A todo povo sempre são atribuídas algumas características, ora positivas ora negativas, que vão “desenhando” a imagem com a qual os estrangeiros acabam ficando sobre esse povo. Aos brasileiros, por exemplo, no lado positivo, graças a Deus, são atribuídas alegria, cordialidade, musicalidade... Quanto às nossas características negativas, como diria uma personagem de uma série de comédia da televisão, “Prefiro não comentar”. Não por falta do que dizer, mas porque este não seja o momento apropriado. Vamos deixar isso pra lá. Estou escrevendo esta crônica para falar, e bem, dos uruguaios; então, vamos a eles.
Logo que entramos neste ano, ganhei lááá de cima um presente. Um presente-pessoa a quem eu já conhecia, ainda que pouco, há bastante tempo, mas que entrou definitivamente na minha vida como professora de espanhol (uruguaia, vamos dizer para ir costurando direitinho as coisas aqui neste texto). Contudo, hoje, quando revisito este presente a cada semana, é a amiga a quem eu primeiro vejo. Depois, bem devagar, é que vou me lembrando que bem junto da amiga está a professora de espanhol. Antes de conhecer seu país, eu pensava que determinadas características que a faziam admirável aos meus olhos eram dela. Bom, é claro que são, mas depois de ter ido ao Uruguai, percebi que essas características que estreitaram os nossos laços de amizade são dela, porque já a acompanham há muito tempo, vindas de seu próprio povo. o que vou dizer, então, dos uruguaios, a partir daqui, se aplica a ela, inerentemente, porque estar no Uruguai é estar diante dela e vice-versa, numa harmonia perfeita.
Zelo atento – Estávamos lá, três turistas despreocupadas na Praça Cagancha, pleno centro de Montevidéu, tirando fotos; anoitecia. Uma moça perguntou se queríamos que ela tirasse uma foto das três; queríamos, claro. Ela fez a foto enquanto, com o outro olho, observava um rapaz que parecia estar sob o efeito de alguma droga. Nos devolveu as câmeras, olhou para o rapaz, olhou de volta para nós e aconselhou: “Guardem-nas bem; vocês sabem como são as drogas”. Quando terminamos de guardá-las ela se foi. Um uruguaio sairá de onde estiver, parará o que estiver fazendo para vir ao seu encontro se achar que há alguma boa orientação que ele possa lhe dar. Vivenciamos isso algumas vezes.
Sensibilidade - Quando estava na Casa Pueblo, em Punta Ballena, eu quis escolher um azulejo decorado com uma obra de Carlos Páez Vilaró. (Falo mais detidamente sobre a Casa Pueblo e sobre Vilaró outro dia). A vendedora dos azulejos notou minha indecisão, aproximou-se mais, eu percebia que me olhava com interesse genuíno. Hesitou um segundo, procurando palavras como quem vai fazer uma revelação, e disse, com cuidado: “Sabe, a lua está bonita; muito bonita, e é uma das figuras mais representativas na obra de Vilaró. Recorda um período muito intenso em que sua vida e sua produção artística se mesclaram profundamente”. Claro, ela se referia ao acidente em que o artista quase perdeu o filho nos Andes mas nunca deixou de procurá-lo, pois sentia que estava vivo, apesar do descrédito das autoridades que já se anunciava; acidente e procura que viraram livro de sua autoria: Entre Meu Filho E Eu, A Lua. Ela me deixou livre para escolher, mas havia me convencido e a lua de Vilaró veio morar no Brasil. Aliás, muitos vendedores brasileiros deveriam aprender com os uruguaios que as coisas não se empurram para os clientes; as coisas são vendidas, mas quem escolhe sempre precisa ser quem compra. Sempre fomos deixadas à vontade; recebíamos sugestões, detalhes, mas também sempre dávamos a palavra final, e essa palavra era respeitada em todas as ocasiões, fosse ela “sim” ou “não”.
Mas tive depois uma prova literalmente bonita de como são esse zelo atento e essa sensibilidade dos uruguaios. Me refiro a uma cena marcante que presenciei na feira a que fomos no Parque Rodó. Logo que chegamos tivemos a atenção atraída por um senhor que vendia artesanato em madeira. Nos detivemos diante de alguns porta-chaves: havia peixes, sóis, desenhos mais abstratos. Ele pegava cuidadosamente cada uma das peças, limpava-as detidamente com uma escovinha, retirando cada grão de poeira, como se estivesse acariciando delicadamente a alguém muito amado e a colocava no lugar correspondente, para passar à seguinte. Achei tão lindo aquele agir que o artesão tinha para com as suas peças... Perguntei se podia tocá-las e a resposta foi positiva, sorridente e imediata. Enquanto eu ia tocando ele me explicava, com naturalidade absoluta, que “recortava” todos os pedacinhos da madeira da maneira como queria e depois “armava” os desenhos. As explicações, calmas e nas quais tinha evidente prazer, eram as mesmas que daria a qualquer passante. O vendedor das peças de madeira me olhava sem aqueles enormes olhos interrogadores e perplexos que de tempos em tempos me acompanham aqui. Será possível perceber que muitas das experiências descritas neste texto se passaram por causa de um dedinho de prosa. Para os uruguaios, tranquilos como costumam ser, sempre há tempo para conversar, seja entre si, seja com os estrangeiros.
Aliás, no Uruguai ninguém me interrogou nada perplexamente com os olhos; eles apenas me olharam, constataram e seguiram em frente. Um dia, deixamos minha avó, cansada, no hotel e fomos procurar o jantar; procurar o jantar numa casa de chá. Eu queria saber o tamanho de um doce para levar para ela. A moça à minha frente imediatamente juntou os dedos das duas mãos, com total desembaraço, fez o desenho. Colocou-o debaixo das minhas mãos para que eu o tocasse, acompanhando-o com uma descrição do exterior, do recheio, da receita, de tudo, detalhes que eu nem precisei pedir. Levei o doce, claro, impressionada com a espontaneidade e prontidão dela.
Afetividade cálida – no hotel onde ficamos havia um recepcionista muito simpático: ele cumprimentava, abria a porta do elevador e assim a mantinha até que todas entrássemos, respondia as perguntas sempre com alguma informação complementar, não hesitava em ir pessoalmente ver o que acontecia se necessário, falava portunhol, comigo falava espanhol e não economizava no vocabulário, gostava de me testar; fazia o que podia por todos os hóspedes. Ele realmente se desdobrava; era notório que apreciava muito aquilo que fazia. Assim, sempre que chegávamos ou saíamos, a torcida era para encontrar o Edimundo no balcão.
Amabilidade solícita – Quando chegávamos a algum lugar e precisávamos descer do ônibus, Elisa, a guia turística, ou Luiz, o motorista, estavam sempre à porta para me estender a mão, indicando o fim dos degraus e a direção a ser tomada. Tudo feito como se fosse parte do cotidiano deles todos os dias. Na maior parte das vezes, quem estava era Elisa, que adicionalmente me conduzia à calçada com hagilidade e ficava comigo esperando até que minha avó e Carol chegassem. No segundo dia de viagem, quando chegamos, ela havia tido a delicadeza de nos guardar os acentos da frente. Percebi também que, no dia anterior, havia dois falantes de inglês, que ela pôs na fileira contígua à sua. Algumas vezes a notei olhando-os com atenção, como a certificar-se de que não tinham dúvidas e de que ela podia prosseguir.
Gentileza a toda prova – Sempre que fazíamos algum pedido, qualquer que fosse, as respostas recorrentes eram: “Sim”, “claro”, “por favor”... E quando agradecíamos por algo, a resposta mais recorrente não era “de nada”; era “não, por favor”!, como a salientar que não havia necessidade nenhuma de agradecer.
Sobriedade alegre – Na feira comprei uma echarpe. Bonita, mas mesclava tons de preto, cinza, marrom, para mim pouco habituais. Foi o único dia em que saí sem aquele acessório indispensável no ventinho frio da cidade. O vendedor a pôs sobre minha blusa rosa e disse que ficava muito bem; se mostrou encantado com o meu espanhol. Parecia que redobrava sua alegria por estar falando com uma brasileira em espanhol. “Os brasileiros estão acostumados a usar muitas cores. Gostamos disso, embora o comum para nós sejam as cores mais clássicas. Com esse seu rosa vai ficar muito bom”! E ficou mesmo.
E as crianças uruguaias, como são? Bom, essas são todas iguais, existem as quietinhas e as espoletas em qualquer lugar do mundo. Sentada no parque, eu ouvia de uma mãe que passava: “para, você já me falou isso duzentas vezes”! De outra eu escutava: “Dá a mão”! E uma terceira trouxe aos meus ouvidos um “Vem aqui”! exasperado. Aí, quando você começa a entender as broncas que as mães dão nos filhos, passa também a acreditar, mesmo, que o seu desempenho na língua estrangeira está ficando realmente bom!
Enfim, voltei, e não só eu, agradavelmente impressionada e de certa maneira marcada pela suavidade alegre dos uruguaios.
Não, por favor ; ouvida inúmeras e repetidas vezes deste povo que tem a simplicidade , carinho , disponibilidade na alma . Povo falante e receptivo, que sabe como ninguém acolher o visitante , sempre disponíveis e hospitaleiros . Conhecer o Uruguai e seu povo é algo que nos marca pra vida toda . Parabéns Yara pela linda crônica . Bjs Carol
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