luz para iluminar suas casinhas de lata, os que recebem de ti a energia para enfrentar o trabalho, os que pedem a Deus que nunca lhes faltes, para enriquecer seus plantios e propiciar suas colheitas. Porque tu, Sol, és o pão dourado da mesa dos pobres. De meus terraços te vejo chegar a cada tarde como um aro de fogo rodando através dos anos, pontual, infalível, animando minha filosofia desde o dia em que sonhei levantar Casa Pueblo e pus entre as rochas meu primeiro tijolo. Lembro-me que era um dia inflamado de tormenta, o mar havia substituído o azul por uma cor acinzentada apavorante, no horizonte um veleiro ancorado preparava-se para saltar a tempestade, o céu se enchia de grasnidos de corvos em fuga, a cerra se penteava com o vendaval alvoroçando a doninha e o coelho. Mas de golpe como um anúncio sobrenatural o céu se perfurou e tu apareceste. Eras um sol nítido e redondo, perfeito e delineado, posto sobre o cenário de minha iniciação com a força sagrada de um vitral de igreja. Desde esse instante senti que Deus habitava em ti, que em tua forja derretia a fé e que por meio de teus raios a transmitia por todos os lugares por onde transitavas. Os mesmos braços de ouro que ao espreguiçar-te iluminam o céu, ao estirar-se às costas entibiam as cerras, ou apontando para baixo laminam o mar. Olá Sol! Como eu gostaria de haver comnpartilhado teu grande trajeto presenteando luz, porque por onde passaste acariciaste a vida de mil povos, compartilhaste suas alegrias e tristezas, conheceste a guerra e a paz, impulsionaste a oração e o trabalho, acompanhaste a liberdade e fizeste menos dura a obscuridade dos presídios; por onde passas Sol, adormecem os lagartos, despertam os girassóis e os galos cacarejam; se lambem os gatos vagabundos, os cachorros latem e a toupeira se deslumbra ao sair da toca. Por onde passas Sol, há suor na testa do operário e nos corpos das mulheres acobreadas que agarram o cântaro da favela. Com teu pulsar comoves o mar, dás vida à semeadura, à usina e ao mercado. Por onde passaste correram precipitadamente búfalos e antílopes, espreguiçou-se o leão, assombrou-se a girafa, deslizou a serpente e voou a mariposa. Por onde passaste cantou a cotovia, decolou a aguiazinha, despertou o morcego e emigrou o albatroz. Olá Sol! Obrigado por voltar a animar minha vida de artista. Porque fizeste menos solitária minha solidão. É que me acostumei à tua companhia e se não te tenho, te busco por onde quer que estejas. Por isso te reencontrei na Polinésia, quando te coroaram rei dos arquipélagos de nácar e dos arrecifes denteados de coral, ou na África, quando davas impulso a suas revoluções libertárias e te refletias no espelho de seus escudos tribais para injetar-lhes coragem. Te estou olhando e vejo que não mudaste, que és o mesmo sol que reverenciaram os astecas, o mesmo de minha peregrinação pintando pela América, o que envolveu a Amazônia misteriosa e secreta, o que me iluminou os caminhos ao Machupichu sagrado do Peru, aos vales patagônicos ou os territórios do Sioux ou do Comanche. O mesmo sol que me levou a Bornéu, Sumatra, Bali, às ilhas musicais ou aos areais queimantes do Saara. Diferente do relâmpago que apenas projeta na noite chicotadas de luz, de teu reinado planetário, teu resplendor continua ativo, permanente. Às vezes alguma travessura das nuvens oculta teu esplendor, mas quando isso ocorre, sabemos que estás aí, brincando às escondidas. Outras vezes, no entanto, te vemos sorrir quando as andorinhas ou as gaivotas te usam de papel para escrever as frases de seu voo. Obrigado, Sol, por invadir a intimidade de meu entardecer e mergulhar-te em minhas águas. Agora serás a luz dos peixes e de seu secreto universo submarino. Também dos fantasmas que habitam o ventre dos barcos afundados em trágicos naufrágios. Obrigado Sol! Por presentearnos com esta cerimônia amarela. Por deixar minhas paredes brancas impregnadas de tua fosforescência. Entre vendavais e borrascas, cruzando ciclones e tempestades, chuvas ou tornados, pudeste chegar até aqui para ir-te silenciosamente diante de nossos olhos. Porque tua missão é partir a iluminar outros lugares. Lavradores, estivadores, pescadores te esperam em outras regiões onde a noite desaparecerá com tua chegada. E como respondendo a um timbre mágico despertarás as cidades, irás junto aos meninos à escola, porás em voo a felicidade dos pássaros, chamarás para a missa. À tua chegada se animará o andaime com seus operários, cantarão os pregoeiros nas feiras, a margem do rio se encherá de lavadeiras e entrará a alegria pela bandeirola dos hospitais. Tchau Sol! Quando em um instante te fores de todo, morrerá a tarde. A nostalgia se apoderará de mim e a obscuridade entrará na Casa Pueblo. A obscuridade, com seu apetite insaciável penetrando por debaixo de minhas portas, através das janelas ou por quantas aberturas encontre para filtrar-se em meu atelier, dando passagem às mariposas noturnas. Tchau Sol! Te amo muito! Quando eu era menino, queria alcançar-te com o meu barrilete. Agora que sou velho, só resigno-me a saudar-te, enquanto a tarde boceja por tua boca de vime. Tchau Sol! Obrigado por provocar-nos uma lágrima, ao pensar que iluminaste também a vida de nossos avós, de nossos pais e a de todos os seres queridos que já não estão junto a nós, mas que te seguem desfrutando de outra altura. Adeus Sol! Amanhã te espero outra vez. Casa Pueblo é a tua casa, por isso todos a chamam casa do sol. O sol de minha vida de artista. O sol de minha solidão. É que me sinto milionário de sóis, que guardo no cofre do horizonte”.

(tradução livre, 02/10/2014)

3 comentários:

  1. Lindo este poema , emociona . Somos milionários por termos o calor e a luz solar . Obrigada amiga por nos presentear com a tradução deste lindo poema . carol

    ResponderExcluir
  2. Ter tido a oportunidade de ver , sentir e até respirar dentro da casa de Vilaró foi algo que tocou a alma . Parabéns pela crônica . Bjs minha linda . Carol

    ResponderExcluir
  3. Ter estado na Casa Pueblo foi bom, mas ter encontrado e traduzido esse poema de Vilaró foi uma das coisas mais edificantes que já fiz e que já li na vida!

    ResponderExcluir